Caixa-preta


Enterrada aqui, como oferta deste chão, uma caixa-preta. Antes, esta mesma caixa, cubo sem erros, existia aos nossos olhos, o que não existia era o objeto de grande importância, mas de pequeno valor que ela continha, não nos via. Enterrada, perdemos a caixa e o objeto velado. Não somos mais vistos por ela nem por seu ventre prenhe de segredo. Porém, temos a memória: relume que encerra uma luz capaz de descobrir caixas-pretas, corpos e lâminas cegas de terra. Obra desaparecida. Assim, ao dobrarmos cada esquina, desta ou de qualquer cidade, sabemos que, o que ficou ainda existe, o que não vemos nem nos olha é uma grande tela cheia de detalhes.

 

12:51


Manchamos o pano claro do dia com sangue. Manchamos outro pano ao tentar limpar o primeiro. Não limpamos o primeiro. A menina chinesa não tinha nenhuma mancha preta no céu claro de sua pele, nenhuma revelação. Calçava botas ortopédicas. Nenhum cego ri daqueles que enxergam (com o garfo, Borges ciscava o prato tentando encontrar pedaços de carne). Ninguém incendeia objetos ao tocá-los. Ninguém tem formigas deslizando nas veias. Nenhuma puta tem mil bocas, pois só temos um pau. Ainda não tiramos a poeira das coisas.

 

Deste outro lado


1. Um menino chora em Pequim. O olho não vê. Mas o corpo, certeza de sentidos, sente. Alguém lê num livro vermelho: O inimigo morrerá por si mesmo. Ninguém entende o por si mesmo. A monótona sussurração das moscas esconde o barulho das lágrimas. Qual olho não vê? Qual corpo não sente o outro corpo morto? Medita quarenta dias e quarenta noites as virtudes do homem, não são muitas. Todo gesto exige cautela e toda cicatriz um pano para cobri-la.

2. Deste outro lado ninguém percebe a sujeira debaixo das unhas, o cheiro ruim de enxofre que vem daqueles lados. Um menino ainda chora em Pequim. Quarenta dias e quarenta noites.

3. Toda cicatriz exige um pano para cobri-la e todo gesto, mesmo o mais visceral, um pouco de cautela.

 

 

(Do livro Céu Vermelho, inédito)

 

 

(imagens ©antoni tàpies)

 

Franklin Alves (Niterói/RJ, 1973). Poeta e mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura na UFF. Participa, na mesma universidade, do grupo de pesquisa "Poéticas da contemporaneidade", coordenado pela professora Celia Pedrosa. Escreveu o livro Céu Vermelho, inédito. Vive em Niterói. Mais no seu blogue.