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......Há algumas semanas, mencionei, numa resenha de dois livros de escritores jovens, um artigo escrito por Mário de Andrade em 1939.¹
......Nesse texto, intitulado "Feitos em França", o modernista comentava a curiosa experiência de reler, em francês, alguns contos brasileiros. "Me surpreendi — escrevia ele — encontrando certas páginas, minhas velhas conhecidas, que eu sempre tivera por medíocres ou mesmo integralmente ruins. Pois não é que essas páginas, vindas agora refeitas de França, me agradavam lerdamente, algumas chegaram a francamente boas!".
......Na seqüência, Mário explicava o fenômeno pelo fato de o português jamais se ter constituído em "língua literária". Enquanto na França pouco se distinguiria, quanto à língua, um escritor médio de um escritor grande, no Brasil, não havendo um padrão, todos os grandes escritores tinham de criar uma expressão lingüística peculiar, tinham de ser "estilistas", isto é, "criadores de uma expressão lingüística que lhes é peculiar".
......Ao comentar os dois livros, nos quais a busca de uma linguagem neutra me parecia ser o ponto de interesse, tentei refletir sobre o que significa um tal anseio nos nossos dias. Vendo com simpatia o esforço dos dois escritores em trabalhar uma linguagem despida, plana e culta, na fronteira do lugar-comum, tentei verificar se apenas essa linguagem padrão poderia garantir, hoje, o interesse da leitura. Concluí, face à previsibilidade dos enredos e à pouca tensão narrativa, que não.
......Agora, quando li Erefuê, terceiro livro de Evandro Affonso Ferreira, foi inevitável pensar que estava no outro braço do dilema esboçado por Mário de Andrade. Pensei, pois, que valeria a pena escrever sobre esse livro, em contraposição complementar aos dois que resenhara para o jornal.
......Isso porque Evandro é evidentemente um "estilista", para usar o termo de Mário. Criou um idioleto, com sintaxe e prosódia próprias. Bastaria uma página desse novo livro, destacada sem nenhuma informação de autoria, para que o leitor que já teve o prazer de ler Araã! pudesse reconhecer o estilo e acertar com o nome do escritor.
......As frases de Evandro são equilibradas, musicais. Em várias ocasiões, sente-se mesmo a presença, nas codas, dos esquemas rítmicos predominantes na língua portuguesa. Não é prosa poética, no sentido moderno da palavra. Mas se vale de algumas cadências preferenciais, e também da repetição de epítetos e de frases inteiras, o que a aproxima da matriz épica. Por exemplo, na página 18 encontramos este início de parágrafo: "Apagar tudo-todos hã impossível como...". Essa fórmula se repete umas tantas vezes, até se fixar, na página 38, na estrutura "impossível apagar tudo-todos principalmente dia aquele", que reaparecerá com variações mínimas a cada duas ou três páginas, como um leitmotiv, ao longo do resto do livro. A frase mais recorrente no livro, porém, à maneira homérica, é esta: "Sim senhorita entendi: jurados continuam feito elas Parcas regulando minha sorte".
......Nessa última frase se mostram ainda alguns outros traços fortes do estilo de Evandro: a cadência métrica (da leitura resulta um bloco que se abre e encerra com uma seqüência rítmica de sete sílabas poéticas), a incorporação da referência mitológica clássica e a sintaxe de torneio muito peculiar.
......Quanto à sintaxe, os traços mais característicos são três. O primeiro é a utilização pleonástica do objeto. Trata-se de um procedimento sistemático, que consiste na aposição do qualificativo ou do nome ao pronome. Ou, de modo mais simples, na substituição do artigo definido ou indefinido por um pronome redundante: "ainda me lembro deles rapazes de sexo ambíguo", "nada mais existe em respaldo dela existência", "na forquilha dele meu estilingue havia cicatrizes de vários assassinatos infantis", "passando parafina nela linha para derrubar papagaio alheio", "são poucos os sofrimentos que se dão inteiramente sem ela nossa culpa". O segundo é a posposição do demonstrativo: "principalmente manhã aquela em que ouvi", "impossível esquecer pastor predicante aquele na pracinha". O terceiro, finalmente, é a intercalação freqüente de palavras onomatopaicas: "aceito sim obrigado glugle glugue glugue huumm água gelada", "lembranças chegam de cambulhada ixe jovenzinho catorze quinze se tanto puh casas todas de madeira".
......A incorporação de referências mitológicas vem já do livro anterior. Faz parte de uma estratégia mais ampla, qual seja a apropriação algo despropositada de referências da alta cultura ocidental. Digo que é algo despropositada porque o acúmulo de referências, frases e informações produz o efeito irônico de um jogo de conhecimentos gerais ou curiosidades. A matriz é reconhecida no livro, quando informações do mesmo tipo das que abundam nas falas das personagens constituem a decifração de um problema de palavras cruzadas. Essa matriz explica também o preciosismo vocabular, o gosto por palavras desusadas, eruditas ou de escopo regionalista.
......Todos os procedimentos aqui descritos já se encontram no livro anterior de Evandro, Araã!. Ali, tínhamos, em fluxo de consciência, um vendedor de enciclopédias que ia desfiando o saber do seu ofício, enquanto sucediam-se mortes de pessoas próximas e se ia afirmando a sua solidão. Era ao mesmo tempo pungente e divertido vê-lo, com a mesma sintaxe de Erefuê, arrumar no seu quarto os livros, dos quais pinçava trechos, informações, verbetes, toda a civilização em retalhos, com os quais tentava escorar as suas ruínas. Era próprio tanto o discurso, que era expressão de uma determinada personagem, quanto o recurso à colagem cultural e à busca desesperada de sentido, que era a condição dessa mesma personagem. Ou seja, a construção tinha coerência própria.
......Mas aqui, neste novo livro, alguma coisa se perde, na minha opinião. Trata-se da história de um Menelau corno-manso casado com uma Helena ninfomaníaca. Um dia, não resistindo a um acesso de cólera, assassina um dos inúmeros amantes da mulher. Preso, aguarda o veredicto do júri, enquanto desfia lembranças e medita, entre outras coisas, sobre a natureza do seu prazer na vida que levou. Suas lembranças são interrompidas por cenas compostas à maneira de falas teatrais, nas quais um júri de dez pessoas delibera sobre o seu destino.
......O problema é que, agora, nem a colcha de retalhos culturais, nem o discurso idiossincrático se sustentam por si sós. É certo que se pode, com algum esforço, entender que os jurados que falam e debatem são produto da imaginação do protagonista. Isso permitiria entender a sua sintaxe, que é muito próxima à de Menelau, bem como a sua obsessiva disputa e exibição de referências eruditas. Mas, diferentemente de Araã!, a única razão para a profusão de frases que parecem uma glosa de almanaque filosófico ou uma encenação de jogo de curiosidades culturais, é a autoridade do narrador. Ou, talvez, e esse seria o problema maior, o estilo do autor.
......Na orelha do livro, Celina Balducci, heterônimo heterossexual do escritor Ricardo Lísias, afirma que o livro é "uma festa em homenagem à literatura". Celina toma o cuidado, desnecessário a meu ver, de assinalar que não há no livro espaço para a "farra inconseqüente ou a brincadeira vazia". Isaías Carvalho Jr, que assina o posfácio, procura, por sua vez, discernir os fios de continuidade que ligam os três livros de Evandro e conclui que o principal deles é o estilo. Ambos os apresentadores, assim, cada um à sua maneira, tratam de um problema que me parece central nesse livro: a relação entre, por um lado, o estilo, o vocabulário, a forma de incorporação de referências culturais (semelhantes a Araã!) e, por outro, o que é específico desse romance: o seu enredo e o caráter das suas personagens.
......O nó da questão, portanto, que me parece estar na base de qualquer aproximação conseqüente a este livro é este: Erefuê é um texto inteligente, um livro que se lê com muito prazer; ao mesmo tempo, principalmente se o leitor o lê depois de ter lido Araã!, fica um travo estranho da leitura. Fica alguma coisa por justificar ou compreender.
......Quando li Araã!, pareceu-me ver um Riobaldo da cidade grande. Tal como Rosa, Evandro parece disposto a desenvolver e fixar um estilo muito peculiar. Entretanto, as situações me parecem diversas. Na ficção de Rosa, o estilo se oferece como estilização de uma fala marcadamente não urbana. O espaço em que ocorre é o sertão, que se vai constituindo, na sua prosa, como espaço quase atemporal, para o qual confluem ou onde se espelham todas as tradições, mitos e formas de linguagem. A sintaxe própria, os jogos de sentido, a criação de palavras novas, tudo isso aparece no bojo de um desenho lingüístico cuja motivação se vale do prestígio do registro regionalista, que é redimensionado, mas permanece com a marca da origem. Ou seja, a forma cria uma função que a justifica, do ponto de vista da verossimilhança mínima exigida para o deslanche do jogo ficcional.
......Na ficção de Evandro, os procedimentos sintáticos e a escolha vocabular, que tinham vitalidade e apareciam sem excesso de maneirismo em Araã!, parecem, neste livro, estar a ponto de se absolutizar como estilo fixo, aplicável a qualquer objeto, impermeável a qualquer situação particular. O que, do meu ponto de vista, seria uma grande perda.
......Também me parece um problema a desproporção entre a novidade e força da linguagem e a elaboração da trama. De fato, o enredo sofre com a análise detida. Menelau, na noite de núpcias, aceita um ménage a quatro, durante o qual é sodomizado na frente da mulher. A partir daí, se submete a todas as humilhações que Helena lhe impõe: ela conta o episódio para a família dele e faz sexo com um grande número de parceiros. É certo que presenciar as cenas de sexo de Helena com outros dá prazer a Menelau; mas também é certo que o enredo tem pouco desenvolvimento no que diz respeito à ira acumulada, ou aos movimentos internos da personagem principal. Isso faz com que o ato que desencadeia a narração — ou seja, o assassinato de um dos amantes de Helena e a sodomização da própria, na frente do cadáver — não redimensione a personagem, nem deixe qualquer espaço à indagação psicológica do leitor. Descrita a cena inaugural do ménage, compreendida a cena do assassinato, que se apresenta logo de início, o restante do livro se apóia exclusivamente no trabalho do estilo.
......Por isso, Erefuê e os dois livros mencionados no início desta resenha, nos quais penso ter identificado um grande esforço de obtenção de linguagem neutra e culta, ocupam, do meu ponto de vista, posições opostas e complementares. Balizam as aporias que devem enfrentar os que se afastam do mainstream do romance contemporâneo de consumo rápido.
......Nesse sentido, Erefuê me parece um livro no limite. Sustentado pela força do estilo, mantém ainda o interesse de leitura e garante ao seu autor uma posição de destaque no quadro da prosa brasileira contemporânea. Fico, entretanto, curioso para ver como poderá sustentar-se um quarto livro no mesmo registro, ainda mais se for mantido o gosto da referência enciclopédica. Tendo o autor solidificado essa maneira própria, pergunto-me se terá coragem de a abandonar; ou se, não a abandonando, conseguirá encontrar uma forma de a manter viva, tornando-a outra vez funcional e eficaz.


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¹"Um eficiente trabalho de copidesque". Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 23 de maio de 2004. Os livros eram: Longe da água, de Michel Laub; Os lados do círculo, de Amilcar Bettega Barbosa.
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O livro: Evandro Affonso Ferreira. Erefuê. São Paulo, Editora 34, 2004.

Dois primeiros capítulos de Erefuê