Lars von Trier, o inimigo
Um dos poucos cineastas atuais que faz do cinema algo que aprendemos que ele deveria ser com a nouvelle vague e a politique des auteurs, Lars von Trier, que ficou conhecido com o grupo Dogma 951, assumiu no cinema o papel de irônico inimigo da estupidez humana. Aqui no Brasil houve quem dissesse, de Manderlay, que é racista; que von Trier é, ao menos desde Dançando no Escuro, antiamericano (significando, com isso, os EUA); que não sabe filmar; que seu narrador dirige demais o percurso dos filmes; etc., entre outros disparates que ganham imediatamente lugar privilegiado no anedotário da infâmia universal.
Consideremos: não era exatamente isso que von Trier queria? Óbvio, quando sua linguagem é recessiva, obrigando o preguiçoso e auto-complacente espectador (e inúmeras vezes o crítico) a esquecer o que já conhece para abraçar um novo estilo por novas idéias, você deve esperar que muitos reclamem, esperneiem, acusem. Todo mundo sabe que os burros zurram e dão coices, e pode-se dizer que von Trier sabe disso mais do que a maioria.
Seus filmes não são brinquedos, não cedem ao desejo sôfrego de apelo sentimental das multidões, não facilitam as coisas quando recorrem a um mínimo espaço cenográfico que se assemelha ao do teatro, ou quando escolhem desafiar a comodidade acéfala do politicamente correto: traçam uma linha divisória muito clara, provocam falsas catarses, culpam o espectador, riem dele, sugerem que ele não desconfia o bastante, que crê demais.
Nesse sentido, as bases formais do Dogma 95, único movimento cinematográfico com algum sentido depois da nouvelle vague, permanecem, não mais no aspecto técnico do manifesto (da música produzida in loco, da produção modesta em locação existente, etc2), mas no cerne daquilo que veio incitar, isto é, um golpe na complacência dos modos de filmar e dos modos de se assistir a um filme.
Dogville e Manderlay deverão formar a "Trilogia Americana" com Washington, que deve ficar pronto em 2007. Imagino que em alguns anos estará bastante claro o horror de que von Trier estava falando em seus filmes, e que não são os EUA como uma concepção abstrata do mapa desenhado no chão de sua trilogia, mas Bush3, e o que ele conseguiu sumarizar, com seu governo, da pior representação do que é possível conceber como produto da vida humana, envenenando o mundo inteiro no começo do século XXI.
Filósofos & a arte de escrever
Montaigne e Maquiavel são grandes escritores, nessa ordem.
Hegel e Descartes escreviam apenas porque lhes era necessário fazê-lo. São técnicos.
Schopenhauer é um bom escritor, e com isso pôde espalhar seu rancor mesquinho contra a vida.
Nietzsche é um autor para adolescentes. Certa vez conheci um homem de quarenta anos que recorreu a Nietzsche em plena crise de meia-idade. É um instrumento imperfeito e parcial de desafio às convenções imprestáveis da vida social, para quem ainda não está preparado para a frieza irônica de Voltaire, que não escolhia partidos.
dezembro, 2005
chamaeleonte@yahoo.com.br