Dedico e consagro estes poemas à Lígia Loureiro

 

 

 

 

1. TONTO DE TANTA SOMBRA

 

torto de tanto assombro
vasculhar ostras

e ariscos
só te achar no eco do vaso vazio
o vazio

confuso

nietszche percebe
agora sei

que foi ser

na música
de alguma coisa

 

 

 

 

 

 

2. DESPEDIDA NA ESTAÇÃO AZEVICHE

 

perto do trem

chovia na tua lágrima

onde eu estava

 

pequena ferrugem

à mostra

 

 

 

 

 

 

3. LÍGIA PODE ATRAVESSAR O BOSQUE VAZIO

 

Lígia pode atravessar o bosque vazio
se dentro de si

 

não houver

 

o negrume da sobrancelha de Hitler
a dentadura amarela dos fariseus
cardume de tainhas surdas


se houver

oceano

 

 

 

 

 

 

 

4. O SALMO 151

 

os ariscos
toda vez que se aproximam

do bosque vazio

 

pronunciam palavras ardidas ao orvalho
correm em disparada

 

recitam

silenciosos

o salmo 151:

 

Senhor, porque na minha alma
o medo do relâmpago.

 

 

 

 

 

 

5. VESTES DE NETUNO

 

devagar o vento

virando vestes de Netuno

em adoração às dez mil pétalas

 

que o mar juntou no fundo

chorou ao final do dia

 

 

 

 

 

 

6. FRUTA SECA

 

lívida palavra do sereneiro Buddha

seus langores depositados no perfil de cordas

o enlace de seus langores

esfarela a cegueira do leão

monge no incêndio inclui

na doçura do sopro da musa impura

a lã que envolve

o vertor dos quadris

 

hálito da musa

— hálito de fruta seca —

é armadilha no extremo da ausência

do monge ante a musa

 

tsunami na íris de Buddha

é velada com sopro de cílios

 

 

 

 

 

 

7. COLARES DE CONCHA

 

ramagens da flor do cabochá

para gerar ferrugem sobre a lâmina

colares de concha e fios de lã

 

caligrafia assinalada com fogo branco

num oceânico jazz à Vestal

em seu aguamento passado

 

amplidão de conhecimentos

com anchova presa

numa caixa negra

 

anchova à Vestal

desce a persiana

clareia a música

 

 

 

 

8. ÓCULOS NA NÉVOA

 

bonsai ao centro do templo branco

a garça pousa

pérolas em arrumado ninho

 

no templo branco o monge Kaiji

suspira névoa nos óculos

 

 

 

 

 

 

9. NA ESQUINA COM TALHA-MARES

(Naufrágios com estrelas)

 

descrição

é isso que cabe

às barcas que doiravam ao sol

 

secar o aquoso Saara na alma

 

barcas

seus sacrifícios:

alfinetes que alguém

esqueceu na borda das ondas

 

e todo ar enraizado

enlouquece as línguas-jade

 


 

 

 

 

10. ACANTOS

 

para que eu enxergue o silêncio

teus duros bicos devem furar meus olhos

 

assim não dividirei meu amor com estrelas

acantos

lagos chineses

 

 

 

 

 

 

 

11. ANÊMONAS PAGÃS (Opus 1)

 

Casulo de anêmona pagã sob o azul-da-Prússia uma arcada sombria banho de chuva chuva safári de caçar palavras que travam queimam tocata salmoura para olhos ouvidos lixívia dos destroços do caminho sem ouro e fogo ou espinhos Shiva Nataraj acena para o eu que veste este poema vim da voz do livro uma ressonância preferia palavras açúcar arruda silvestre papoula vim da larva do ritmo do agogô com calo de tanto cristal arde no osso o saquê abrasado caminho da amplidão do orvalho que havia por lá por vezes um quiquiqui

 

idioma indígena

 

 

 

 

 

 

12. ANÊMONAS PAGÃS (Opus 2)

 

 

Cresce no imaginário olhos boca todo o idioma do assovio do açude com curvaturas e ondulações soltas ao vento leva ao fim das linhas o recanto das brumas o barroco é divino mas é antigo feito a face da esfinge que pulsa o eu imaginário imerso na língua de Danaos purgatório os peixes sem ritmo

zumbis os peixes no glacial instante em que imerso em mim sou

 

amplidão

 

 
 
 
 
 
 
Everton Freitag (Guaramirim/SC, 1982). É autor de Escrachos, amor e souvenirs e Água benta. Tem no prelo o livro N'águamolha.