©simon potter
 
 
 
 
 
 
 
 

1.

 

Para que serve a crítica literária? Para alguns, a crítica parece servir principalmente como propaganda. O que quer dizer que não serve para nada enquanto crítica, ou seja: quanto menos crítica, melhor.

O argumento pode desenvolver-se na forma da cobra que morde o próprio rabo: como não há mais autoridade reconhecida ou legítima, não há lugar para um discurso que analise, comente e por fim avalie o objeto, pois qualquer discurso que analise e situe numa escala de valores é em princípio falso ou descabido, pois finge ou pretende ocupar o lugar da autoridade inexistente.

O corolário desse discurso é que o valor é algo que está no passado, é algo arcaico e sem função hoje.

Para quem pensa assim, levantar a bandeira do valor só pode ser empulhação ou inconsciência. Por isso, na recusa à crítica, como escreveu recentemente um escritor, vale tudo e tudo é legítimo: golpe baixo, chute na virilha, abaixo-assinado1.

Nesse discurso, que surfa na onda das críticas à formação e manutenção dos cânones e se alimenta no caldo do relativismo, o mercado costuma aparecer como ponto mágico de solução de impasses.

Da condenação da crítica à apologia do mercado: esse é o vetor básico de um argumento que reaparece freqüentemente, com várias faces.

Uma dessas faces é a da juvenil contestação da autoridade, sempre sentida como ilegítima ou castradora; outra é a de paladino da irredutibilidade do gosto e do direito de escolha do consumidor; uma terceira é a de advogado dos produtores, prejudicados no seu negócio; e há ainda a de membro da guilda, solidário em princípio com qualquer colega de corporação.

Valeria a pena discutir a premissa de que a literatura é apenas um produto de mercado? Ou a de que a crítica literária não tem lugar nem função, por proceder de uma coisa morta, tendenciosa ou imoral chamada cânone? Ou ainda que, sendo questão de gosto, o julgamento crítico da obra literária é sempre subjetivo e, em última análise, manipulador?

Não creio. A discussão de premissas exige muitas passagens e justificações. E é fácil, para desviar a atenção ou para fugir ao embate complicado, concentrar a réplica num ou noutro ponto secundário e nele fazer foco, em prejuízo do conjunto.

Nesse caso, assumir a premissa da argumentação contrária parece mais produtivo, pois permite pensar as conseqüências, tomando todas as afirmações pelo valor de face e ignorando, propositadamente, a sua função tática.

Vou começar então por assumir, neste texto, uma dessas premissas: a de que a literatura seja um bem de mercado: um produto, como um carro ou uma geladeira, um frasco de perfume ou uma garrafa de vinho... E, para melhor resultado do exercício de reflexão, vou considerar que é apenas um bem de mercado. Sendo assim, boa parte do que vou dizer sobre a literatura e a sua crítica, especialmente a exercida em jornal, vale também, de alguma forma, para outras atividades e produtos culturais, como a música e o cinema, por exemplo. Mas porque conheço melhor as especificidades da literatura e sua forma de produção, circulação e consumo, vou tratar aqui principalmente de literatura e crítica literária.

 

 

2.

 

Quando se abre um jornal ou uma revista especializada e se observa um teste comparativo de dois modelos de automóvel, apresenta-se aí uma função da crítica que não é das menores: a crítica como orientação do consumo.

A sua importância é muito clara. Por exemplo, uma montadora lança um carro com aparência de fora-de-estrada agressivo: estepe na porta traseira, protetores de pára-choque, pintura camuflada, pneus lameiros. Vem um avaliador, que já dirigiu, por profissão, muitos modelos com a mesma aparência, e escreve na revista para a qual trabalha que o carro tem motor pífio, que a suspensão não é adequada para a finalidade indicada pelo desenho da carroceria. O fabricante não gosta, mas os potenciais compradores podem optar: se querem apenas circular pela cidade num carro confortável, com aparência de fora-de-estrada, podem comprar. Se querem ir para o mato no final de semana, melhor escolher outro modelo. Mas a crítica poderia ser outra: o carro em questão, além da aparência agressiva, podia ter um motor perfeito, uma suspensão adequada e um equilíbrio entre o que custa e o que vale. Nesse caso, o comprador poderia animar-se, e até fazer um financiamento para comprar o carro, já que dispõe da garantia de uma avaliação experimentada.

O exemplo destaca dois pontos importantes para a crítica dos bens de consumo e para a crítica firmar-se, ela mesma, como bem de consumo: avaliação, com base em experiência, e confiabilidade da fonte.

A experiência, que é talvez a condição principal da confiabilidade, implica duas coisas diferentes: o conhecimento de uma vasta gama de produtos, de modo a poder discernir, comparativamente e em relação à finalidade proposta, os pontos altos e baixos dos produtos que examina; e o método de teste de uso, que permite efetuar as avaliações.

Um cidadão comum não pilota usualmente um Audi hoje, um BMW amanhã, um Mercedes, um Ômega e um Volvo no dia seguinte. Muito menos pode arriscar-se a ralar esses carros em acelerações, frenagens e curvas bruscas que revelem o que neles é melhor e o que é pior. Mas acredita que quem o fez tem mais condições e experiência para avaliar um novo produto do que quem não o fez. E se dispõe a pagar por uma opinião com base nessa experiência.

Ora, se esse cidadão lê numa revista ou num suplemento de jornal que o carro x se compara perfeitamente ao carro y, toma uma decisão de compra baseada nessa informação, e depois percebe que acabou comprando um carro muito inferior ao carro y do seu colega de trabalho, por certo passará a desacreditar a fonte de onde lhe veio a orientação errada, suspeitando que a avaliação que lhe foi oferecida não tenha sido isenta.

A confiabilidade é vital para qualquer instância que se proponha a orientar o consumo. No caso dos automóveis, uma revista sobre a qual pesasse a suspeita de fazer marketing em vez de avaliação teria imediata perda de público. Caso a suspeita fosse suficientemente difundida ou comprovada, poderia acarretar a perda do lugar no mercado, fazendo com que fosse lida como propaganda, mas não como revista para aficionados ou como guia de consumo. De modo que, se uma revista desse tipo se vende ao interesse do produtor, deve fazê-lo de modo que a venda seja invisível, pois vender-se (como opinião) significará deixar de vender (exemplares da revista e espaço para anunciantes) e, por conseqüência, falir.

A confiabilidade (isto é, a isenção do julgamento e a não-existência de interesse direto no resultado da avaliação) é, portanto, no caso da crítica dos produtos industriais, o seu mais importante valor de mercado.

 

 

3.

 

Neste ponto, penso que vale a pena insistir em que não faz sentido idealizar o mercado. É certo que, sendo a crítica um guia de consumo, não faz sentido idealizá-lo para pior, acreditando que nele não há lugar para argumentos e que o seu motor único seja o convencimento irracional da propaganda. Penso que é claro que não só existe no mercado um espaço para a crítica, mas também que a crítica seja, ela mesma, um bem com lugar no mercado. Tampouco faz também sentido idealizá-lo para melhor, imaginando que ele seja um espaço de racionalidade ou de livre exercício do direito de escolha. Definitivamente, se o mercado é um espaço onde a experiência intuitiva tem lugar é porque a própria experiência intuitiva é capturada como peça no jogo do mercado.

Um exemplo pode tornar mais claro esse ponto: o pressuposto de que o que é melhor custa mais caro. Por fazer parte da experiência direta, esse pressuposto dá lugar a um tipo de estratégia de manipulação que consiste, especialmente nos produtos destinados a um círculo pequeno de consumidores, em estabelecer um preço desproporcional à qualidade, na tentativa de deduzir da frase "o que é melhor custa mais caro" a afirmação de que o que custa mais caro é melhor.

A questão está no centro de muitas campanhas publicitárias: este produto se anuncia como idêntico em qualidade, por menor preço; aquele como de melhor qualidade pelo mesmo preço da concorrência; um terceiro como de maior preço, mas de muito melhor qualidade. O pressuposto modernamente é reforçado pelo fato de que os produtos industriais mais sofisticados já possuem, desde a concepção, várias versões, segundo o perfil econômico dos possíveis compradores e segundo as suas necessidades. E o preço acompanha a crescente escala de recursos tecnológicos oferecidos nas versões sucessivas.

O fato de que haja várias versões de um mesmo produto e vários produtos concorrentes, com versões dirigidas para os mesmos perfis econômicos, faz com que a comparação e a argumentação sobre a relação custo/benefício sejam tão mais relevantes quanto maior for o valor do produto e a variedade das opções em jogo.

Por outro lado, sendo a experiência um valor de mercado, ela acaba sendo tomada também como atestado abstrato do valor dos produtos. Daí a idéia de que um produto que seja muito consumido tem qualidade, ou mais qualidade do que os similares menos consumidos, independente do preço relativo. O julgamento crítico objetivo, baseado na experiência e na comparação, é, nesse caso, substituído pela suposta "experiência" consubstanciada na eleição da maioria, que se torna chancela de qualidade.

É aqui que a propaganda sobrepuja a crítica. Constatando que a associação intuitiva preço/qualidade é tão forte, opera-se o seu desdobramento em "preço da marca". Ou seja, a marca à qual se associa qualidade permite ou a prática do preço maior (quando o produto é destinado a consumidores de alto poder aquisitivo) ou favorece a venda massiva. E como a qualidade associada à marca se confunde facilmente com o renome da marca, é esse o espaço no qual a propaganda pode funcionar como agregador de preço ou indutor de vendas, por meio da identificação de "difusão da marca" com "renome da marca". Ou seja: aquilo que muito aparece por qualquer motivo acaba por ser identificado àquilo que muito aparece por conta da qualidade do que produz.

Não é possível supor, portanto, ao menos no mercado dos produtos não-artísticos, que o consumo possa funcionar, por si só, como o filtro que revela (ou cria), no final do processo, o coágulo da qualidade. Na verdade, a proposição parece ingênua ou absurda, pois é evidente que há muitos outros fatores que determinam a escolha. E mesmo no âmbito de produtos artísticos, como a literatura, é impossível pensar que o consumo se faça como um ato de escolha baseado na qualidade, pois junto com um livro de literatura, vendem-se muitas outras coisas: a imagem do autor, a imagem da cultura e o capital cultural acumulado pela editora, bem como o prestígio ou moda do tema ou do gênero da obra.

Ou seja, é certo, no caso dos produtos literários, que o público julga pela compra: ou melhor, decreta, pela compra, a sobrevivência ou a morte temporária do produto. Mas o público não compra espontaneamente, por necessidade e reconhecimento de qualidade. Compra porque existe a propaganda, a política dos lançamentos, as marcas; e a partir de apostas em respeitabilidade e responsabilidade: o nome do autor, o nome da editora ou galeria, o lugar do lançamento, as indicações dos suplementos, as críticas que leu ou — menos que isso — o número de vezes que viu o livro referido em espaços consagrados.

Por outro lado, o produto literário tem algumas particularidades que acarretam singularidade ao mercado literário. Umas dessas particularidades é a sobrevida em relação ao consumo, visível no fato de que, mesmo que o público decrete, por meio da recusa à compra, a morte de um produto literário, ele sempre pode ressuscitar, como produto, em algum momento do futuro, e tornar-se um sucesso de mercado.

Assim, se é certo que, tanto no caso do mercado dos produtos não-artísticos, quanto no dos produtos artísticos e literários, a crítica é apenas um dos elementos que promovem a venda, orientando a compra; também é sensível que a relação que cada um dos tipos de mercado mantém com ela é muito diferente.

Essa diferença se deixa ver com clareza, quando se desenvolve a analogia da crítica literária ou artística com a crítica dos produtos não artísticos.

 

 

4.

 

Da mesma forma que se pressupõe que um crítico de carros deva ter dedicado muito tempo a conversar sobre automóveis e a pilotar modelos diferentes, também se pressupõe que o crítico de música ouça muita música e que o crítico de literatura dedique muito tempo à leitura. E se é certo que é mais fácil julgar o desempenho de um Gol modelo esportivo e perceber o seu lugar no mercado depois de ter dirigido um Gol comum e um Porsche, também é mais fácil pronunciar um julgamento sobre um poema ou romance depois de ter lido, além da literatura contemporânea, a Divina Comédia, o Dom Quixote e um punhado de outros clássicos.

Desse ponto de vista, a crítica da literatura e da cultura não é nada diferente da crítica gastronômica, da crítica automobilística ou da crítica hoteleira: como orientação de consumo, pressupõe que seja exercida de um ponto de vista mais abrangente do que o do consumidor final e que a avaliação por ela fornecida seja fundamentada e confiável.

No mercado, a crítica é ainda um eficiente instrumento no aperfeiçoamento do produto. Uma avaliação negativa dos freios de um automóvel pode levar a empresa a anunciar, no modelo seguinte, uma nova opção. Ou, se a crítica apontar problemas graves, a empresa pode até mesmo fazer um recall.

É por isso compreensível que, para alguns vendedores de produtos e serviços, a crítica apareça como empecilho, como obstáculo aos negócios. Mas dificilmente se ouvirá uma voz de protesto contra a sua existência. Nisso é diferente a área da cultura, pois nela aqueles que produzem e vendem os produtos acham razoável erguerem publicamente a voz contra os que orientam o consumo.

Uma singularidade da literatura e das artes em geral é que há um ponto no qual a analogia com o produto industrial parece claudicar. Se pensamos por analogia, é certo que os leitores sejam os consumidores; mas não é tão certo que o produtor seja o autor, pois embora o autor seja o produtor do texto — que poderia, talvez, ser equiparado ao protótipo de um automóvel ou de uma invenção técnica —, o produtor industrial do objeto a ser vendido é o editor. Ou então: o produtor artesanal é, na maioria dos casos, o autor; o produtor industrial é o editor.

Mas essa divisão entre um momento artesanal ou artístico isolado e um momento de reprodução industrial também pode dissolver-se hoje em dia. De fato, é cada vez mais comum que as grandes editoras disponham, além dos já imprescindíveis encarregados de copidesque, de equipes de assistentes de escrita, aptos a desenvolverem, junto com o autor, o produto final, encarregando-se não só da avaliação da obra em andamento, mas ainda da própria elaboração e correção de rumos do projeto do livro que convém ao catálogo ou ao público previsto. Tal forma de produzir e controlar a qualidade do produto, que é comum no caso de livros de literatura infanto-juvenil, parece também cada vez mais usual, especialmente no caso dos livros que nascem programados para se tornarem best-sellers.

De qualquer maneira, o duplo estatuto do "produtor" de produtos literários é um diferencial da literatura em relação aos demais produtos da indústria do entretenimento. Esse duplo estatuto talvez seja um fator relevante da recusa à crítica, que é exercida em níveis diferentes pelas duas faces da instância produtora.2

O argumento mais comum, no campo dos produtores artesanais, é o de que todo o aparato crítico na verdade se coloca a serviço de um ponto de partida irracional: o gosto, a simpatia ou a antipatia irredutíveis que se instauram no processo de contato com a obra de arte. O segundo argumento, em freqüência, é o de que, diferentemente do caso de automóveis, não há elementos objetivos que permitam a comparação entre obras de arte, já que elas não teriam finalidade explícita.

Ora, no movimento de direção da compra, a voz do crítico são muitas vozes. Uma delas é, de fato, a do que compara com as obras similares, a partir de considerações objetivas sobre o gênero, a coerência, a novidade ou a mestria dos procedimentos. Outra é a que compara o objeto novo com os que o crítico elegeu como modelos, conforme o seu conhecimento do passado e o gosto formado a partir da sua experiência literária. Uma terceira é a que, organizando um julgamento com base num repertório de leituras e num caminho de vida, faz uma aposta num dos rumos possíveis do futuro. A conjugação dessas vozes de modo a resultar num julgamento útil e confiável depende, é claro, de algum talento inato, alguma inclinação que tenha orientado a sua vida para o objeto sobre o qual reflete.

O talento, o repertório e o método comparativo não são exigidos apenas dos críticos literários. Há vários outros tipos de profissionais, para os quais o repertório, o talento e o gosto treinado são essenciais e definem o seu lugar e preço no mercado: os provadores e avaliadores de tabaco, café, azeite e perfumes, bem como os enólogos e os gastrônomos.

É um dom inato ter bom paladar e bom olfato. Uma pessoa sem essas qualidades dificilmente poderia exercer as profissões acima, como uma pessoa com má coordenação motora não poderia ter bom desempenho como piloto de testes. Mas a disposição é apenas o primeiro elemento, que não é suficiente para formar um profissional: para isso é preciso experiência ampla, técnica e conhecimento de história. Seja do vinho, do café, do azeite, dos perfumes.

As analogias não são apenas de superfície. Tratada como um produto, a literatura não é, para a indústria editorial, diferente de um novo perfume para a indústria de cosméticos. Daí que a maior parte das editoras disponha de um corpo de consultores, de leitores profissionais, a cujo gosto e repertório confia a seleção dos textos em que fará o investimento para transformá-los em produtos industriais. São "provadores" de literatura, orientadores da produção industrial. E é muito freqüente que, como no caso dos provadores de vinho, alguns deles desenvolvam também a atividade na outra ponta, qual seja a de orientadores do consumo dos produtos industrializados.

 

 

5.

 

Entretanto, há um elemento que é preciso considerar, quando se procede à analogia da literatura e outros produtos artísticos com os demais produtos de mercado: os produtos artísticos são sujeitos não só a utilização constante ao longo de uma faixa de tempo muito estendida, mas ainda a constantes revisões de valores, em função das forças em ação no campo cultural. Isto é, sua obsolescência não é previsível, nem programada, nem fatal, a não ser em casos muito específicos.

Na comparação que venho fazendo com outras atividades de avaliação crítica, a diferença se torna mais sensível. É impossível provar a comida grega ou a medieval, cheirar o perfume do tempo dos romanos ou do Renascimento, bem como ter, numa adega, os vinhos mais conceituados produzidos nos últimos dois milênios. Mas, mesmo que não fosse, de nada adiantaria um enólogo que tivesse moldado o seu gosto por vinhos milagrosamente conservados desde o século XVI, pois não poderia aconselhar o seu consumo a ninguém, nem compartilhar a sua experiência de provador, para testar os seus critérios e afirmações. Da mesma forma, de que adiantaria, para um crítico de automóveis, dar uma volta num velho Ford T, na hora de avaliar o último modelo popular da marca?

Por outro lado, é possível ter, em bibliotecas e computadores, boa parte da literatura que se fez ao longo dos séculos. É certo que não temos ali os textos tais como foram lidos no tempo da sua produção. Temos os gestos textuais, as palavras particulares. Elas se articulam contra o fundo das demais palavras que as preenchiam de sentido, por oposição ou complementação. Essas se perderam ou estão dispersas em muitos livros, e cabe ao estudioso especializado recompor o léxico, a sintaxe do momento em que surgiu um livro ou poema e avaliar a realização também em função do horizonte das expectativas em vigor. E é certo também que, ao lermos um texto do século XVI, por exemplo, lemos esse texto por meio do filtro inevitável de inúmeras leituras que dele foram feitas antes de nós. Assim, pode ser que os textos antigos que lemos nas edições originais das bibliotecas ou nas novas edições, quando existem, sejam apenas sombra pálida, desenho por terminar, em relação ao que foi esse texto ao longo dos séculos. Mas não há nada parecido no ramo das artes aplicadas, como a perfumaria, a enologia, a gastronomia, e mesmo a decoração. E o que se passa com a literatura se passa também com outras artes, como a pintura, por exemplo, e com a música a partir de certo momento.

Assim sendo, os críticos dos modernos produtos industriais não-artísticos têm um campo comparativo imensamente mais restrito do que os de literatura, artes e música. Seu julgamento se restringe ao que se oferece ao consumo, por comparação com produtos similares. A crítica da cultura, por outro lado, não precisa restringir-se à comparação entre produtos similares e concorrentes lançados simultaneamente. Pode ampliar o espectro comparativo, pois os produtos do passado estão todos também aí, no mercado, concorrendo com os novos.

Por isso a crítica da cultura, e da literatura em particular, é mais difícil de ser exercida com consciência e é mais cruel com os criadores de produtos.

É mais difícil porque pressupõe, como qualquer crítica, domínio razoável do repertório. E esse é imenso. E, só tendo lido extensamente o repertório, o crítico poderá ter uma amostra e um padrão comparativo a partir do contato com os textos que formaram os conceitos e padrões, com os quais, de modo direto ou indireto, os textos contemporâneos dialogam.

É difícil ler a Comédia, de Dante. É preciso preparo filológico e é preciso tempo disponível para leitura. Mesmo para ler uma boa tradução. Também é difícil, em medida variável, ler Os Lusíadas, a Eneida e uma série de outros textos de caráter épico. Mas sem os ler, como pretender avaliar o valor relativo, a função e a oportunidade de um poema do mesmo gênero lançado há cem anos ou no dia de hoje? O mesmo sucede com cada um dos gêneros e formas literárias, de tal maneira que seria ocioso listar qualquer conjunto mínimo de leituras. As listas de leituras indispensáveis estão em toda parte. E é preciso não só inclinação, mas, ainda, trabalho, persistência e dedicação, para formar um repertório mínimo de qualidade crítica, isto é, um conjunto de leituras abrangentes, que leve em conta não só os textos, mas também a sua história e a história de sua recepção ao longo do tempo.

O investimento na leitura abrangente é um dos fatores que distinguem um bom crítico de um bom leitor comum. Este, não se propondo a ser um profissional, terá outras prioridades de investimento de tempo e de recursos e, decerto, não tratará, obrigatoriamente, de passar longos períodos numa biblioteca, todos os meses, ou de investir pesadamente na aquisição de uma biblioteca pessoal, ou de dedicar várias horas de todos os seus dias à leitura e à reflexão sobre a literatura e a cultura.

O que não significa que um bom leitor não possa escrever uma boa crítica, ou que um crítico com formação e empenho não possa escrever uma crítica medíocre. Na verdade, tudo pode acontecer. Principalmente maus leitores escreverem má crítica, o que é o mais freqüente e certo.

Mas, deixando de lado os casos extremos e a qualidade do texto, e tendo em vista apenas a tipologia, é possível dizer que a atividade crítica, principalmente a que se produz para a imprensa — isto é, a crítica que se dispõe e se propõe a orientar o consumo —, é exercida basicamente de duas formas, conforme o ponto de vista e o repertório.

De um lado, temos a atividade que firma conceitos e avaliações a partir da experiência direta e imediata com o objeto, isolado no tempo do presente. Na verdade, trata-se de uma ilusão: a crítica que procede dessa forma está condenada a ser a expressão do presente imediato apenas na medida em que isso significa render-se ao lugar-comum do passado imediato, às fórmulas e esquemas de pensamento dominantes, que dão o conforto do já sabido e que são, em regra, uma mistura incongruente de pedaços vários de postulações canônicas que, na origem, poderiam inclusive ser auto-excludentes. É aqui que se enquadra a maior parte do que hoje se denomina "jornalismo literário"; e é este o reino tanto do press-release, quanto da crítica de compadrio.

De outro lado, temos a atividade de propor revisões de princípios e de avaliações, em função de mudanças nos horizontes do campo, da perspectivação histórica e de um amplo repertório de referências. Para dizer de outro modo: a atividade de avaliar o objeto e, ao fazê-lo, avaliar e reorganizar o próprio padrão de julgamento. Essa atividade crítica, recusando o lugar do já falado e recusando ser simplesmente o discurso que sanciona o já esperado, contribui para determinar a forma da recepção futura dos objetos que analisa. Ou seja, trata-se de uma atividade que busca criar as condições para a sobrevivência dos objetos novos com que se defronta e que terá mais poder nessa função, quanto mais novos, inusitados e exigentes forem os objetos criticados.

Portanto, a especificidade do produto "literatura" é que torna a crítica literária, na sua segunda modalidade, uma atividade de extrema relevância. Na verdade, essa especificidade exige a crítica. E é apenas a precariedade da reflexão que pode explicar que alguém a julgue dispensável ou impossível, por meio de argumentos que conjugam taticamente a apologia do mercado como instância de consagração e a defesa da literatura contra a crítica, com base na postulação de que, por ser da sua natureza apresentar o novo — ou seja, aquilo que foge ao gosto contemporâneo — a verdadeira obra de arte só pode ser julgada (isto é, consagrada, pois as que não o forem não se apresentarão como objeto) no futuro.

 

 

6. 

 

Vejamos agora o segundo ponto específico da crítica da cultura e, especialmente, da crítica literária. A sua crueldade para com os produtores se manifesta de duas formas: a crítica literária não apenas desenterra concorrentes, mas ainda insiste o tempo todo num argumento incômodo e de todo descabido no reino dos produtos industriais não-artísticos. Esse argumento, se fosse aplicado à avaliação crítica de automóveis, por exemplo, seria desenvolvido mais ou menos assim: caro leitor, você não está condenado a andar de Uno Mille ou de Fusca recondicionado, pode andar de Audi ou de Ferrari aproximadamente pelo mesmo preço. E, sobretudo: prezado leitor, o que lhe estão oferecendo como se fosse um automóvel novo ou do futuro é apenas uma versão mais simples ou compacta de um carro clássico que ainda está à sua disposição pelo mesmo preço do que agora lhe oferecem.

Isso porque não só os livros do passado são continuamente reeditados, mas também porque o livro é uma mercadoria sui generis no que diz respeito ao preço: é um dos poucos produtos industriais cujo valor de mercado é calculado pelo suporte material e não pelo valor a ele agregado pela técnica ou pelo investimento em pesquisa e desenvolvimento necessários à sua elaboração. Isto é: um livro clássico ou um lançamento — desde que similares em tamanho, tipo de papel, encadernação e quantidade de ilustrações — têm aproximadamente o mesmo preço por página impressa. Essa é uma característica muito singular da "literatura" como produto industrial, que ela compartilha, em certa medida, com as histórias em quadrinhos, com a música e o cinema. E, claro, com o resto da mídia impressa.

Na prática, isso significa que um leitor pode entregar o seu dinheiro à livraria para adquirir uma edição moderna do D. Quixote ou de um romance de Dostoiévski, um romance brasileiro de autor iniciante ou um assinado por um autor estrangeiro de sucesso. Já o principal valor de uso, isto é, o prazer da leitura, não sofre prejuízo com a diferença de época de concepção do produto e é concorrente, mesmo entre objetos muito distantes no tempo.

Daí provém, talvez, parte da reação passional com que os produtores de literatura reagem à crítica que põe o seu trabalho em perspectiva e insiste em avaliá-lo tendo em vista a tradição do gênero e a proporção da obra em relação às que a precederam.

Daí também a dificuldade de a crítica de literatura ou de artes ser exercida, mesmo enquanto orientação de consumo, com responsabilidade e consciência: de um bom crítico se espera no mínimo bom conhecimento do repertório dos produtos similares, espalhados ao longo do tempo e das línguas, para que possa exercer a sua atividade de valoração e aconselhamento de compra.

A conjugação da recusa à crítica por parte dos produtores e da dificuldade da preparação intelectual do crítico favorece o predomínio do simulacro de texto crítico que é o comentário superficial, na forma de resenha apressada, nota pontuada de transcrições e sinais de gosto ou paráfrase do press-release. Ao mesmo tempo, talvez como decorrência culpada da promoção de um dado tipo de prática (e portanto, nesse caso, talvez com alguma justiça), o movimento contra a crítica traz freqüentemente à baila, na discussão sobre a cultura, a censura aos críticos literários contemporâneos, cujo nível médio estaria muito abaixo do de outrora.

 

 

7.

 

Na sua versão mais simples, a censura adquire um tom de lamento abstrato, com forte cor nostálgica: os críticos de antigamente seriam mais preparados, teriam mais tempo e mais espaço para exercer a sua tarefa e por isso puderam reconhecer, em cima da hora, o que de fato ficaria do seu tempo.

Na versão mais complexa, a decadência da crítica é corolário da perda de centralidade da cultura erudita na época da indústria cultural: assim como as artes eruditas perdem espaço e importância social numa sociedade midiática, assim também a crítica perde espaço, destaque e remuneração nos meios de comunicação de massa. Perdendo espaço, a crítica perde importância na formação do gosto. Perdendo importância social, as artes eruditas já não atraem as pessoas talentosas e dotadas de cultura, capazes de exercer a crítica no jornal no nível dos indeterminados velhos tempos.

Pode ser que as duas maneiras de perceber e explicar a atual dificuldade e limitação da crítica cultural e, especialmente, a da crítica literária, tenham pertinência. Mas, ao menos no caso da crítica literária que se exerce em jornais e revistas hoje, penso que algo fundamental escapa ao analista, se ele não apreende a transformação essencial pela qual passam a crítica de rodapé, a resenha de jornal e as páginas literárias de revistas hoje no Brasil.

Essa transformação me parece consistir na redução da crítica a extensão do marketing de editoras ou produtores, bem como a arena de combate entre produtores reunidos em grupos em disputa por nichos literários.

Para uma crítica assim compreendida, é indiferente saber separar o velho e ruim, ainda que vestido de novo, do velho e bom, bem como de valorizar devidamente o que é novo e bom, de acordo com uma perspectiva consistente.

No caso da analogia com o mercado de automóveis, esse tipo de atividade crítica corresponde aos produtos da assessoria de imprensa das montadoras, e não ao texto de avaliação de uma revista confiável.

Nesse quadro, se há uma decadência na qualidade média da crítica, ela se explica principalmente pela sua rendição ao mercado nesse sentido específico, ou seja: a sua rendição ao interesse de uma ponta do mercado (os produtores) faz com que a crítica deixe de ter valor na outra ponta do mercado (os consumidores), pois ela é cada vez menos um guia confiável para o consumo imediato.

Mas é preciso entender exatamente o que significa "rendição ao mercado", no caso da crítica literária. E para isso é preciso refletir sobre qual a sua real importância para o mercado dos bens literários e qual a sua função nele.

É certo que, no caso dos best-sellers, especialmente os do gênero auto-ajuda, o valor de mercado da crítica é nulo. Os investimentos industriais de promoção do best-seller se fazem no marketing direto e, sobretudo, na propaganda e no merchandising.

Há, porém, uma série de produtos que não podem prescindir do marketing indireto da crítica literária, que ainda é o meio mais eficaz de promoção de todo produto literário que aspira à respeitabilidade canônica. E isso não só pelo prestígio abstrato do cânone, mas porque o cânone agrega ao produto um valor muito concreto, que é torná-lo adequado ao consumo escolar. Um valor nada desprezível num país como o Brasil, no qual o número de leitores é pequeno, o nível de riqueza é baixo e o consumo do livro é ainda muito dependente da sua inserção na escola, seja por conta da indicação do professor, seja por conta das compras realizadas por órgãos governamentais para formação de bibliotecas.

A conjugação desses vários fatores dá o predomínio quase absoluto, no Brasil de hoje, da crítica-marketing, que se esforça para agradar ao maior número possível de clientes e interessados no fato literário, como forma de preservar a sua fonte de renda, localizada nos serviços que presta, direta ou indiretamente, à indústria editorial.

A favor da manutenção e da ampliação desse espaço e predomínio está, desde logo, o poder que dá aos seus praticantes a ligação com os centros decisórios da produção industrial: os editores a quem esse tipo de crítica favorece e as editorias dos jornais e revistas que lhe confiam o espaço para o exercício da sua profissão.

Nessa participação no poder, complementada por uma ação pautada pelo compadrio e pelo estabelecimento de relações afáveis com os produtores culturais, reside o grande poder de cooptação da crítica-marketing, que a projeta publicamente como modelo de método e padrão textual.

Por fim, com a redução do espaço e da importância da crítica de segundo tipo — ou seja, a crítica como ensaio ou criação de novos padrões consistentes de recepção e de avaliação da obra literária, capazes de passar à geração seguinte como descobertas significativas ou contribuição ao cânone vigente —, diminui também o espaço presente e futuro para o surgimento e sobrevivência de obras nas quais o novo seja algo mais do que o simples traço distintivo num conjunto moldado pela mesmice.

Ao predomínio da crítica-marketing corresponde, dessa maneira, o predomínio da inércia no campo literário, a despeito do aumento do volume nominal da produção. E, com o predomínio da inércia e ausência de obras que desafiem a reflexão e os padrões usuais, o círculo se fecha com o aumento da pressão para extinguir os poucos focos de crítica atuante, reduzindo o seu espaço na mídia e desqualificando a sua atividade como conservadora, antiquada ou francamente nociva ao interesse da criação literária.

 

 

8.

 

O quadro, entretanto, não é estável. O diagnóstico da situação combalida da crítica literária hoje no Brasil não produz fatalmente o prognóstico da perpetuação do estado atual.

É possível que tudo continue como está e que o espaço da crítica termine por ser totalmente ocupado pelo marketing e pelo colunismo social.

Mas a indústria editorial e de entretenimento está em expansão no Brasil. E por isso é também possível que o crescimento da oferta de produtos literários e do mercado editorial, acirrando a concorrência, exija a criação de espaços qualificados, nos quais a crítica volte a exercer-se como guia de consumo.

A própria recusa à crítica, tão presente nos meios de produção literária e artística, pode ser um mero movimento defensivo, uma forma de apego a um estado de coisas prestes a romper-se por dentro, pela própria lógica das necessidades industriais, num momento em que o campo cultural e de entretenimento no Brasil sofre mudanças radicais.

A mesma lógica que determina a existência de revistas de crítica e avaliação de produtos de alto valor agregado, como computadores ou automóveis, pode vir a determinar, na medida mesma que o mercado literário se fortalecer, o surgimento de lugares críticos cujo valor repouse sobre a confiabilidade, a novidade e a independência da avaliação.

Para um olhar otimista, pode mesmo haver alguns índices de mudança: a multiplicação dos espaços nos quais a crítica se possa exercer de modo isento e independente dos interesses industriais, como, por exemplo, nas páginas da internet, que não dependem do financiamento editorial, mas que pressionam o mercado, pois em geral aspiram à publicação industrial, a exemplo do que ocorre na música, com gravações demo preparadas para testes em grandes gravadoras; o debate que se instala no interior da academia, onde se formam justamente os profissionais mais aparelhados, sobre as finalidades e formas da crítica, especialmente a de orientação de consumo, também chamada de jornalismo cultural; a abertura de nichos de mercado para publicações que, por meio de textos produzidos por jovens críticos ou de traduções de críticas publicadas em conceituados suplementos estrangeiros (uma vez que já não existe nenhum no Brasil), reponham a questão do valor no centro do interesse da leitura.

Também é possível que o crescimento do mercado literário, aumentando muito o público em geral produza um público significativo para a crítica que não seja marketing. Um público que se interesse por ela como prática de escrita reflexiva, atividade investigativa de potencial (auto)cognitivo ou mesmo terapêutico, ou ainda como uma outra maneira de fazer literatura.

O certo é que não há como saber, neste momento, o resultado do jogo em curso. Para usar uma analogia com o xadrez, não se trata de um final de peões; pelo contrário, ainda há muitas peças livres, movendo-se pelo tabuleiro. Não há, portanto, como prever, a não ser como projeção de desejo e como forma de se guiar nas tensões da posição presente, o que será o futuro da crítica nas próximas décadas no Brasil.

Por isso, uma das principais funções da crítica hoje é explicitar e analisar com rigor e com frieza as causas e efeitos da recusa à crítica que parece ter-se instalado na cultura brasileira dos últimos anos, a ponto de se exibir orgulhosamente como gesto de ousadia, ao invés de se ocultar como flerte secreto com a barbárie.

Foi o que tentei fazer aqui, circunscrevendo os argumentos à aceitação tática de um lugar-comum encontrado em várias manifestações contra a crítica: o de que o mercado deve decidir a qualidade das obras e que o lugar da crítica, se existe, é apenas o de marketing de produtos ou de guia de consumo.

Não significa isso que concorde com essa posição, e muito menos que eu afirme não haver diferenças importantes entre os produtos artísticos e os bens de consumo imediato. Mas como é difícil responder de um modo a questões que são formuladas em outro modo, tentei fazer aqui, para estimular a discussão, um exercício de combate com as armas brandidas pelo adversário.

 

 

 

 

[Este artigo retoma, com alguns acréscimos, o texto lido no evento "Jornalismo Cultural", do Fórum Permanente de Arte & Cultura da Unicamp, em 1º de setembro de 2005]

 

 

 

 

 

Notas

 

 

outubro, 2005

 

 

 

 

franchet@unicamp.br