Estudos de Literatura Brasileira & Portuguesa, de Paulo Franchetti

 

É muito difícil achar crítica literária propositiva, hoje; pior ainda, que tenha algum interesse verdadeiro. Que eu esteja me batendo por uma revisão completa do cânone é uma coisa: sou poeta & martelo por esse ponto-de-vista, e não digo nada de novo, tenho antecedentes ilustres. Há uma pequena história introdutória para demonstrar a importância que há em críticos propositivos tirarem os escolhos do caminho.

Sondado por uma editora a respeito de compor uma antologia da poesia brasileira do século XVIII, minhas escolhas (como reduzir drasticamente a participação de Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, em favor de mais páginas para Basílio da Gama, Silva Alvarenga, o Sapateiro Silva, "O Reino da Estupidez", Sousa Caldas & uns epigramatistas menores) fizeram o editor desistir do convite.

O motivo: esquemas como o vestibular e o engessamento da reputação de algumas figuras nos currículos universitários. Sem o adendo necessário de um pouco de pensamento EFETIVAMENTE literário sobre o assunto.

O novo livro de Paulo Franchetti, crítico literário e professor da Universidade de Campinas (UNICAMP), me parece começar a abordar essa lacuna crítica, sem propor, é claro, essa revisão de que falava acima: Franchetti avalia, redimensiona, compara, olha em detalhe.

Misturando ensaios monográficos (como um sobre Gonçalves Dias e outro sobre Eça de Queirós) com ensaios que repassam períodos (o romantismo brasileiro e a poesia brasileira moderna & contemporânea), o livro permite ao leitor encontrar não só uma leitura de muitos textos da tradição ― ou do percurso que esses textos descreveram ―, mas também modos de repensar as próprias escolhas costumeiras da crítica.

 

 

 

 

Um exemplo é isto aqui, na página 54 do ótimo estudo sobre "I-Juca Pirama": "seria o caso de desenvolver e investigar a hipótese de que A Confederação dos Tamoios e Colombo, junto com as traduções de Odorico, a obra de Sousândrade e os poemas medievalistas de Gonçalves Dias (mas não só eles), configuram uma vertente cultural importante não apenas no Romantismo, como também no Parnasianimo e no período imediatamente anterior ao Modernismo. Uma vertente que talvez só agora possa ser encarada de modo compreensivo (…)".

Franchetti menciona a expressão de Antonio Medina Rodrigues "vertente latinizante" no estudo introdutório à Eneida Brazileira, tradução de Odorico Mendes. Assinala que Medina se refere a "Gregório de Matos, Vieira, Odorico, Sousândrade, Raul Pompéia, Euclides, Lobato, Graciliano, Oswald e João Cabral", além da poesia concreta.

No ensaio sobre a poesia contemporânea, que fecha o livro, lemos um dos primeiros críticos brasileiros a ser capaz de avaliar os anos recentes, e sobretudo o concretismo, corajosamente sem aderir nem repudiar. Ele fornece uma mapa inteligente & sensível da poesia escrita por autores nascidos até meados da década de 1950, sugerindo uma discussão da importância de cada contribuição, o que também é raro em livros atuais de crítica não-militante.

Um livro bem escrito & importante, por começar a modificar, doucement, a leitura herdada da tradição, e por fornecer matéria ao pensamento literário no Brasil (que, honestamente & cá entre nós, anda às moscas).

 

 

Sarabanda, de Ana Rüsche

 

Para mim continua sendo um mistério indecifrável o porquê de autores bons & novos no Brasil não serem lidos como merecem. Talvez sejamos muitíssimo preguiçosos, talvez só nos impressione quem detém o poder, talvez as duas coisas juntas.

Sempre achei que a poesia brasileira passava por dificuldades; ou melhor, eu de fato achava que elas eram monstruosas até meados da década de 1990, mas a nova safra de poetas realmente me impressiona, não apenas por sua quantidade (considerável), mas sobretudo por sua qualidade.

O prospecto deste ano 2007 d. C. é impressionante: já foram publicados, que me lembre, os três da Cosac & Naify (Angélica Freitas, Ricardo Domeneck & Marília Garcia), um da Cia. das Letras (Fabrício Corsaletti) & Paulo Ferraz, bravamente publicando seus dois livros simultâneos (recebeu o prêmio Bravo!, a propósito), além do novo de Fabiano Calixto que deverá sair ainda este ano pela 34, & mais este de Ana Rüsche.

 

 

 

 

Ana Rüsche lançou, em edição artesanal & limitadíssima do selo Demônio Negro (o editor responsável pelo capricho é Vanderley Mendonça), o seu Sarabanda, livro de poemas. O único senão é que sejam menos de cem exemplares. Ana Rüsche estreou em edição em 2005, com o ótimo Rasgada ? de que falei na Officina Perniciosa ?, livro que já permitia perceber que viriam mais coisas boas pela frente.

Sarabanda, de 2007, é a resposta a essa expectativa. Seu estilo é tão decidido & tão seguro de si que não há pontas soltas. Da pornografia à política, do humor cortante à rápida & definida nota psicológica, o livro (breve, 60 páginas) é movido pelo signo da inteligência crítica, que lhe dá impressão de dureza: não a dureza de construção medida & armada como a de João Cabral, mas a dureza aguda de tiro certeiro.

A velocidade de seus poemas está na velocidade com a qual o mundo se revira & procria nas suas inúmeras figuras de linguagem, atestando uma mente poética que estabelece nexos vertiginosos, onde uma coisa se define pelos atibutos de outra, onde o mundo é e não é ele-mesmo. Pareceria uma poesia brusca, não fosse a simplicidade implacável dos achados visuais

 

Pela manhã, a poluição, nossos olhos,

como de choro.

             ("Inocência")

 

a precisão tão objetiva no uso das palavras, e a sutileza de versos como: "recados vencidos e/ livros encomendados não prestam// pois o amor é um homem que carrega flores/ e todos o olham" ("Sobre o Ancoradouro de Navios no Espaço").

A pontuação é apenas a necessária para definir o andamento rítmico, de outra forma está praticamente ausente do livro, fazendo os versos se colar uns nos outros, ou prolongar uma idéia em outra, com relações de contigüidade freqüentes.

O soneto do "Unabomber", que termina nestes engenhosos tercetos

 

O Unabomber, secreto agente CIA,

é patriota que ama as coisas rubras,

sua porra bazuca faz magia

 

e prolifera em muitas criancinhas

que ao rugir das metralhas ficam surdas

mas depois estraçalham coleguinhas.

 

é um dos pontos altos do livro, como "Revenant" ou "A Canção do Limpa-Vidros" que, ao invés do humor ácido daquelas linhas acima, estão embebidas na tinta de uma  melancolia muito peculiar, muito refinada.

Belo livro, que merece edição comercial urgente.

 

 

setembro, 2007