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Uma pequena discussão sobre a presença da homossexualidade
no cinema americano recente
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Esta coluna está sendo escrita antes da entrega do Oscar, mas dá para arriscar com uma boa dose de segurança que o grande vencedor será O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Inicialmente lançado em um circuito restrito nos Estados Unidos, o filme logo conquistou um público crescente, ampliando o número de salas e se transformando em um grande sucesso de bilheteria. No Brasil, o desempenho não foi diferente. Além de obter números significativos, Brokeback Mountain é um dos filmes mais comentados, discutidos, atacados e defendidos atualmente. Não apenas por tratar de um assunto frutífero para a polêmica, uma relação amorosa entre dois homens, mas por abordá-lo de maneira extremamente direta, mostrando, por exemplo, a relação física entre os protagonistas com uma ousadia dificilmente vista no cinema hollywoodiano. Vou aproveitar a repercussão do filme, então, para lembrar algumas produções americanas recentes, comparando-as ao filme de Ang Lee em sua abordagem da homossexualidade.
Brokeback... conta a história de Ennis Del Mar e Jack Twist, dois típicos caubóis americanos que se vêem apaixonados um pelo outro e precisam lidar com as conseqüências disso em um meio onde uma relação homossexual não é apenas mal-vista, mas muitas vezes punida com o ostracismo social ou mesmo o assassinato.
Há críticas definindo o filme como uma propaganda da causa gay, outras o acusando de preconceito. Alguns espectadores saem do cinema achando-o retrógrado por definir o destino dos protagonistas com base em uma moral ultrapassada, alguns vêem no desfecho um libelo contra a homofobia. Não é a intenção deste texto analisar esse aspecto de Brokeback Mountain. Minha impressão é que o longa não tem uma posição clara. Apenas conta uma história de uma maneira extremamente seca e realista, considerando-se que é ambientado no interior do Wyoming (estado predominantemente rural) entre as décadas de 60 e 80. A característica do filme mais importante, aqui, é justamente a sua capacidade de gerar discussão, por mostrar tão explicitamente a relação amorosa entre os dois caubóis, utilizando-se, como poucas vezes se viu no "cinemão" americano, dos mesmos artifícios usados para contar histórias de amor entre casais heterossexuais.
Histórias de amor entre casais gays ou filmes que lidam com a homossexualidade de maneira geral não são novidade no cinema americano. Podemos lembrar, entre indicados ao Oscar, recentemente, Melhor é impossível (As good as it gets, 1997), Filadélfia (Philadelphia, 1993) e Deuses e Monstros (Gods and Monsters, 1998), só para citar alguns. Esses filmes têm na homossexualidade de seus personagens um ponto importante da trama — especialmente os dois últimos — mas lidam com a questão de forma bem menos direta. Também relevante aqui é O banquete de casamento (The wedding banquet, 1993), um trabalho anterior de Ang Lee. O longa é sobre um imigrante taiwanês, morando em Nova York, que tem um relacionamento estável com um americano. Para contentar seus pais, ele arranja um casamento de aparências com uma mulher. Apesar de não ser exatamente um exemplar do "cinemão" americano (e nem ser inteiramente americano, é uma co-produção com Taiwan, indicada ao prêmio de filme estrangeiro por ser falado em parte em Mandarim), o filme não chega perto de mostrar ou falar tão abertamente sobre a relação homossexual no centro da trama quanto Brokeback... Pode-se imaginar que boa parte das produções que tratam da homossexualidade envergonham-se em mostrá-la claramente pensando no público. E chega a ser irônico que Brokeback Mountain tenha sido um sucesso tão grande justamente por causa disso — a explicação mais comum entre os espectadores para a resposta positiva ao filme é que ele fala sobre uma história de amor (e amor impossível, o tipo mais popular no cinema), o resto não importa tanto.
Os filmes americanos que em geral tratam mais abertamente da homossexualidade são aqueles exibidos por aqui no Festival Mix Brasil ou na mostra Mundo Gay do Festival do Rio — e poucas vezes vão além do eixo Rio-São Paulo. São rotulados de "filmes gays" (estou usando a palavra gay neste texto em seu sentido mais amplo, referindo-se tanto a homens quanto a mulheres) e têm um espaço claramente delimitado no mercado cinematográfico. Se não são direcionados somente para um público homossexual, eles o são, pelo menos, para os "simpatizantes", espectadores cientes de seu conteúdo (dificilmente são exibidos fora de mostras bem sinalizadas) e dispostos a assisti-los com a mente aberta. Os longas reconhecidas como "filmes gays" vão desde documentários como Paris is burning (1990), sobre a noite gay nova-iorquina, até comédias românticas inocentes como Truques da paquera (Trick, 1999) e But I’m a cheerleader (1999).
Claro, existem filmes que tratam abertamente da homossexualidade, fora desse rótulo, em geral distantes do "cinemão". E as exceções têm sido cada vez mais comuns, inclusive na premiação do Oscar. Monster (2003), ganhador do prêmio de Melhor Atriz em 2004, é um dos filmes recentes, independentes ou não, que mostram mais explicitamente uma história de amor homossexual. Mas, por tratar de outro tema bem mais polêmico, uma protagonista assassina serial, esse aspecto não gerou tanta discussão. Participante do Oscar do ano passado, Kinsey (2004) não fala especificamente sobre a homossexualidade, seu foco é a diversidade sexual em geral, mas o filme traz uma rara cena de um longo beijo entre dois homens em primeiro plano. Brokeback Mountain é mais um exemplo de uma tendência que tem sido cada vez mais comum (este ano, temos mais dois filmes com alguma temática gay no Oscar, Transamérica e Capote). E já se fala sobre uma possível influência do sucesso do filme de Ang Lee — que atualmente prepara um filme sobre a cantora lésbica Dusty Springfield — na produção hollywoodiana futura (uma moda gay?).
março, 2006
sholl@globo.com