©bob carlos clarke
 
 
 
 
 
 
 
04.12.2004 | Eliot (quase) completo

 

A editora Arx continua com suas belas & importantes edições de poesia. Esta é histórica: a obra completa de poesia e teatro de T. S. Eliot, com traduções de Ivan Junqueira (volume 1, poesia, com valiosas notas do tradutor) e Ivo Barroso (volume 2, teatro). Capa dura, bilíngüe, ótimo papel, ótima impressão. Um item obrigatório, não há sombra de dúvida.

 

Há poucos senões: 1) a tradução dos poemas por Ivan Junqueira ainda não faz justiça ao engenho de Eliot. Junqueira dá uma enobrecida no idioma, estende muito os versos e não contempla alguns aspectos técnicos, como por exemplo aquele som engenhoso e irônico, à la Jules Laforgue, na "Canção de Amor de J. Alfred Prufrock": "In the room the women come and go/Talking of Michelangelo", que virou apenas: "No saguão as mulheres vêm e vão/A falar de Miguel Ângelo" (sem a coincidência do som perde o sentido, porque parece que Eliot apresenta seriamente o assunto); ou o ritmo e a aliteração de um verso da "Terra Desolada", como: "I see crowds of people, walking round in a ring", que ficou somente: "Vejo multidões que em círculos perambulam", sem nos dar a sensação sonora de "walking round in a ring" (itálicos para mostrar o desenho do verso); 2) a melhor tradução disponível do Old Possum's Book of Practical Cats continua sendo a de Ivo Barroso, já publicada pela Editorial Nórdica, do Rio de Janeiro, em 1991 (como exemplo, basta ler "Macavity: The Mystery Cat", que Barroso saborosamente transformou em "Macanália: O Gato Misterioso" e comparar com a versão de Junqueira, da edição da Arx).

 

A despeito desses pequenos senões, repito, uma edição indispensável, que deve trazer Eliot de volta para o centro das atenções, além de se tornar já um marco no mercado editorial brasileiro o capricho dos dois belos volumes.

 

 

12.12.2004 | O quê?

 

Todos sabemos o que é um bestseller. Todos sabemos que O Código Da Vinci é um bestseller (isto é, como dizemos por aqui, um campeão de vendas) e que provavelmente vai virar um blockbuster (isto é, como dizemos por aqui, um arrasa-quarteirão) com Tom Hanks no papel principal, com trailers (isto é, etc., o tira-gosto) no estilo cut! cut! cut! (corta! corta! corta!) atacando os cinemas. E, ainda assim, isso não resume toda a história. Aliás, por que estou falando desse livro, se todos sabem que a minha política pessoal evita esse tipo de coisa? Afinal, o que está acontecendo?

 

Acontece o seguinte: vocês certamente se lembram do desconcerto do mundo, aqueles célebres versos de Camões sobre a Lei de Murphy. Muito bem: não sou daquelas pessoas que, para reforçar suas convicções hipereruditas, esnobam essa arte que vende adoidado como ralé. Nem considero uma hipererudita, nem a outra, ralé. Sei que os requisitos para a boa popularidade costumam ser tão exigentes quanto para o exercício do refinamento sensorial e intelectual (Arthur Conan Doyle e Charles Dickens, bem populares, eram muito bem preparados para isso, assim como James Joyce ou J.-K. Huysmans o eram para toda exigência de refinamento na arte narrativa).

 

Mas eu dizia do desconcerto do mundo. Alguns anos atrás a Martins Fontes lançou o livro O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, um bestseller também, e muita gente chiou, reclamando dos estratagemas simplistas, da narrativa sem invenção, com clichês estilísticos, etc. Quando saiu o livro de Dan Brown pela Sextante, vi muitas resenhas dizendo mais ou menos isso: é um bestseller, mas dá para o gasto se você não tiver mais pretensões do que ler uma boa história de mistério.

 

Em primeiro lugar, agradeceria a Dan Brown pelo trabalho feito para malhar a Opus Dei, que nada tem de obra e muito menos de deus, é um negócio sinistro, levado por gente sinistra ou francamente abaixo da linha da ignorância; a despeito disso, o livro é péssimo, e não se trata de uma boa história de mistério.

 

Vale uma comparação com Reverte, porque se trata de um lance de glamour sobre esses profissionais normalmente sem glamour nenhum que trabalham com arte e livros. E a comparação é muito desfavorável para Brown: Reverte sabe que não pode meter um erudito numa aventura, porque os verdadeiros eruditos não saem de casa a não ser para congressos e coisas do gênero, então Lucas Corso é um desses malandros que conhecem bem os livros, mas que não estão nem aí para sua exegese ou para o seu ensino. Ele compra e vende, quase sempre com alguma picaretagem. Importante: Reverte também conhece bem os livros e os gêneros da arte narrativa, além de conhecer bem também a exegese de textos ocultos, e deixa sempre alguma coisa para a inteligência do leitor. Obviamente, e tenham a santa paciência, não como o Finnegans Wake.

 

Nada disso acontece na narrativa de Brown, que utiliza os mesmos clichês que Reverte. A própria idéia aparatosa de conspiração é ridícula. A maneira como é preciso reiterar os conhecimentos ou o charme extraordinários de Robert Langdon chega a ser constrangedora, mesmo porque isso é feito à parte do texto, totalmente isolado dos desenvolvimentos da narrativa, exempla: ele fala em francês com o oficial da polícia (está, é claro, na elegante e refinada Paris, se hospeda no Ritz, descreve-se o quarto cheio de rococós,  ficamos nos sentindo parte de um negócio muito chique) e o policial comenta: "Seu francês é muito melhor do que faz acreditar, senhor Langdon". E Langdon ainda complementa, pavoneando-se em pensamento: "meu francês é uma droga, mas meu conhecimento de iconografia zodiacal é bom demais". E mais: a piada de colegial sobre Bonaparte e Pepino, o Breve, atribuída aos espertalhões decifradores de simbologia; o tipo de recado que Langdon dá pros alunos, que poderia estar em qualquer livro meia-boca de auto-ajuda; e mais um sem-número de referências deslocadas, mal-feitas ou que simplesmente nada têm a ver com a história, mas  necessárias para aquele caldo "alta cultura" (ver, no Thesaurus, Alta Literatura) que todo o público sem a menor idéia do que sejam aquelas coisas gosta de sonhar que são, e arruínam o pouco interesse que a trama poderia despertar.

 

O desequilíbrio do livro faz dele um objeto bisonho, e não o fato de ser um bestseller, como também é o Clube Dumas, porém dignamente. Em nenhum momento, no Código Da Vinci, se consegue acreditar que aqueles personagens são o que o narrador nos diz que são, e ficamos sempre permeados pela sensação de uma farsa inconsciente correndo pelo livro, ruim de doer. E daí o desconcerto: meteram o pau no livro de Reverte e pouparam o besteirol de Brown. Pode?

 

 

19.12.2004 | Memória do Jornalismo, once again: Sacco & Vanzetti

 

Vanzetti, Bartolomeo Vanzetti, anarquista que foi condenado à morte com seu colega Nicola Sacco, em 1927, sob a acusação de roubo e assassinato, estava coberto de razão quando proferiu seu último discurso à corte que mandou executá-los. Os nomes de seus carrascos? Vaporizados pelo tempo. Aliás, o discurso está cada vez mais correto em todos os sentidos, e eu o reproduzo aqui, como uma homenagem a seu martírio:

 

Me senti obrigado a lutar contra as lágrimas em meus olhos e a calar meu coração na garganta para não chorar diante dele. Mas o nome de Sacco viverá nos corações das pessoas quando os seus nomes, suas leis, instituições e seu falso deus não forem senão a recordação sombria de um passado maldito, em que o homem era o lobo do homem.