©ryan goodrich

 

 
 
 
 

"You were the chosen one!"

 

Sem presumir nada, e mesmo desconsiderando as numerosas denúncias de corrupção que vieram principalmente da boca do já enroladíssimo deputado federal Roberto Jefferson (PTB), pode-se dizer que, sem sombra de dúvida, o governo do presidente Lula é, no mínimo, bastante decepcionante, não só em relação à expectativa gerada pela campanha, como também em relação à história do partido e à do homem.

Certamente, mas é preciso considerar ao menos dois aspectos fundamentais:

a) Lula precisava ser eleito presidente. Sua história pessoal e política exigiam que lhe fosse dada oportunidade de assumir as responsabilidades de presidente, e sem isso a democracia brasileira jamais se consolidaria. Ele veio de Garanhuns, do coração das injustiças sociais, sobreviveu, foi o rosto corajoso do sindicalismo que lutou contra a ditadura, fundou um partido histórico da chamada esquerda mundial, o PT1, e lhe faltava (como ao PT e ao próprio país) a experiência definitiva da presidência. Isso necessariamente deveria acontecer;

b) Desmantelamento oficial do messianismo. Ao menos desde a primeira eleição do presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), era óbvio que o PT já não era o mesmo partido que havia agregado inicialmente intelectuais como Sérgio Buarque e Antonio Candido, e a base trabalhadora, num arranjo peculiar de experiência política. A flexibilização dos discursos e da própria imagem partidária, não sem constantes choques internos das diversas orientações do PT, assinalava que a transição acontecia para viabilizar a virtual chegada ao poder, satisfazendo os formadores de opinião pública e o empresariado.

Mas, curiosamente, quando o publicitário Duda Mendonça2 assumiu a campanha, as idéias-chave de mudança e esperança foram acionadas, como se estivéssemos de fato falando do antigo PT. Supõe-se que o voto tenha sido em parte motivado por isso, tendo revivido o nunca mesmo morto messianismo à brasileira, que herdou traços do sebastianismo português3.

E então o PSDB, adversário na eleição, pôs a atriz global Regina Duarte na tv para instilar o medo arcaico, atávico e sempre oportuno que o pobre público sente dos velhos comunas, aqueles comedores de criancinha que só vestem vermelho. Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, um dos poucos jornalistas que concilia o conhecimento dos fatos, boa-fé, visão de cenários e elegância estilística, escreveu algo como que o medo não era do radicalismo do PT, mas sim de que já não houvesse sombra dele, e de que nada mudasse.

Como disse, Clóvis Rossi é o maior jornalista brasileiro, não uma cartomante.

Os últimos eventos (pois as CPIs são grandes eventos de mídia e grandes instrumentos de chantagem política de parte a parte) estarrecedores podem ter um efeito magnificamente educativo, ajudando o renitente eleitor a se livrar dos resquícios de messianismo que leva em seu coração oprimido. Ele terá aprendido, no caso de a lição ter um desfecho positivo (e de as CPIs virem a efeito), que isso é a política, que esses são os mecanismos da administração pública. E deverá perceber que esse governo, tanto no que faz bem quanto no que faz mal, é, como os outros que já elegeu, parte desse sistema4. E que aí está a pista de por onde começar a faxina: uma verdadeira reforma política e administrativa, uma verdadeira revisão dos termos do pacto federativo.

 

*

 

Isso me lembrou da cena já antológica do Episódio III: A Vingança dos Sith, da série cinematográfica Star Wars, de George Lucas.

Anakin Skywalker finalmente resolve seu até então dúbio destino e abraça o lado negro da Força, chacinando quase todos os jedis e tendo, necessariamente, que encarar seu mestre Obi-Wan Kenobi num combate final. O duelo entre os dois termina com a vitória de Kenobi, deixando para trás aquele que fora Anakin Skywalker, seu ex-discípulo padawan, e que se tornara então o famoso lorde sith Darth Vader, títere sinistro do Império Galáctico.

A frustração do mestre se revela no último diálogo que os dois mantêm depois da batalha, pois Obi-Wan acreditava que, pelo motivo de a Força ser grande em seu discípulo, ele teria vindo messianicamente para derrotar o lado negro e promover a paz naquela galáxia muito, muito distante. Inconformado, Obi-Wan grita: "You were the chosen one!", isto é, "Você era o escolhido!"

 

 

Um  mês de grandes lançamentos em poesia

 

Tivemos um mês mui rico. Dou alguns exemplos: foram lançados o Lazarilho de Tormes, em edição bilíngüe, pela editora 34; A Balada do Velho Marinheiro, de Coleridge, bilíngüe, pela Ateliê Editorial; Poesia Vista, coletânea de Joan Brossa, bilíngüe também, e também da Ateliê, e da Amauta.

Era muito estranho que o Lazarillo não tivesse edição em português até hoje: data de nascimento da chamada picaresca espanhola, esse foi o livro que lançou bases para usos que passam pelo Engenhoso Fidalgo Dom Quixote, de Cervantes (que ultrapassa em muito o gênero, incluindo paródias de poesia pastoral, das novelas de cavalaria, o incipiente romance de formação, etc.), e chegam ao Gil Blas de Santilhana, de Lesage (um francês que escreveu esse divertidíssimo compêndio de tópicas de um gênero então já dado por encerrado). A história de um personagem desventurado que passa por situações amaro-cômicas foi concebida nesse pequeno volume, que finalmente chega no Brasil.

A edição da Ateliê de Coleridge chega com textos introdutórios de Alfredo Bosi e Harold Bloom, além da impressão das magníficas ilustrações de Gustave Doré. Não obstante, o melhor é mesmo a tradução meticulosa, precisa e bela de Alípio Correia (que já publicou traduções refinadas da poesia de James Joyce e de Robert Browning, por exemplo). Muito melhor do que o trabalho honesto e disponível anteriormente, de Paulo Vizioli. Comparemos o trecho incial, quando o Velho Marinheiro aborda o rapaz, na recepção de um casamento, a quem contará sua terrível história. Primeiro, o original de Coleridge:

 

It is an Ancient Mariner,

And he stoppeth one of three.

"By thy long grey beard and glittering eye,

Now wherefore stopp’st thou me?

 

The Bridegroom’s doors are opened wide,

And I am next of kin;

The guests are met, the feast is set:

May’st hear the merry din".

 

He holds him with his skinny hand,

"There was a ship", quoth he.

"Hold off! Unhand me, greybeard loon!"

Eftsoons his hand dropt he.

 

A versão de Vizioli:

 

É um velho Marinheiro,

E detém um, de três que vê:

"Por tua barba branca e cintilante olhar,

Tu me deténs por quê?

 

Agora o Noivo escancarou as suas portas,

E eu sou seu familiar.

O comensal se apresta, principia a festa:

Ouve o alegre exultar."

 

Com a escarnada mão ele o detém ainda;

"Houve um navio..." lhe disse.

"Solta-me! Solta-me, barbado vagabundo!"

Deixou que a mão caísse.

 

E a nova, de Alípio Correia:

 

                            Eis um antigo Marinheiro

                            E ele pára um de três:

"— Pela barba branca, o olho em brasa,

Por que é que me deténs?

 

O Noivo abriu as portas: sou

Parente; entre os convivas

Se comemora, a festa é agora;

Escuta o som dos ‘vivas’".

 

Ele o segura com a mão magra:

"O barco!", disse. — "Tonto

De barbas brancas! Sai, me solta!"

A mão soltou, de pronto.

 

Podemos ver como a escolha de expressões e  palavras na última são melhores. Dou dois exemplos: uma é a expressão "Deixou que a mão caísse", na tradução de Vizioli, que nos deixa muito estarrecidos com a situação física desse Velho Marinheiro, e que na nova tradução se traduz, para nosso alívio, por "A mão soltou, de pronto"; outro caso é o do "escancarou", relativo às portas, o que soa exagerado mesmo para traduzir "opened wide". Na de Alípio Correia, opta-se pelo simples "abriu as portas". Mas essa é uma simplicidade inteligente, porque evita, com elegância, as rimas em "-ar", como usou Vizioli, que para isso teve de operar algumas inversões incômodas.

Acrescente um manejo mais hábil da métrica e você tem o resultado dessa nova tradução, primorosa. Item de luxo. Obrigatório.

Por fim, o livro de Brossa (de quem já traduzi um poema nestas mesmas páginas, no ano passado). Tínhamos, até então, apenas os Poemas Civis (Sette Letras, 1998), na tradução muito boa de Ronald Polito e Sérgio Alcides, além de textos e poemas traduzidos por João Bandeira — incluindo também uma interessantíssima entrevista dentro da ampla e ótima matéria — para a revista Cult de anos atrás. O principal da nova edição são os poemas visuais e os poemas-objeto, que ainda não haviam sido colecionados em livro no Brasil. Extremamente inteligente e extremamente bem executada, a parte visual da obra de Brossa é o melhor exemplar da chamada poesia visual, concentrando em si todos os recursos do experimentalismo dos anos 20, do surrealismo, das tiradas estéticas e provocativas de Duchamp, do concretismo, dos jogos, e acrescentando a isso uma verve mágica e circense que era a predileta do catalão.

A despeito de ter sido um poeta muito inovador e vanguardista, não tinha nenhum tique de modismos e, na verdade, os repelia. Na entrevista para a revista Cult (número 19 da série antiga, de 1999), a conversa vai discutindo a poesia visual e o poema-objeto e, num determinado momento, na página 42, esboça-se uma pergunta que fica incompleta:

 

CULT  Você acha que a poesia nessa chamada era da multimídia...

 

porque Brossa atalha, sem perder tempo,

 

J.B.  A era da multimerda.

 

O livro, da Ateliê e da Amauta, tem seleção e tradução de Vanderley Mendonça, uma apresentação de Glòria Bordons e um texto de Haroldo de Campos, na verdade, o único texto deslocado, que trata mais da poesia concreta em relação a Brossa do que do próprio Brossa, e era evidentemente uma nota de tipo jornalístico e memorial, não para ser incluída num livro do autor.

O lançamento em São Paulo, na Casa das Rosas, teve a exibição de ampliações do material visual do livro, e talvez venha a acontecer uma exposição dedicada a elas, o que não seria mesmo má idéia.

 

A melhor defesa é o ataque?

 

Londres é a terceira cidade a ser atacada criminosamente no esquema de chacina imprevisível do terrorismo do século XXI, após os episódios de Nova York e Madri.

No entanto, toda a concepção de guerra ao terror é equivocada, porque se trata de um inimigo invisível, com o qual não é possível entrar em guerra. Então, como resposta, entra-se em guerra com os países de que supostamente teriam vindo os terroristas, criando-se uma segunda distorção da justiça num mundo cada vez mais violento, alimentado por um ciclo de revanches virtualmente infinito no intuito de se cobrar as mortes de parte a parte5. Parece que, a despeito da atitude da Espanha, essa é uma tendência a se intensificar.

A desestabilização dos serviços de inteligência e diplomacia — que seriam os dois veículos adequados à situação —, desde que George Bush assumiu seu primeiro mandato como presidente dos EUA, está promovendo um desequilíbrio mundial, porque a via escolhida foi a de devastação militar e restrição de direitos civis, vendida para o público como demonstração de força e seriedade. O público, naturalmente com medo, comprou.

 

Mondovino, de Jonathan Nossiter

 

Sendo um documentário sobre a poderosa indústria vinícola, e que se alinha claramente pelos produtores tradicionais do produto (principalmente Aimé Guibert, da Daumas-Gassac, Hubert de Montille, de Bourgogne, e Battista Columbu, de Sardenha, na Itália, entre outros), não poderia deixar de causar polêmica. Muitas resenhas se opuseram ao filme ou tentaram minimizar seus argumentos chamando a discussão de "velha", e que não há nada de mal em Monsieur Rolland ganhar uma fortuna uniformizando os diversos tipos da bebida, e dando a onipresente sugestão de microoxigenar mais os vinhos.

Evidentemente, não são argumentos decentes contra o documentário.

O filme contrapõe os acima citados, defensores do terroir, da variedade e portanto de uma cultura do vinho menos industrial (menos, porque, ainda assim, é industrial), com algum sentido da consideração do tempo necessário, dos barris de carvalho envelhecidos, aos Mondavi, Staglin e a enólogos poderosos como Michel Rolland e Robert Parker, que são a favor de uma visão da cultura vinícola inteiramente mecanizada e industrial de larga escala, transnacional e com tendência (como se vê nas entrevistas dos Mondavi, por exemplo) para uma espécie de monopólio — comprando pequenas propriedades na Europa, na América6 e impondo o sistema de produção geral.

Dentro desse núcleo muito importante, há dois dois pontos bastante interessantes.

Um deles é uma quase demonstração de que os antigos regimes agrários, que retêm algo das tradições mediterrâneas importantes para a base milenar da cultura ocidental, estão desaparecendo frente ao poder uniformizante do dinheiro (como se vê no caso fantasmagórico das famílias da velha e decadente nobreza italiana, Frescobaldi e Antinori, que vendem, sem pensar duas vezes, seus terrenos de plantio; obviamente, porque não sabem fazer mais nada com eles e querem, como todos, dinheiro); o outro, o significado profundo da clara divisão entre os californianos rápidos, ignorantes e tecnológicos e os franceses lentos, agrário-míticos, diretamente envolvidos no processo de cultivo e preparação, que defendem a antiga tradição que ainda vem nos rótulos dos vinhos como a "appellation d’origine controlée", isto é, o controle da nomeação por meio do lugar de cultivo: Bordeaux, Porto, etc; a diferença de uma coisa em relação à outra é o retrato do desconforto e dos atritos que se sentem também em outras áreas da cultura.

O que é especialmente claro no caso dos Staglin, na Califórnia, ou no caso de Parker. Estão cercados de kitsch por todo lado, acham o vinho chique e demonstram um pouco de ressentimento. Ressentimento que fica mui claro no orgulho com que Parker fala de sua reputação como enólogo, querendo exemplificar com ela que, como estadunidense, está sendo ouvido como entendedor entre os europeus, sim, europeus como Rolland, por exemplo, que, de uma forma ou de outra, sabe precisamente o que está fazendo. Nossiter evidencia o telefone celular, as visitas-relâmpago às vinícolas, o sorriso dúbio de businessman de Rolland. Não se fala, nesse filme, das leis do protecionismo agrícola na França.

E, de certa forma, o filme não é — apenas — sobre os descaminhos da produção do vinho. Ele se estende de fato com uma sombra desagradável sobre os diversos aspectos daquilo que uma vez se chamou cultura, e agora abana o rabo obediente ao som da caixa registradora. É o vinho, mas é o mundo.

 

A Vanguarda do Século XXI

 

A vanguarda no fim do século XIX e começo do XX era perturbadora: nem os críticos nem os religiosos tinham coisas licorosas para se dizer dela.

Não é diferente no século XXI. Harry Potter deve ser a vanguarda, pois incomodou um crítico romântico sem mais o que fazer (e que disse que William Carlos Williams e Ezra Pound eram o pior que havia acontecido para a poesia de língua inglesa) e um então cardeal responsável pela linha dura católica, os escritórios da Congregação para a Doutrina da Fé, sucedânea da, como direi, antiquada Inquisição.

Irritou as pessoas certas. Isso é o mínimo que alguém em sã consciência poderá dizer. E o que é melhor: sequer pretendia fazê-lo.

Se o crítico não percebeu que o punhado de historinhas e poemas do século XIX pseudo-cabeçudas que ele arregimentou numa antologia eram consideradas, a seu tempo, lixo infantil, assim como ele agora faz o papel futuramente risível de matraca da gastrite crítica; se o cardeal quer evitar que os livros de Harry Potter desviem as criancinhas inocentes do seu decadente cristianismo vaticânico de luxo para (oh, que terrível!) a bruxaria e o paganismo; esses dois demonstram o nível de inteligência e virtude que teria um mundo segundo as suas concepções.

Às vezes este planeta parece ser aquelas antigas feiras itinerantes que exibiam, de vilarejo em vilarejo, uns seres esquisitos. O problema é que essa feira não tem outro vilarejo para ir.

 

 Agosto, 2005

 

 

Notas

 

 

chamaeleonte@yahoo.com.br