©angela coppola
 
 
 
 
 
 
 
 
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Ao poeta Ricardo Lima, sobre o seu livro Pétala de lamparina, inédito
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Campinas, 26 de dezembro de 2006

 

Ricardo, caro,

 

Li e reli o Pétala de Lamparina. Creio que é um belo livro, que faz uma espécie de balanço da obra anterior e anuncia o que talvez seja uma maneira ou caminho novo. Na primeira parte, deparei com o título do seu último livro, no poema VII. Na página final, deparo com o título dos dois outros. Não encontrei o do primeiro. Se estiver em algum lugar, perdi-o.

Mas não é só isso que me dá idéia de balanço, ponto de mutação. Alguma coisa se move aqui que não me parecia mover-se nos livros anteriores. Ou melhor, não parecia ao menos mover-se com essa pressão que localizo agora sob as palavras, entre uma e outra, ao longo da sucessão dos poemas. Não sei bem o que é. Talvez seja um ultrapassar do laconismo dos livros anteriores que, mesmo sendo inerente ao projeto, acabava por ser muito de época, por solidarizar-se ostensivamente com a poética contemporânea brasileira dos círculos que buscam no Cabral lido pelos concretos o marco zero da poesia moderna.

Temos problemas, no Brasil, com o discursivo. E uma legião de poetas se formou e vicejou apenas por conta dessa recusa do discursivo, eu creio. Ficou fácil, em certo sentido, fazer poesia: dizer nada ou quase nada numa sintaxe indecisa, valorizando a paranomásia e alguma referência erudita ou meramente culta. Um oráculo de coisa alguma. Normalmente, um oráculo meio gago.

Nos seus livros anteriores, eu creio que é clara a força construtiva de um discurso próprio. Ao mesmo tempo, o resultado final precisava do livro — da ordenação do conjunto e da leitura conjunta dos poemas — para ser apreensível como projeto. Quero dizer, isolado, cada poema sofria mais com o peso da linguagem comum do tempo. Juntos, os poemas mostravam o projeto, que redimensionava os traços comuns, dando-lhes uma justificativa e um peso novo (de autenticidade, se a palavra ainda puder ser usada hoje em dia), por conta do desenho geral.

Neste livro, o que mais me chamou a atenção é que o discurso se individualiza. Muitos dos poemas podem ser lidos isolados, sem perder a marca que, nos anteriores, só advinha do conjunto. Foi o que tentei descrever com a imagem de uma pressão constante sob a superfície conhecida.

Quanto ao livro em si, tenho poucos comentários, neste momento. Li-o duas vezes de uma ponta a outra e reli vários trechos várias vezes. Ainda não tenho uma visão muito articulada, porém.

O que pensei foi que a estrutura do livro parece materialização de um desejo de ordem. Vinte poemas seguidos de outros vinte. O acordar e o final do dia. O preparar-se e o recolher-se1. O que ocorre entre um e outro momento apenas comparece como possibilidade, recolha ou sinal indecifrado.

A voz lírica apresenta momentos de preparação, alude a memórias que surgem tão fragmentárias que não se tornam presentes, celebra às vezes algum momento breve de epifania ameaçada, contempla os restos da luta quotidiana pela ordem.

É uma voz crepuscular a que me surgiu na leitura do livro. Uma voz que fala nos crepúsculos, nos intervalos entre o dia pleno e o sono, com um olhar atento às ameaças que não aparecem senão por meio da metonímia da roupa, do escritório, das cartas do banco, da rua que é espaço de crime. Índices da cidade que aparece pouco e quase sempre como lugar hostil, de lixo, perigo e compromissos. Mas não há espaço para o sono ou o sonho. Esse me parece um ponto alto. Não há anseio escapista. Somente uma espécie de prolongamento da vigília, mais ou menos inútil, com o perpetuar das ameaças lembradas ou pressentidas, no correr da noite.

Há algo de defensivo nessa estrutura e nessa voz. Mas da mesma forma que as ameaças são reduzidas a índices comuns, muitos deles até banais, do ponto de vista imagético (o que não quer dizer que não sejam próprios e funcionem), o espaço a preservar também o é. Daí que também não fique claro o que há para preservar, o que seria a epifania rala das manhãs e noites e do intervalo entre umas e outras.

O livro assim caminha na corda-bamba. Navega entre Cila-lugar-comum-da-felicidade da reclusão doméstica e Caribdes-lugar-comum-da-inabitabilidade do universo público. Ao mesmo tempo, a natureza não é idílica no livro. E a cidade não é totalmente demonizada.

O recolhimento possível é um lugar de vigília e as duas sombras que o perpassam são uma louca e uma suicida, duas mulheres, uma delas aludida apenas por meio da casa e dos afetos deixados para trás2. A tarefa da observação e da escrita não tem atalho, nem simpatia, como se lê logo depois de uma dessas alusões. E o desamparo físico não é redimido pela sobrevivência do escrito ao escritor, como sugere a outra.

O título do livro, nesse quadro, é uma nota estranha e nostálgica. Talvez a única nesse conjunto ordenado de poemas meio descarnados, que flertam com a desordem, mas se contêm todos a tempo.

Pensando bem, há talvez uma vítima explícita no livro. Preciso refletir mais um pouco sobre isso, mas agora penso que talvez o tom de réquiem se deva à morte da nostalgia. Isso poderia explicar um pouco o que me pareceu o toque novo do livro. Mas não estou seguro.

Na nota final, de apresentação, o poeta não repetiu que vive em um lugar e sobrevive em outro. Talvez não tenha dito assim para não repetir o achado. Ou talvez por outra razão. Vive entre um lugar e outro. Mesmo para quem não conhece nem um nem outro, a afirmação é curiosa. Ainda mais num livro que se estrutura para apresentar uma voz intervalar e com a estrutura e os temas que este tem. Vive entre, vive em ambos, ou de um para outro.

É uma observação banal, mas pode fazer pender a interpretação para o lado da perda da ilusão da vida plena, da idealização de um espaço de vida verdadeira, contra um fundo de degradação. Seria talvez esse o sentido do balanço da obra pregressa.

A lamparina continua a brilhar, solitária, no título. Mas já é uma pista enganosa. O rural e o pré-industrial aparecem aqui corroídos. E de alguma forma desgastados, exauridos no seu potencial imagético ou redentor. E o efeito é interessante, quanto a mim. É novo.

Haveria algumas observações ainda mais miúdas a fazer. Há versos que penso que poderiam ser objeto de alguma intervenção. Há um ou outro poema também.

Mas queria logo lhe mandar estas impressões desordenadas, escritas para começar a conversa, e que vão com um abraço de bom 2007.

 

Paulo Franchetti

 

 

 

Notas 

 

junho, 2007

 

 

 

 

 

©walter sanders

 

 

 

 

 

 

VII

 

acordar

com poucas palavras

no paladar

 

iscas pra gastar

e anzol sem apetite

 

acordar

quase

impuro

 

silêncio

 

espelho sem suicídio

 

 

 

 

 

 

XIV

 

acordar

com pão

manteiga café preto

 

rádio diário

notícia

defunto

 

acordar a falta não sentida

 

escolher camisa

gravata

 

e aos vizinhos

desejar bom dia

o resto da vida

 

 

 

 

 

 

XV

 

acordar

com a calçada úmida

táxi calado moeda gelada

 

atravessar avenidas

viadutos

para acordar ouvidos

nas faxinas do gabinete

 

assinar na parede

algum pecado

 

avisar o guarda

 

aguardar o recado

acordado

 

 

[Da primeira parte, "Caro Acordar"]

 

 

 

 

 

IV

 

entardece

nascem passos

sem estradas

desastrados

 

ladeiras incentivam

íngremes imersões na solidão

 

os cães

na casa do sol

seguem ganindo

 

uma roupa vazia

veste a cadeira no pomar

 

 

 

 

 

 

X

 

entardece

e carrega pedras

nos bolsos de Virginia

 

trabalho sem atalho

suor ou simpatia

 

vida sempre à beira do sol

 

se perde quando

há queda de cílios

 

 

 

 

 

 

XX

 

não há tempo pra temperar

as chaves de ferrugem

descansar olho na fechadura

folha de louro na lauda

resto de cinza

ensolarada

 

não há o que fazer

com o que escorreu de areia

entre os dedos

de oportunidade pelos fios do cabelo

 

quase dia

dia

ou tarde noite

 

é cru e caro

acordar

 

 

[Da segunda parte, "Tarde Noite"]

 

 

 

 

Ricardo Lima nasceu em 17 de novembro de 1966, em Jardinópolis (SP). Publicou: Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994), Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999), Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003) e Impuro silêncio (Rio de Janeiro: Azougue, 2006). Pétala de lamparina (inédito) é seu mais recente trabalho. É jornalista e vive entre Campinas e Morungaba (SP).

 

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