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Algumas reflexões sobre o ensino de literatura brasileira e portuguesa no Brasil
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A pergunta sobre o lugar da literatura portuguesa no ensino médio e no ensino universitário do Brasil deve ser formulada e respondida com o rigor que a gravidade do momento atual exige. De fato, não está em questão apenas o lugar da literatura portuguesa nos currículos escolares, mas também o da literatura brasileira. No limite, talvez esteja mesmo em questão o lugar da literatura tout court.

Assim, para que a discussão não se esgote em protestos humanistas (que podem ser tão legítimos quanto são, freqüentemente, inócuos como argumentos, tão logo se saia do círculo dos que estão dispostos a formulá-los), creio que é preciso delimitar claramente os termos em pauta.

Nesse sentido, a primeira distinção a fazer é quanto ao que se entende por ensino de literatura, pois antes de saber se é preciso manter ou eliminar esta ou aquela rubrica ou sub-rubrica, parece-me importante compreender o que tem sido o ensino da literatura na maior parte dos cursos de Letras e na maioria das escolas de ensino médio.

Uma rápida visita aos programas de cursos universitários das mais prestigiosas universidades do país, complementada pelo exame dos livros didáticos de maior sucesso no mercado permite constatar que ensinar literatura significa usualmente ensinar 'história literária'. E a história literária, tal como tem sido ensinada nas escolas, raramente gera outra coisa além de habilidade classificatória.

Numa escola de bom nível, eis as etapas típicas de desenvolvimento de cada bloco de programa:

 

1.      Num primeiro momento, apresenta-se ao aluno um conjunto de traços literários, de procedimentos técnicos ou de temas, reunidos sob uma rubrica como Arcadismo, Romantismo ou Realismo. O objetivo parece ser, num segundo passo, fazer com que, dado um texto X, o aluno seja capaz de descobrir o "estilo de época" Y a que aquele texto pertence. 

2.     A seguir, identificados esses traços, passa-se a apresentar um conjunto de textos em que eles se encontram em evidência (nesse ponto, o organizador do livro ou apostila já tomou todos os cuidados para afastar textos e questões que não se enquadram bem no modelo...). O objetivo desta etapa parece ser colocar a observação de um número razoável de textos a serviço da confirmação da pertinência e importância dos traços com que se definiu o "movimento" ou "escola". 

3.     Por fim, o normal é explicar as 'escolas', entendidas como um conjunto de procedimentos e temas e textos, por meio de um "panorama de época", em que eles são postos em função de uma esquemática e superficial descrição da vida política e econômica do período. 

 

Assim entendido, o ensino da literatura é parte do ensino da história. É história dos estilos de época, com atenção para os condicionantes sociais dos temas e das formas. Ensinar literatura, dessa maneira, é ensinar uma parte considerada importante da história do país.

Mas será mesmo assim? E se for, por que ensinar a história literária e não a história do país e, dentro dela, incluir não só a literatura, mas também as outras artes? Haveria algum conhecimento específico que se perderia se a literatura fosse absorvida pela história, dentro dos currículos escolares?

Apresentemos alguns exemplos concretos: há algo que um aluno de ensino médio aprenda melhor estudando a história da literatura romântica brasileira do que estudando a história do período? É indispensável, para algum tipo de conhecimento útil ao cidadão, a leitura de obras como A Moreninha, Iracema, O Guarani, Inocência? O que se aprende lendo essas obras? Treina-se o gosto? Desenvolve-se a sensibilidade, ou as habilidades lingüísticas?

É possível que alguém responda que a leitura instrui deleitando. Que um aluno entenderá mais prazerosamente o feudalismo lendo O Bobo do que percorrendo o volume correspondente da História da vida privada; ou que compreenderá de modo mais agradável e completo o que foi o período de Avis lendo O monge de Cister do que a História de Portugal de Oliveira Martins. Mas é difícil sustentar esse argumento, tanto do ponto de vista da abrangência e qualidade das informações históricas presentes nas obras literárias, quanto do ponto de vista do prazer do texto, pois raramente a leitura de Inocência ou A mão e a luva parece ser um deleite para um estudante de 16 anos.

Também é possível que a resposta seja a de que o lugar da literatura é o lugar da experiência estética, e que é afinal melhor que um aluno leia, sem prazer ou interesse, nem entender porque deve fazê-lo, uma série de cantigas de amigo ou O Ateneu, do que permitir que passe a adolescência sem ler nada disso.

Não faltará, por certo, quem argumente que o remédio amargo produz a saúde, ou seja, que a leitura de obras tais produz as habilidades para ler outros textos; como também não deixará de aparecer o argumento de que ao professor cabe justamente despertar e estimular o gosto pela leitura, mesmo que esse despertar e esse estímulo tenham por instrumento objetos pouco eficazes para esse fim.

O argumento final, porém, se fará ouvir em algum momento, quando os anteriormente expostos não conseguirem produzir a adesão do estudante ou do adversário recalcitrante. E esse argumento é o da responsabilidade patriótica. Na sua forma básica, reza que o ensino da literatura é fundamental para que se afirmem os valores nacionais, pois faz parte da formação do cidadão compreender o caminho que o trouxe até o seu presente.

Contra essa sobrevivência da ideologia nacionalista romântica, que propunha o literário como domínio privilegiado para a manifestação, reconhecimento e defesa do "nacional", bastará justamente a descaracterização da literatura como "meio" para a obtenção do fim. Descaracterização essa que se faz afirmando que atualmente concorrem, para atender a esse mesmo objetivo e desejo, a história social, com a ênfase nos oprimidos e derrotados, a história das mentalidades e costumes, bem como as histórias narradas a partir de pontos de vista descentrados em relação aos objetos canônicos, como as histórias das mulheres e das minorias étnicas. Como último reforço, bastará afirmar que as várias modalidades da história atendem a esses objetivos com uma grande vantagem sobre a literatura, que é a de serem vazadas numa linguagem atual e acessível, além de não terem de lidar com a espinhosa questão do valor estético, com a questão de valor tradicional implicada pelo discurso literário.

Ora, é justamente a questão do valor o que caracteriza o fenômeno e a tradição literária. Não tanto porque o estudo do cânone permita a formação de um "gosto" específico e especializado (sempre, por isso mesmo, um gosto associado a um determinado estrato social, a um determinado gênero ou etnia), mas principalmente porque o valor e as formas que o manifestam ao longo do tempo e moldam os hábitos cultos dominantes num dado momento presente só podem ser apreendidos "por dentro". Isto é, só podem ser apreendidos a partir do conhecimento e observação do cânone atual, da sua construção, das posições que nele ocupam autores e obras que, ao longo do tempo, se moveram, deslocaram, foram incorporados ou expulsos dos vários núcleos canônicos.

Um interesse específico dos estudos literários, assim, reside na análise das relações do gosto com o valor, na descrição das linhas de força pelas quais os objetos se hierarquizam e se distribuem num dado momento de tempo, bem como dos hábitos de ação vigentes nesse momento. E isso não porque essas linhas de força e hábitos de ação sejam objetos intermediários, testemunhos, reflexos ou sintomas de algo que as transcende e determina e que se chamaria "realidade" ou "contexto". Pelo contrário, porque elas mesmas são "realidade" e "contexto" (se quisermos continuar usando essas palavras), na medida que determinam formas de sensibilidade, de compreensão, de representação e de ação. Nesse sentido, o estudo dos cânones (dos seus valores, regras, gêneros, línguas, fórmulas) permite compreender de modo mais verossímil os parâmetros de cada época, permitindo que o analista fuja à falácia realista de tomar os textos como testemunhos desmarcados, simplesmente verdadeiros ou falsos, sobre "fatos" do passado. Pelo contrário, apenas a comparação de muitos textos pertencentes a um mesmo tipo ou registro permitirá compreender o que em cada um deles é comum, em que medida é comum, o que constitui uma novidade em relação aos predecessores e contemporâneos, e o que, nisso, será aproveitado por outros, dando origem a outra forma, esquema ou uso de linguagem.

Como o valor canônico e as sucessivas apropriações dos objetos culturais por outros objetos culturais criam um lastro incontornável, que se manifesta nos juízos de valor e no próprio exercício das escolhas, não há objetos neutros no campo da cultura. O passado, como o presente, é construído a cada momento e a ação crítica, qualquer que seja o seu objeto, é, portanto, sempre uma atuação direta sobre o cânone em contínua transformação. Postulando valores, afirmando ou negando (por meio do direcionamento ou promoção dos hábitos e do valor) as linhas esboçadas sobre o quadro do passado, a ação crítica é sempre uma ação interessada, que molda e põe em evidência os elementos do passado que sejam úteis aos objetivos e necessidades do presente.

Dessa linha de reflexão decorre naturalmente a defesa do lugar dos estudos literários como domínio específico no quadro das humanidades, mas não decorre necessariamente a defesa do estudo das literaturas nacionais como séries relativamente estanques.

Na verdade, a aposta em que haja algum interesse específico no estudo numa série nacional, ou melhor, que haja uma série literária nacional, definida pelo clima, pela raça, pela paisagem, pela língua ou pelas determinações impostas pelo Capital é uma das peças mais caras da ideologia romântica. Tão cara quanto a aposta em que o modelo de desenvolvimento da cultura seja o desenvolvimento de um organismo biológico, cujo nascimento, formação, maturidade e decadência possa ser compreendido numa narrativa em forma de parábola. Igualmente importante no ideário oitocentista é a aposta ainda hoje hegemônica no Brasil: a de que a continuidade e a auto-referencialidade são sintomas de maturação de uma literatura nacional, especialmente no caso de países e culturas que se reconhecem como periféricos em relação a um grande sistema ideal, do qual estão excluídos em princípio ou incluídos apenas em limites estreitos, adequados às necessidades econômicas dos chamados países centrais. O estudo dos desvios do particular em relação ao geral, da diminuição, irrealização ou distorção dos padrões estéticos canônicos nas zonas periféricas, é claro, constituem o filé desse tipo de abordagem que, pela forma e objeto, pertence ao gênero da teratologia.

Nesse quadro, soa um tanto despropositado o argumento freqüentemente ouvido (e triunfante já em alguns Estados) de que a brasileira deve ser o único item curricular da grande área "literatura" no ensino médio. Primeiro porque três dos cinco séculos de ocupação desta terra pelos europeus foram basicamente portugueses. Ou, dizendo de outra forma: os textos literários aqui produzidos até o século XIX (e que hoje são estudados como "literatura brasileira") foram produzidos ou por portugueses ou por pessoas de formação portuguesa, em língua portuguesa, de acordo com os cânones portugueses. Segundo porque a exclusão da produção portuguesa do período comum só poderia conduzir, como já assinalara Álvares de Azevedo, ao empobrecimento do pecúlio literário.

Nas hostes nacionalistas há, por conta dessas operações, duas frentes. A mais primária é a constituída pelas várias encarnações do ufanismo, que apenas repete, entre as grandezas da pátria, a da sua literatura. Por isso mesmo, proclama a sua suficiência curricular. A mais sofisticada, no outro extremo, é a que produziu uma formulação clássica: a de que, como literatura, a brasileira é muito pobre, mas é a "nossa" literatura, a que "nos" exprime, e por isso temos o dever de estudá-la, já que, se não o fizermos, ninguém o fará. Ao mesmo tempo, ficar apenas nos limites da literatura nacional (ou nos limites da língua portuguesa) acarretaria uma espécie de má-formação, que é o provincianismo de gosto que denuncia logo o seu portador. Ou seja, o argumento aqui é que, por fidelidade patriótica, devemos ou chegar ao cânone pela sua versão diminuída ou distorcida, ou, vindo do cânone, estudar o diminuído ou distorcido que nos coube por herança. Em todo caso, o objetivo último parece ser o de proceder ao estudo sistemático de um déficit, talvez como forma de superá-lo, num doloroso processo de autognose.

Nessa redução ao absurdo das reivindicações nacionalistas se delineia o primeiro argumento consistente a favor do ensino da literatura portuguesa. Esse argumento seria construído mais ou menos assim: 1) a literatura de língua portuguesa possui um corpus notável, que não é em nada pobre, nem menor do que o de tantas outras línguas. De fato, por que deveríamos considerar menor ou provinciana uma série na qual se alinham, entre muitos outros, Fernão Lopes, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Garrett, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Machado de Assis, Camilo Pessanha, Cruz e Sousa, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Eugênio de Andrade, Graciliano Ramos, Lobo Antunes e João Guimarães Rosa?; 2) o estudo conjunto das obras de língua portuguesa, independentemente do local de nascimento ou produção do escritor exibiria de modo mais claro as articulações canônicas, permitindo fugir ao interesse exclusivo no desvio em relação a um modelo idealizado, bem como levaria a compreender as reivindicações nacionais e nacionalistas como movimentos e representações internas ao cânone, ou como movimentos pela afirmação de variantes canônicas em conflito pela hegemonia.; 3) a literatura de língua portuguesa, tomada como um todo, traria para o estudante um exemplário mais amplo de textos, escolhidos em função dos problemas e questões mais relevantes para o estudo das formas históricas da sensibilidade e da língua, e não em função da sua inserção num desenho de construção da nacionalidade, isto é, num desenho gizado pelos românticos com tanto sucesso que ainda pode parecer convincentemente "natural" ou mesmo fatal.

Ou seja, se parece desejável que um jovem estudante forme um bom repertório de leituras valorizadas pelo tempo em que vive, que se familiarize com as diferentes formas de sensibilidade ao longo da história, e que tenha experiências várias de utilização da língua oficial do seu país em textos considerados, ao longo do tempo, modelares, então é mais fácil atingir esse objetivo se ele tiver à sua disposição um corpus de língua portuguesa, e não um corpus definido por um recorte nacional.

O recorte nacional, em si mesmo, independentemente da sua sobrevivência inercial nos currículos e na estruturação de departamentos, matrículas e bibliotecas só parece ter hoje interesse como objeto de estudo. E é uma questão interessante a de como essa dada forma de ordenação do passado e de ação sobre o presente transformou-se em determinação a priori, em parâmetro mais ou menos metafísico, em baliza atemporal para a percepção, seleção e afirmação de textos e questões.

Quem quer que se debruce sobre essa questão, vê-se forçado a refletir também sobre o curioso lugar que a literatura, como instituição, ocupou no imaginário romântico e ainda hoje ocupa no imaginário contemporâneo. Pois se é certo que ainda agora haverá muitos que se sentirão ofendidos com argumentos como os apresentados acima, parece razoável esperar que a poucos deles ocorreria, se tivessem de decidir qual a ementa de uma única disciplina sobre pintura ou sobre música no ensino médio, que essa ementa devesse obrigar ao ensino exclusivo da história da música ou da pintura brasileira. A menos gente ainda ocorreria, espero, caso houvesse a contingência de criar no ensino médio uma única disciplina chamada "cinema", restringir o currículo ao estudo profundo da história da Atlântida e da Vera Cruz e às 'correntes' estéticas que se lhe seguiram, dentro do âmbito estrito do que se poderia definir como a formação e afirmação do "cinema brasileiro".

Todas essas considerações não conduzem a acreditar que a 'literatura' deva desaparecer dos currículos escolares, ou neles ser substituída pela simples cedência ao mercado. Não é preciso que a escola ensine a ler os best sellers. Para isso, o marketing, a televisão e o cinema têm eficácia bem maior. Por outro lado, tampouco faz sentido, ao ensinar a língua da comunidade, excluir o repositório de usos dessa língua. Pelo contrário, parece-me que um dos papéis fundamentais da escola é tornar as novas gerações capazes de compor vínculos com o passado. Isto é, dotá-las de instrumentos de apropriação do passado no que ele encerra de outro, de diferente em relação à contemporaneidade. No caso, parece importante que a escola permita a criação e a análise dos vínculos do presente com a tradição literária da língua portuguesa e, em última instância, com a tradição dos temas e questões que foram construindo, ao longo dos séculos, a auto-representação, ainda atuante, a que chamamos Ocidente.

E agora, depois desse pequeno desvio pelas ponderações teóricas, aparece clara a tese deste texto: a de que, se há hoje pouco interesse ou pouca utilidade no estudo isolado da literatura brasileira, também não há maior interesse ou utilidade no estudo isolado de qualquer "literatura nacional". Por outro lado, não só porque as chamadas literatura portuguesa e brasileira foram, durante séculos, uma literatura comum a ambos os lados do Atlântico, mas também por todos os motivos expostos acima (inclusive os que apontam para o peso ainda determinante da tradição romântica entre nós), a conclusão possível para este texto é a de que, se deve haver uma disciplina obrigatória no ensino médio e no ensino universitário brasileiro, na qual se estudem predominantemente o texto literário, essa disciplina só poderia consistir do estudo do conjunto das literaturas de língua portuguesa, entendido como parte significativa do conjunto maior que construímos e denominamos com a expressão "literatura ocidental".

 

 

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Nota do autor: Esse texto — publicado na revista Voz Lusíada, nº 18. São Paulo, 2º semestre de 2002 — foi produzido no âmbito dos debates que levaram à reformulação completa do Curso de Licenciatura em Letras e à criação, para início neste ano de 2006, do Bacharelado em Estudos Literários da Unicamp. Nesses dois cursos — pela primeira vez na universidade brasileira, ao que me consta —, extinguiu-se a obrigatoriedade do ensino das literaturas nacionais, em favor do estudo comparativo entre as literaturas de língua portuguesa e as produzidas em outras línguas.

 

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agosto, 2006