The trouble with Harry
(um poema atual sobre caçadas)
Um grupo de caça (dois velhos com rifles) querendo matar,
vai ao bosque vestindo laranja, e mira uma ave no ar.
No ar, entre as asas, o peito de plumas sangra com chumbo.
Sob risos, cai quase morta mais esta ave do mundo.
"Mais esta ave do mundo? Não", sentencia a deusa dos bosques;
E faz com que Harry, iludido por falsa visão, se desloque:
"Vou lá pegar!" e se põe contra o sol sem achar sua presa.
Dick também quer matar, e não nota o truque da deusa.
Dispara numa ave do ar, mas acerta Harry no peito e no rosto,
que cai numa nuvem de sangue: o osso da face é exposto
— como escondido na farsa de máscara grave e normal
surgisse por baixo o seu riso perverso, que é o real.
Os rifles mortais jazem no chão, pássaro algum jaz por perto.
Agora com medo, Dick não vê mais floresta: é um deserto;
um deserto em que lê em toda parte a palavra "vingança"
(ou seria o som do vento com as folhas talvez numa dança?)
"Harry não pode morrer, não sou assassino; e sou do governo".
Uma voz ao ouvido: "És sim assassino, e este é o inferno."
Era a deusa: "A encrenca com Harry é bem pouco para ti, assassino:
repete comigo teu som sibilino: assassino, assassino, assassino."
Otto Karpfen, aliás Otto Maria Carpeaux
Saiu o segundo volume dos ensaios de Otto Maria Carpeaux, pela Topbooks, do Rio de Janeiro. Se não me engano, o primeiro surgiu há coisa de cinco ou seis anos, organizado por Olavo de Carvalho, e não sabíamos se viria o segundo.
Qual a importância deste lançamento? Simples: Carpeaux foi o melhor crítico literário brasileiro (ou, como quiserem, austro-brasileiro). Seus textos são escritos de um modo que já quase nos esquecemos, de quando uma imensa erudição não era impedimento algum à fruição de um texto, aliás, um texto crítico. Lembremos que como o polonês Joseph Conrad em relação ao inglês, Carpeaux, austríaco, foi um mestre impecável da prosa em português: a velocidade com que conecta idéias, a estrutura simples e fluente de suas sentenças, o uso pontual do humor, frases lapidares como "Os Cantos de Ezra Pound são um fracasso grandioso" (na História da Literatura Ocidental, de oito volumes), etc.
Juntar todas essas qualidades hoje em alguém parece algo simplesmente mirífico e sem esperança de acontecer: Carpeaux teve uma educação bizarramente variada, ingressando em Direito, mas estudando também química, física, matemática, filosofia e letras na Universidade de Viena. Escreveu em jornal, na época em que a crítica jornalística constituía um esforço analítico e propositivo, um lugar de debates verdadeiros e frutíferos. Seus ensaios musicais são especialmente belos e comoventes, sobretudo aqueles em que aborda Beethoven ou Bach. Sobre o último, por exemplo, escreveu esse magnífico parágrafo em Uma Nova História da Música:
Como nenhum outro filho espiritual de Lutero soube Bach "sincronizar" os dois mundos: este e o outro. A harmonia perfeita entre os dois afigurava-se-lhe garantida pelas regras do contraponto, que são as mesmas na terra e no céu. A vida aqui embaixo e ali em cima constituem, sem interrupção, uma Fuga perfeita. A lei da existência física e espiritual de Bach é a polifonia.
Brilhante. Escrever assim sobre um assunto complexo só é possível a quem realmente sabe do que está falando.
Mesmo quando se discorda de Carpeaux (e isso poderá acontecer uma porção de vezes em sua imensa obra), não se sente desrespeito por sua opinião nem por seu texto; ao contrário, se é instigado a combatê-lo, e para isso o mínimo que se pode fazer numa resposta adequada é ler muito, muito mesmo.
Os livros de Carpeaux são uma obrigação para aquele que se importa com a escrita, com a arte, e com uma discussão inteligente, apaixonada e saborosa da literatura. Tenho o maior respeito e admiração por Carpeaux, que não foi apenas o maior crítico literário brasileiro, mas também um daqueles poucos homens da história com um conhecimento universal, que ultrapassa o recurso aos livros e se instala como um domínio vivo na memória.
JK
Engraçado como agora se endeusa Juscelino Kubitschek, e como normalmente se alude com certo ar de respeito a uma figura como Getúlio Vargas (o "pai dos pobres", né?), além da saudade de alguns velhotes do esquema pau-de-arara e hipocrisia moralista dos milicos de 64 a 85. É tudo cretinice da mesma espécie. "Desenvolvimentismo", o que quer que signifique uma bobagem com um nome descalibrado desses só poderia mesmo ser um veneno mental. Kubitschek transformou em definitivo o Brasil no que é hoje: ignorante, vassalo provinciano de tecnologias, poder público escravo do esquema das empreiteiras.
Bossa Nova? Sinceramente. Procurar heróis na política e nostalgia num vago estilo musical é declaração aberta de senilidade precoce.
É evidente que se quer passar um verniz de elegância na, a-ham, "corte" dos anos 50. A Globo acha que pode conferir certo glamour à papagaiada tupiniquim e ao rol de estupidez de que o país foi incapaz de sair desde sempre. Não consegue. Tapeia apenas a massa, a massa dócil e tola, que nada sabe e quer sonhar com a vida, como direi?, "charmosa" dos ricos deselegantes e burros do Brasil.
março, 2006
chamaeleonte@yahoo.com.br