A
editora Arx continua com suas belas & importantes edições de poesia.
Esta é histórica: a obra completa de poesia e teatro de T. S. Eliot, com
traduções de Ivan Junqueira (volume 1, poesia, com valiosas notas do
tradutor) e Ivo Barroso (volume 2, teatro). Capa dura, bilíngüe, ótimo
papel, ótima impressão. Um item obrigatório, não há sombra de
dúvida. Há
poucos senões: 1) a tradução dos poemas por Ivan Junqueira ainda não faz
justiça ao engenho de Eliot. Junqueira dá uma enobrecida no idioma,
estende muito os versos e não contempla alguns aspectos técnicos, como por
exemplo aquele som engenhoso e irônico, à la Jules Laforgue, na "Canção de
Amor de J. Alfred Prufrock": "In the room the women come and go/Talking of
Michelangelo", que virou apenas: "No saguão as mulheres vêm e vão/A falar
de Miguel Ângelo" (sem a coincidência do som perde o sentido, porque
parece que Eliot apresenta seriamente o assunto); ou o ritmo e a
aliteração de um verso da "Terra Desolada", como: "I see crowds of people,
walking round in a ring", que ficou somente: "Vejo multidões que em
círculos perambulam", sem nos dar a sensação sonora de "walking
round in a ring" (itálicos para mostrar o desenho do
verso); 2) a melhor tradução disponível do Old Possum's Book of
Practical Cats continua sendo a de Ivo Barroso, já publicada pela
Editorial Nórdica, do Rio de Janeiro, em 1991 (como exemplo, basta ler
"Macavity: The Mystery Cat", que Barroso saborosamente transformou em
"Macanália: O Gato Misterioso" e comparar com a versão de Junqueira, da
edição da Arx). A
despeito desses pequenos senões, repito, uma edição indispensável,
que deve trazer Eliot de volta para o centro das atenções, além de se
tornar já um marco no mercado editorial brasileiro o capricho dos dois
belos volumes. 12.12.2004 | O quê? Todos
sabemos o que é um bestseller. Todos sabemos que O Código Da
Vinci é um bestseller (isto é, como dizemos por aqui, um
campeão de vendas) e que provavelmente vai virar um
blockbuster (isto é, como dizemos por aqui, um
arrasa-quarteirão) com Tom Hanks no papel principal, com
trailers (isto é, etc., o tira-gosto) no estilo cut! cut!
cut! (corta! corta! corta!) atacando os cinemas. E, ainda
assim, isso não resume toda a história. Aliás, por que estou falando desse
livro, se todos sabem que a minha política pessoal evita esse tipo de
coisa? Afinal, o que está acontecendo? Acontece
o seguinte: vocês certamente se lembram do desconcerto do mundo, aqueles
célebres versos de Camões sobre a Lei de Murphy. Muito bem: não sou
daquelas pessoas que, para reforçar suas convicções hipereruditas, esnobam
essa arte que vende adoidado como ralé. Nem considero uma hipererudita,
nem a outra, ralé. Sei que os requisitos para a boa popularidade costumam
ser tão exigentes quanto para o exercício do refinamento sensorial e
intelectual (Arthur Conan Doyle e Charles Dickens, bem populares, eram
muito bem preparados para isso, assim como James Joyce ou J.-K. Huysmans o
eram para toda exigência de refinamento na arte narrativa).
Mas
eu dizia do desconcerto do mundo. Alguns anos atrás a Martins Fontes
lançou o livro O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, um
bestseller também, e muita gente chiou, reclamando dos estratagemas
simplistas, da narrativa sem invenção, com clichês estilísticos, etc.
Quando saiu o livro de Dan Brown pela Sextante, vi muitas resenhas dizendo
mais ou menos isso: é um bestseller, mas dá para o gasto se você
não tiver mais pretensões do que ler uma boa história de
mistério. Em
primeiro lugar, agradeceria a Dan Brown pelo trabalho feito para malhar a
Opus Dei, que nada tem de obra e muito menos de deus,
é um negócio sinistro, levado por gente sinistra ou francamente abaixo
da linha da ignorância; a despeito disso, o livro é péssimo, e não se
trata de uma boa história de mistério. Vale
uma comparação com Reverte, porque se trata de um lance de glamour
sobre esses profissionais normalmente sem glamour nenhum que
trabalham com arte e livros. E a comparação é muito desfavorável para
Brown: Reverte sabe que não pode meter um erudito numa aventura, porque os
verdadeiros eruditos não saem de casa a não ser para congressos e coisas
do gênero, então Lucas Corso é um desses malandros que conhecem bem os
livros, mas que não estão nem aí para sua exegese ou para o seu ensino.
Ele compra e vende, quase sempre com alguma picaretagem. Importante:
Reverte também conhece bem os livros e os gêneros da arte narrativa, além
de conhecer bem também a exegese de textos ocultos, e deixa sempre alguma
coisa para a inteligência do leitor. Obviamente, e tenham a santa
paciência, não como o Finnegans Wake. Nada
disso acontece na narrativa de Brown, que utiliza os mesmos clichês que
Reverte. A própria idéia aparatosa de conspiração é ridícula. A maneira
como é preciso reiterar os conhecimentos ou o charme extraordinários de
Robert Langdon chega a ser constrangedora, mesmo porque isso é feito à
parte do texto, totalmente isolado dos desenvolvimentos da narrativa,
exempla: ele fala em francês com o oficial da polícia (está, é
claro, na elegante e refinada Paris, se hospeda no Ritz, descreve-se o
quarto cheio de rococós,
ficamos nos sentindo parte de um negócio muito chique) e o policial
comenta: "Seu francês é muito melhor do que faz acreditar, senhor
Langdon". E Langdon ainda complementa, pavoneando-se em pensamento: "meu
francês é uma droga, mas meu conhecimento de iconografia zodiacal é bom
demais". E mais: a piada de colegial sobre Bonaparte e Pepino, o Breve,
atribuída aos espertalhões decifradores de simbologia; o tipo de recado
que Langdon dá pros alunos, que poderia estar em qualquer livro meia-boca
de auto-ajuda; e mais um sem-número de referências deslocadas, mal-feitas
ou que simplesmente nada têm a ver com a história, mas necessárias para aquele caldo
"alta cultura" (ver, no Thesaurus, Alta Literatura) que todo o
público sem a menor idéia do que sejam aquelas coisas gosta de sonhar que
são, e arruínam o pouco interesse que a trama poderia
despertar. O
desequilíbrio do livro faz dele um objeto bisonho, e não o fato de ser um
bestseller, como também é o Clube Dumas, porém dignamente.
Em nenhum momento, no Código Da Vinci, se consegue acreditar que
aqueles personagens são o que o narrador nos diz que são, e ficamos sempre
permeados pela sensação de uma farsa inconsciente correndo pelo livro,
ruim de doer. E daí o desconcerto: meteram o pau no livro de Reverte e
pouparam o besteirol de Brown. Pode? 19.12.2004 | Memória do Jornalismo, once again:
Sacco & Vanzetti Vanzetti,
Bartolomeo Vanzetti, anarquista que foi condenado à morte com seu colega
Nicola Sacco, em 1927, sob a acusação de roubo e assassinato, estava
coberto de razão quando proferiu seu último discurso à corte que mandou
executá-los. Os nomes de seus carrascos? Vaporizados pelo tempo. Aliás, o
discurso está cada vez mais correto em todos os sentidos, e eu o reproduzo
aqui, como uma homenagem a seu martírio: Me senti
obrigado a lutar contra as lágrimas em meus olhos e a calar meu coração
na garganta para não chorar diante dele. Mas o nome de Sacco viverá
nos corações das pessoas quando os seus nomes, suas leis, instituições
e seu falso deus não forem senão a recordação sombria de um passado
maldito, em que o homem era o lobo do homem. |