Onqotô | Foto de José Luiz Pederneiras
 
 
 
 
 
 

O Lugar do Corpo

 

Fundado em Belo Horizonte, em 1975, o Grupo Corpo é uma companhia de dança contemporânea, eminentemente brasileira em suas criações. Sua carreira vem sendo marcada por sucessivas metamorfoses, mas sempre norteada por três preocupações: a definição de uma identidade, vinculada a uma idéia de cultura nacional (com toda a fluidez que isso implica); a continuidade do trabalho, pensado a longo prazo; e a integridade na sustentação de padrões autoimpostos de elaboração.

 

Seu primeiro espetáculo, Maria Maria, foi um recorde de produção local: percorreu 14 países e foi dançado no Brasil desde 1976 até 1982. Coreografado pelo argentino Oscar Araiz, Maria Maria teve música de Milton Nascimento e roteiros de seu letrista Fernando Brant. O Último Trem, também de Araiz, consolida a primeira fase do Grupo Corpo, acentuada por uma visão particular de dança brasileira.

 

A fundação do Grupo ocorreu por iniciativa de Paulo Pederneiras, que trouxe para a empreitada seus cinco irmãos e mais alguns amigos. Seus pais cederam a casa onde moravam para ser a sede do Corpo. Paulo Pederneiras, diretor geral, viria depois a assumir também a iluminação dos espetáculos; Rodrigo Pederneiras, que inicia como bailarino, será o coreógrafo de praticamente todos os trabalhos do Corpo a partir de 1981. Dos demais fundadores do Grupo vários permanecem até hoje: Pedro Pederneiras, Carmen Purri, Miriam Pederneiras e Cristina Castilho.

 

Rodrigo faz sua primeira coreografia para o Grupo Corpo, Cantares, entre Maria Maria e Último Trem. Cinco outras podem ser listadas num primeiro conjunto: Tríptico e Interânea (1981), Noturno e Reflexos (1982) e Sonata (1984). Cantares é de 1978, ano em que a nova sede do Corpo é inaugurada e Emilio Kalil junta-se ao Grupo, onde assumirá mais tarde, por alguns anos, a co-direção com Paulo.

 

 

Construção de uma linguagem

 

O primeiro grande sucesso de Rodrigo como coreógrafo seria Prelúdios, de 1985, com música de Chopin. Esse espetáculo deixa claro seu forte sentido musical: a partitura vai sendo traduzida por peças que se encadeiam, assim como pelas frases entretramadas; e os deslocamentos dos bailarinos vão desenhando o espaço de um modo novo, segundo princípios da música.

 

Tanto o palco como os figurinos, em Prelúdios, são de tons azulados. Sua função é muito mais do que acessória, ou decorativa. Desde então, em todos os trabalhos do Corpo, cada elemento — cenário, figurino, luz — tem parte ativa, ajudando a compor espetáculos complexos, onde várias artes multiplicam suas virtudes umas pelas outras.

 

As coreografias seguintes — Bachiana e Carlos Gomes/Sonata (1986), Canções, Duo e Pas du Pont (1987), Schumann Ballet, Rapsódia e Uakti (1988) — acentuam a maneira característica de Rodrigo construir um desenho espacial. Sua produção de meados da década de 80 está fortemente ligada à técnica clássica, com elementos da dança contemporânea.

 

Nas coreografias que vão de Prelúdios até 21 (marco de uma outra fase), Rodrigo vai testando seu domínio de estruturas e deslocamentos. A técnica do balé clássico, que é a base de seus trabalhos, vai sendo quebrada por movimentos do folclore e das danças de rua. O Corpo começa a trazer para o palco certa maneira particular do brasileiro se mover.

 

Em 1988, em caráter extraordinário, a coreógrafa alemã Suzanne Linke foi convidada para montar um espetáculo para a companhia, Mulheres.

 

Desde 1989 até 1999, foi a Shell o principal patrocinador do Grupo.

 

Uma parceria que definiu não só uma considerável estabilidade financeira, mas permitiu que a companhia assumisse ambições mais plenas. A dimensão quase operística das produções do Corpo, no sentido de uma colaboração estreita entre as artes, só foi possível nessas condições. Um núcleo criativo trabalha em conjunto, desde então: Paulo Pederneiras, Fernando Velloso, Freusa Zechmeister e Rodrigo Pederneiras. A partir de 1992, compositores são convidados a escrever trilhas especialmente para cada balé. Música, cenário, figurino e coreografia vão sendo construídos simultaneamente. Cada espetáculo é o resultado dessa interação.

 

A parceria incentivou, também, o reconhecimento mundial do Corpo, que hoje faz temporadas anuais em países da Europa e das Américas. Vários outros parceiros, públicos e privados, patrocinariam o Grupo em alguma medida, ao longo dos anos.

 

 

 

O Corpo | Foto de José Luiz Pederneiras

 

 

 

Várias Artes

 

Missa do Orfanato (1989), com música de Mozart, é um trabalho especialmente marcante. Rodrigo molda os corpos, retorcendo, encurvando e ampliando os movimentos. Os gestos recompõem plasticamente as melodias e traduzem para o que tem peso e volume a liturgia mais abstrata da música. Figurinos com características individuais trazem para a cena indivíduos presos ao chão e envoltos num gigantesco painel terroso, onde a luz dá sustentação ao caráter solene e impactante da coreografia.

 

No ano seguinte, o Corpo estréia A Criação, baseada no oratório de Joseph Haydn. Essa peça adota (o que é raro) um roteiro pré-existente (que vem da Bíblia); e destaca-se pela introdução de de ironia e humor. Três Concertos (1991), com música do compositor barroco Telemann, e Variações Enigma, inspirada na partitura sinfônica de Edward Elgar, darão continuidade a essa vertente.

 

Reduzindo as multiplicidades dessa dança a uma questão central, pode-se dizer que se trata, afinal, de inventar uma linguagem nova – uma linguagem que leve em conta a mobilidade concreta dos corpos e a construção de uma nova dimensão do espaço do palco.

 

O próximo espetáculo, 21 (1992), será consagrado como um marco não só para a carreira do Corpo no Brasil, mas também para a definição internacional de certo estilo "brasileiro" de conceber a dança. A música, composta por Marco Antônio Guimarães e interpretada pelo Uakti, articula-se ritmicamente em permutações e divisões do número 21.

 

Neste balé a luz, de Paulo, tem função fundamental. Na primeira parte, por exemplo, gestos simples se tornam espetaculares pela criação de cenas onde é a luz que desenha o espaço. Cada vez mais fica clara a associação dos criadores do Grupo.

 

Em Nazareth (1993), Rodrigo chega a um vocabulário próprio, com bases que vão desde a tradição clássica até a dança popular. A maior parte dos gestos nasce de um arqueamento dos passos clássicos, que ganham outras linhas e outro caráter, a partir de manobras variadas de amplificação e torção. "Alta" e "baixa" cultura mesclam-se na música de Ernesto Nazareth, na literatura de Machado de Assis, e refiguram-se mais uma vez na partitura de José Miguel Wisnik, que se transfigura em dança. Do cenário de Fernando Velloso ao figurino de Freusa, os gestos se multiplicam em movimentos circulares dos corpos dos bailarinos.

 

Em Sete ou Oito peças para um Ballet (1994), com música minimalista de Philip Glass (arranjada por Marco Antonio Guimarães), a dança de Rodrigo viaja para dentro da tela de um computador. Tudo verde: cenário, piso, até por vezes os figurinos. Bailarinos cruzam esse palco-tela, em linhas que se estendem retas de um lado a outro. De súbito, algo ou alguém dispara, rompendo a regularidade e animando a geometria plana com um movimento de muitas dimensões.

 

Celebrando os seus vinte anos de fundação em 1995, o Corpo apresentou uma retrospectiva, com Prelúdios, Missa do Orfanato, Variações Enigma, 21, Nazareth e Sete ou Oito Peças para um Ballet. Ocasião em que passa a ser companhia residente na Maison de La Danse, em Lyon, na França (até 1999).

 

 

1996-2000

 

Sua próxima criação, Bach (1996) estréia em Lyon. A música de Marco Antônio Guimarães é uma suíte de peças diversas de Bach, em arranjos mais ou menos livres. A coreografia de Rodrigo, aqui, dialoga como nunca com o espaço. O cenário, uma colaboração de Fernando Velloso e Paulo Pederneiras, assume um papel muito ativo no espetáculo. Por exemplo: no início os bailarinos caem em cena do alto, deslizando por tubos de alumínio; num outro momento, um painel negro vai descendo e escondendo gradualmente o corpo dos bailarinos.

 

A coreografia seguinte, Parabelo (1997), traz a marca do Nordeste. Mal se vê, a princípio, no lusco-fusco, os bailarinos. Os corpos se movem pesados, marcando tempo. Cinco enormes cabeças, no fundo preto do palco, sugerem mundos desconhecidos, sem serem desfamiliares -- regiões de religião fervorosa, lavoura difícil, estoicismo. As células musicais de Tom Zé e José Miguel Wisnik recriam a música do sertão baiano, universalizado neste Grande Sertão. O que vem da dança popular traz uma energia bruta para os movimentos. A dança se desafoga, junto com a música, e uma alegria incontida toma conta de tudo.

 

Benguelê é de 1998. Gestos e seqüências que vinham pontuando as últimas obras aparecem aqui mais diluídos, integrados a um patrimônio arcaico de gestos (da capoeira, por exemplo, ou de dança de festa de São João). Mas o esforço de Rodrigo é recriar sua dança dentro da outra. Assim como João Bosco acomoda na sua trilha, música árabe e Debussy. E o cenário, junto com a luz, cria um outro plano. Com a inclusão de uma passarela, os planos se multiplicam; e uma caminhada "infinita" dos corpos traduz a dança para um espaço que não é mais da cena — é da nossa imaginação.

 

A partir de 2000 a Petrobras passa a ser a principal financiadora do Grupo, dando continuidade ao trabalho na mesma escala. O início desse patrocínio marca o que deverá ser outro ciclo da companhia. Um novo balé, O Corpo, mostra-se bem distante dos arquétipos profundos do interior brasileiro. O "popular" agora é outro e o resultado não poderia ser mais diferente.

 

 

 Lecuona | Foto de José Luiz Pederneiras

 

 

O Corpo (2000) é um balé sem nostalgias, num presente um pouco à frente de nós. A coreografia traz uma nova expressão direta, nas violências dos gestos reagindo às concretudes da letra e da música de Arnaldo Antunes. Traz, também uma circulação de sentido entre os elementos que compõem o espetáculo: o cenário vira luz e o figurino vira cenário. O Corpo suscita várias inovações no vocabulário do coreógrafo. Em particular, o arqueamento dos corpos e um interesse pelo chão.

 

Santagustin (2002), com música de Tom Zé e Gilberto Assis, suscita novos ares para a dança do Corpo, com seus coros das "mulheres pragmáticas", "inconformadas" e "gozadoras", dos "homens-fêmeas", "sedutores egoístas" etc. Amor e humor, melodia e malícia, ardor e sensualidade. A paixão invade abertamente a cena, que une homens e mulheres em todas as  combinações. O cenário de Paulo Pederneiras e Fernando Velloso — um gigantesco coração de pelúcia — enche o palco com o que há de mais kitsch e ao mesmo tempo mais desabusado. Os figurinos de Ronaldo Fraga, verde e rosa, singularizam cada bailarino com os detalhes da roupa. Se antes os grupos riscavam o palco em desenhos geométricos (e deles se desprendia alguém, para depois voltar a integrar o conjunto), a tensão agora está nos duos: um corpo se une e se contrapõe a outro. Santagustin se volta para o mundo das pulsões, quer dizer, para o espaço mais íntimo e ao mesmo tempo mais conhecido de todos nós. São pequenas tragédias, com acentos de grande comédia.

 

 

Identidade e renovação

 

Vistos agora, de trás para frente, fica claro como um balé leva a outro, mas também como o outro reinventa o anterior. E o que este tipo de reinterpretação demonstra é que o Corpo já não é só o nome de uma companhia, mas de um repertório, quase uma tradição.

 

Manter viva essa tradição é a tarefa que a companhia se impõe. Sua identidade se renova exatamente ao ser capaz de mudar. O que garante a sua continuidade é a idéia do que pode ser uma dança brasileira — como representação e, ao mesmo tempo, um desafio para nossa idéia de nós mesmos. [Inês Bogéa]

 

 

 

Mais sobre o Grupo Corpo em seu site: www.grupocorpo.com.br