Uma questão de pele

 

Seus troféus marcados em sua pele. A ferro quente, tinta. Tatuagens belíssimas, à custa de muita dor. Formas irreais, aladas, em movimento. Azuis e rosas, alaranjados. Seu corpo coberto por aquilo de sonho, alucinação. Ele mesmo desenhava as figuras, com detalhes, fazia os desenhos a lápis de cor, horas e horas de delicadeza e paixão. Depois, ia até o ateliê de tatoo mais confiável e deixava a transformação acontecer. A cada vez, ele era outro. A cada vez, seu poder sobre si mesmo aumentava mais e mais. Uma obsessão. Não conseguia compreender o porquê.

 

Ele trabalhava no centro da cidade, perto do bairro oriental. Numa cidade qualquer, num centro qualquer, no bairro oriental de sempre. Toda a sorte de olhos puxados misturados a pensamentos zen. Óleo de soja, peixe frito. Legumes com shoyu. E artes marciais em profusão. Ele sentia-se bem ali, era admirado, respeitado, podia até afirmar que era idolatrado. Não entendia muito bem o porquê daqueles sorrisos de admiração, ele, um estrangeiro ali. Na verdade, ele era alguém bem simples, um favelado que nem falava português direito quanto mais essas línguas alienígenas. Sinceramente, não compreendia uma palavra que lhe dirigiam. Mas, era querido ali, como nunca antes.

 

Foi caminhando pela rua principal do bairro que ele a viu pela primeira vez. Uma espécie de princesa do lugar, uma menina quase moça, filha do mafioso mais poderoso dali. Daquelas que nunca ele poderia nem sonhar. Mas, foi ali, no meio da rua, ela passando no carro do pai, devagar, que ela o olhou. Olhos puxados, alongados, doces. Felinos, escuros. Não conseguiu evitar perder-se por um momento. Deixou os papéis soltos na mão e eles voaram com o vento. Acordou com o movimento deles, em volta. Porra, tinha que ir ao banco.

 

Todos os dias, ele passava no mesmo local, esperando por ela. E todos os dias ela vinha. Seus olhares em plena hora do rush. Fumaça de carro envolvendo tudo.

 

Foi numa dessas quebradas que ele a viu esperando por ele. Parecia ofegante, nervosa. Ele não compreendia as palavras dela e ela o levou para dentro de uma casa, escura. Ali, ela arrancou a blusa dele e acendeu a luz. Contemplou-o religiosamente. As formas desenhadas em seu dorso, o mundo mágico delas. Delicadamente, sua mão passeou por dragões, pássaros, plantas imaginárias. Sua mão suave tocando tigres de bocas arreganhadas, diabos alados, fogo. Traços finos, curvos, contornos e sombras. Ficaram horas ali, ela penetrando o mundo dele, ele sentindo a sua mão de menina. Amor.

 

Já fazia um tempo que ele se sentia observado. Seguido, mesmo. Andava pelas ruas do bairro e era como se alguém estivesse respirando atrás dele, sua sombra lhe pesando. Procurava quem, mas não tinha ninguém, estava enlouquecendo. Será que alguém tinha visto os dois? Não, ele já estaria morto a essa hora. Lembrou-se do desenho que estava fazendo dela. Caramba, estava demais. Como ela era linda. Até no desenho. Já estava com mais da metade da grana pra mandar fazer a tatoo. Ela vai ficar perto do coração, cubro o cisne, pensou. Aí, nem viu o carro. Morreu na hora.

 

Ela em seu quarto de princesa, branco, dourado e vermelho claro. Pequenas flores envolvendo tudo, cheiro suave. Seus cabelos lisos e pretos na fronha de seda e ela sorri, feliz. Olha em volta e vê como tudo parece mais bonito: o teto, as paredes, sua cama, seu corpo. A luz do quarto manchada com azuis, laranjas e rosas: tigres nas paredes brancas, dragões pelo teto, e em seu corpo: um cisne. A pele dele em seu abajur, iluminando tudo.

 

E onde quer que ele esteja, agora compreende: era por ela.

 

 

 

 


Espelho

 

        para Luis Felipe

 

Seus dedos, em primeiro plano, refletidos na maçaneta redonda da porta. Sua mão úmida molha pequenas gotas no metal gelado e prateado, brilhante como uma bola de árvore de natal. Lembra-se da primeira vez em que se olhou numa delas, do seu nariz em primeiro plano, dos seus olhos ao fundo, alongados. E da sua boca esticada e curva. Vermelhas, as bolas de natal eram vermelhas, antes. Não existia essa profusão de plásticos, linhas, fitas de cetim e cores. Lojas inteiras vendendo acessórios de natal, american way of christmas. Of happiness. Abaixa-se e olha-se na maçaneta. Talvez, o que mais tenha mudado seja o brilho de seus olhos. E o cavanhaque. Ouve as vozes lá dentro, reconhece algumas, pressente a noite que vai ter e lembra. Lembra-se do longo momento em que, pequeno, desprendeu uma bola de natal da árvore e ela caiu no chão da sala. Espatifou-se, porque elas eram vermelhas e de vidro, antes. De um vidro tão delicado e fino, tão frágil, tão lindo. Aí ele se viu ali, dividido em mil pequenos pedaços a movimentarem-se pelo chão. Vários eles revirando-se em espelhinhos arredondados e o silêncio absoluto da sala e a sua mão cortando-se profundamente ao segurar os pequenos pedaços de vidro que balançavam ritmadamente no chão de taco. O vermelho escorrendo por entre os pequenos retalhos de espelho, o vermelho tornando-se líquido, o sangue escorrendo pelo chão. Os gritos de todos e sua feição extasiada, a beleza daquele momento pertencia só a seus olhos, só a ele, e a vassoura da sua mãe a afastar tudo dali, o sangue preso por ataduras, e o seu gesto de desespero, não, não podiam fazer isso, ele queria ver mais, queria ver o brilho, o vermelho, ele em pedaços arredondados, e então, correu até a árvore e a derrubou, quebrou todas as bolas de vidro espelhado, pedacinhos de luz vibrando pelo chão, rostos espatifados refletindo sustos, sua mãe aos gritos, seu pai apertando seus braços, seus pés cortados infinitas vezes, seu rosto ardendo, a beleza! A vida lhe mostrando pela primeira vez que a beleza dói — corta — machuca. A beleza corta fino e faz sangrar. Ela atravessa, reflete. A beleza arde. A beleza queima.

 

Abre a porta com nojo das bolas de plástico.

 

 

 

 


Não, eu não te amo.

 

Porque quando eu penso em você vejo seus olhos me olhando e suas mãos nos meus braços. Depois, você me leva prum canto qualquer, me agarra e a gente se beija na boca. Eu gemo, você me morde o pescoço e eu sorrio de olhos fechados. Você me empurra contra a parede e eu puxo seu cabelo pra ver o seu rosto. Você me olha com essa carinha linda e diz que eu sou tudo pra você e que você não pode mais viver sem mim. E eu digo que você demorou muito e que eu não sabia o que era vida antes de você aparecer. A gente vai se descobrindo, nossas mãos brincam por todo lado e nossos corpos se encaixam, assim, perfeitamente. A gente fica sem ar e se olha como se o mundo fosse acabar amanhã e a gente nunca mais fosse se ver. Você segura meu rosto e diz que nunca viu nada mais lindo na sua vida. E eu te olho nos olhos e não digo nada, só choro.
Não, eu não te amo. E isso, não é amor. Isso, baby, só existe no cinema.

 

 

 

 


Ânsia
 

Por certo foi engano. Seria esta a sua vontade? Você, de outra, não meu. Mas não, acho que não. Foi certa a vontade toda, minha. Minha fome imensa de você. E você na minha frente aos pedaços. Oferta. Bandeja. E eu lhe recebi em minha boca e mastiguei você inteiro, inteira, com força. Era toda eu: boca e dentes. Devorei você, senti seus sabores e mais. Salivei. Escorri saliva pelo canto da boca e me fartei do seu gosto, de seu cheiro, de suas entranhas. Seus sabores mais escondidos. Seus sabores secretos. Lambi cada pedaço seu. Triturei cada parte. Misturei você aos meus fluídos. Engoli você, sôfrega, ávida.

 

E aí que meu próprio corpo não agüentou. Rebelou-se, foi contra. Expulsou, expurgou. Fez retornar o que tinha feito, em ânsia. Lutei, queria você em mim, trancafiado, misturado. Mas meu corpo é forte, resistiu a mim: meus desejos sobre você. Ele foi o vencedor: vômito. Devolvi inteiro o que devorei em partes: você. Agora não mais em partes, refeito em forma: novo. Nova compleição. Nova vontade: de mim.

 

Agora, você é meu.

 

 

 

 


Eu, meus pés, meias de lã.

 

Está tudo espalhado por aí.
Nossos sonhos, meus dizeres, seus brinquedos.
As panelas no fogão estão vazias.
Os lençóis fora da cama: bolhas de vento.
A pia: louças brancas e talheres azuis.
Está tudo por aí, sem lugar.
E você chega.

Eu preciso que você me ajude a desarrumar a nossa casa.

 

 

 

 


Cento
e
oitenta
mil
imagens
espalhadas
em
vinte
e
quatro
quadros
por
segundo
e eu vejo em grande angular sua voz em outra boca e seu olhar em outra face e eu em outro corpo e a gente fazendo amor como nunca e gemendo e gemendo e gemendo e gozando com a mão no lençol e a maldita música que tem a sua cara e eu viajo em sons que estimulam sentidos sensações excitam meu sexo minha mente meus sonhos meus desejos minhas lágrimas minhas risadas todas as possibilidades inimagináveis de alguma coisa comum entre nós

sonho

o tempo de um filme

 

 

 

(imagem ©sophie pi)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eliana Pougy nasceu em 1961 em Mogi das Cruzes, São Paulo. É arte-educadora, autora da coleção de livros didáticos Criança e Arte, pela editora Ática (2000), do livro infantil Para olhar e olhar de novo, pela Moderna (no prelo), mestranda em psicologia da educação pela FE/USP e escreve compulsivamente. Tem contos publicados em diversas revistas literárias virtuais e participa do blog literário coletivo Blogautores e é colunista do Patife.