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O
que podemos aprender de um país muito mais pobre que o Brasil,
e com a terceira maior indústria cinematográfica do mundo
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Em seu Atlas do Cinema de 2005, a revista Cahiers du Cinéma apontou a Nigéria como o terceiro maior mercado cinematográfico em faturamento, e o maior em número de títulos lançados, com cerca de 1.200 (os produtores nigerianos apontam uma produção bem maior, com mais de 2.000 lançamentos). Esses números são surpreendentes não apenas por se tratar de um país muito pouco lembrado quando se pensa em cinema. A Índia — o segundo maior mercado — segue um padrão parecido: um país pobre, com população grande, que produz muitos filmes baratos de apelo popular.
A Nigéria (verbete em inglês) é um país com 130 milhões de pessoas, um número bem parecido com o nosso. E, assim como por aqui, uma das grandes dificuldades é integrar tanta gente. A diferença é que lá a população é bem mais pobre: o PIB per capita é de US$ 1.000, contra US$ 8.400 no Brasil — 60% da população está abaixo da linha de pobreza, e 32% das pessoas são analfabetas. Não é exatamente um cenário onde se imagine uma indústria cultural florescente. Mesmo assim, a produção cinematográfica é assistida maciçamente pela população, e dos mais de mil títulos lançados anualmente, a grande maioria se pagou — sem qualquer auxílio governamental. Como comparar esses números com os nossos? No Brasil, foram lançados 41 longas-metragens em 2005, dos quais menos de 10% tiveram retorno do investimento na bilheteria.
O interessante, no caso nigeriano, é o sistema de distribuição montado pela indústria cinematográfica. Para começar, os filmes não dependem de exibição em salas de cinema, um nicho que anda em decadência no mundo inteiro (até no sempre rentável mercado norte-americano está se sentindo uma lenta, mas inexorável redução no número de espectadores), e é caro demais para um país pobre como a Nigéria (e para a grande maioria da população brasileira também, vale lembrar). Não há salas de exibição por lá. A grande jogada do mercado nigeriano foi transformar em aliado um dos grandes inimigos da indústria cultural no mundo: a pirataria. Aproveitando-se da rede de distribuição montada por camelôs, os produtores de cinema distribuem seus próprios filmes de maneira independente e surpreendentemente eficiente. Toda segunda-feira, são lançados cerca de cinco títulos, entregues pelos produtores em quatro mercados localizados em pontos estratégicos. Através de comerciais transmitidos pela National Television Agency, uma rede com 101 emissoras de televisão, os consumidores são informados dos lançamentos. Esses comerciais criam uma demanda que força os revendedores a comprarem os títulos e redistribuírem entre camelôs. Em, no máximo, duas semanas, os filmes chegam ao consumidor final, nos mais diversos pontos do país, por US$ 3 cada, o que, de quebra, torna a pirataria inviável — como vender mais barato do que isso?
O
panorama acima foi dado pelo produtor Charles Igwe, que esteve no Brasil
para o seminário A emergência do Cinema Povo (mais
informações: aqui
—
os organizadores prometem transcrições e material sobre
as palestras em breve), organizado pela FGV e pela Fundação
Ford no começo de maio, e oferece um contraponto interessante
para a indústria cinematográfica brasileira. Esse esquema
de produção-distribuição começou
há menos de quinze anos, em 1992 (um pouco antes da chamada retomada
do cinema brasileiro, portanto), de forma extremamente amadora. No início,
um vendedor de fitas de vídeo teve a idéia de, ao invés
de vendê-las virgens por US$ 1, gravar peças de teatro
e vendê-las a US$ 2. O sucesso foi tão grande que gerou
capital para investir em filmes próprios, e a indústria
foi se sofisticando até chegar onde está hoje, gerando
mais de US$ 600 milhões por ano.
Até hoje, o modo de produção é muito mais próximo do amador do que do profissional. Os filmes levam em média 10 dias para serem filmados, e o orçamento é extremamente reduzido — entre US$ 10 e 100 mil, normalmente. A maioria dos profissionais veio da televisão nigeriana, e quase nenhum deles tem uma formação profissional específica para o cinema. Mas isso não tem importância. Não se trata, é claro, de filmes de arte. São títulos assumidamente populares, que buscam atingir a população falando sobre os temas próximos a eles. São melodramáticos, maniqueístas, de estética extremamente simples, beirando o tosco — e são um sucesso estrondoso. Já têm venda considerável em outros países, principalmente os de língua inglesa — aí incluídos EUA e Inglaterra. É impossível saber exatamente o seu alcance, pelo esquema de vendas inteiramente descentralizado.
É interessante olhar para o caso nigeriano para buscar saídas para os problemas da indústria cinematográfica brasileira (e, quem sabe, em outros países também?). Aqui, como no resto do mundo, os pagantes em salas de cinema diminuem ano a ano. Produzimos 42 títulos em 2005, dos quais apenas 11 obtiveram mais de cem mil espectadores (os dados são da Ancine). Dependemos inteiramente de auxílio governamental para manter a indústria funcionando. Não se trata de tentar copiar o modelo nigeriano — que é um caso específico e restrito a algumas variáveis só existentes por lá. Mas há muitas lições que podemos aprender. A não depender somente da exibição em cinemas, por exemplo, uma mídia que certamente não vai desaparecer, mas demonstra um sério desgaste. Aqui, como na Nigéria, temos uma grande parte da população vivendo longe das grandes cidades, e, portanto, sem acesso às salas de cinema — mas com aparelhos de DVD em casa. Outra alternativa interessante foi apresentada por Heather Ford, uma das palestrantes no seminário A emergência... Trata-se de um filme sul-africano inteiramente filmado com câmeras de telefone celular, e que será distribuído também nessa mídia, para download em capítulos. E, o mais importante: o modo de produção nigeriano não possui os vícios tradicionais da indústria cinematográfica, que encarecem e tornam a produção tão longa e complicada. A tendência, à medida que o mercado cresça e se torne mais sofisticado, é que também por lá os sets fiquem cheios de profissionais, como maquiadores pessoais para determinado ator, ou segundo e terceiro assistente de câmera. Mas existe algo no amadorismo desses filmes que pode servir de exemplo para indústrias mais maduras. O que precisamos nos perguntar é: afinal, o que é mais importante ao se fazer um filme?
junho,
2006