Os últimos teus, de Mateus

 

 

O senhor é parente?

Pode ser.

Vai vazar...

O quê?

Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam.

Quem é você?

Meu nome é Mateus Araripe, tome meu cartão, trabalho com estética. Temos representações na capital e no interior. Fazemos tudo, corremos com a papelada, vestimos, higienizamos  e enviamos para qualquer parte do Brasil.

Hmm... E?

O senhor sabe, nosso trabalho já foi feito... vestimos o corpo, mas a gente pode dar uma maquiada antes que os condolentes cheguem e o vejam assim tão...  simples. Colocamos algodão nas narinas, passamos uma base no rosto, penteamos o cabelo com goma, um batonzinho pra dar uma cor, ajeitamos a dentadura, pois a boca vai murchar o queixo cai, né.... fechamos os olhos pra dar a impressão de estar dormindo, e colocamos também um terço combinando com a cor do terno que será vestido, além de amarrarmos o órgão com barbante pois a tendência é o líquido sair, sabe como é... a morte é muito dolorosa para os que ficam, mas nós estamos aqui para tornar tudo melhor... pode confiar em nossa empresa doutor... somos respeitados no mercado.

Acredito, mas vai ficar bom?

100% doutor. Mas se quiser também cremamos.

Não, não, pelo amor de Deus... mas e a roupa, o terno, os sapatos?

Fica tudo como está, vai tudo com o corpo.

Quanto é?

300, mas se quiser coroas de flores, sobe pra 800. E não aceitamos cartão, somente kéchi ou cheque especial.

Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta.

Que é isso doutor... que horror....  eu pensei que o senhor...

Pensei... pensei...o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro, quem pensa demais acaba se enganando...  Não esqueça a aliança e os dentes de ouro, eu os quero também.

 

 

 

 

O escravo é Jó

 

 

Nasci na hora certa. Lugar e pais perfeitos. Cresci como promessa. Na escola as notas sempre boas. Casei bem, ampliei meu rebanho, juntei heranças, tive filhos sadios, e naquele tempo ninguém me segurava. Mas sempre fui mesmo meio caladão. Acreditei piamente que a Fortuna sorria para minha empreitada, e por ser lacônico, todos me consideravam uma boa pessoa, dessas que se cerram numa névoa plácida, como uma muralha de fadiga que oculta os ódios e os rancores, e tudo passa a fazer parte de uma bonança abençoada pela Providência, até aí tudo bem. Cheque especial, cartões de crédito de diferentes cores, contas, impostos, juros, números, desapropriações, tudo tranqüilo. Enquanto sonhava que saía da cidade, meu rebanho morreu, começei a ter feridas, coçava-me o dia inteiro, uma ziguizira dos diabos; os invejosos diziam que ficavam-me bem as poucas palavras quase tanto quanto as escrófulas. Os amigos. Elifaz, o clemente, chamou-me prostrado; Bildade, o pertinaz, hipócrita e reticente; Zofar: compreendia minha compassiva solidão e me olhava com certa reverência. O semi-sussurro mais discreto do que o de uma borboletinha negra ainda não podia ser entendido por mim. Quando a seca assolou minhas terras, apenas Elifaz e Bildade quiseram comprar e Zofar não tinha grana. Bons amigos! Livraram-me daqueles valores mesquinhos: da propriedade privada, do mercado, da bolsa, da produção, da distribuição, do abastecimento, do medo de seqüestro, da propina, do saldo, do débito, da taxação, do desabastecimento, da alíquota, da nota fiscal, do consumo, do juro.... até aí tudo bem. Lembro como se fosse hoje, deixei de barganhar, vendi até barato, pensando bem, perdi dinheiro, mas tive meus motivos. Minha mulher não me perdoava: Fala, diz alguma coisa, mostra que é homem, blasfema!

 

Quando cheguei em casa naquele dia, podia-se ouvir os ruídos de sempre, as chaves no tampo de cristal da mesa, a porta, os quarenta passos que me separavam da sala de jantar, donde era possível ver no fundo do corredor um vulto suspenso e um outro caído no chão. Uma corrente de ar mexia de leve a saia leve de seu corpo enforcado e Zofar, que chorava aos seus pés, foi digno. Saiu de nossas vidas e nunca mais voltei a vê-lo.

 

 

 
 
 
 

O Filho Pródigo

 

 

Herança feita, bens desfeitos: Mulher, dois filhos enterrados, duas filhas e um primogênito que restara, mas que pouco valia. Este, por ser roteirista de cinema, era considerado pobre e mal sucedido na vida. Era o que restava. Preferiu não esperar a reconciliação que, bem sabia, nunca viria. Sentia-se como um homem a caminho de um longo exílio, parado no convés de um cargueiro, olhando para os contornos indefinidos da costa. Antes da partida lavrara o testamento num cartório da capital, privilegiando a esposa, afinal ela tinha sido a mãe dos filhos que não eram os melhores, nem os mais perfeitos, tampouco, de longe, os mais carinhosos, mas eram filhos, podres filhos paridos e criados à imagem e semelhança do pai, pensava Mendonça enquanto afrouxava a gravata, arregaçava as mangas da camisa expondo o lunar do antebraço esquerdo e pousava o Rolex de ouro na cômoda vulgar de um hotel ordinário de interior. A viagem até aquele remoto lugar da memória, a quilômetros da BR-101, tardara horas de poeira coada nos olhos áridos de Mendonça e como, desde a tragédia, dispensara seu motorista, dirigira por mais de 23 horas. Olhou-se no espelho e, antes de tomar uma golada de água da bica, percebeu que esquecera algo. Olhar para o interior de si despregava um mundo de vertigens. Tentava esquecer, também, que o filho prometera voltar à casa pródiga. Já era tarde. Esquecera algo? — angustiava-se com tal pensamento que o perseguia desde jovem. Ainda esquecido dentro do espelho, descobrindo-se por um olhar fatigado dentro dele, pensou nas rugas, nas terras que viu, nas outras por onde andou, e nas outras tantas que inventou, no filho que não teve, pelo assim se dizer de uma ausência, na fortuna acumulada, nas preces que fez, nos amigos que não deixaria, nos três filhos. Despertou do hipnótico olhar débil, com a boca ainda seca. Agora, Mendonça avistava apenas o horizonte vazio. Ja não havia mais costa, nem pequenas paisagens ao longe.

 

Desceu à recepção e fez quatro chamadas telefônicas. A mesma pergunta para o prefeito, para o delegado, para a dona do bordel e também para o padre: "receberam o dinheiro?". Tudo conforme combinado: recordativos fúnebres com dizeres enlevados e a imagem do Senhor Jesus Cristo cravado numa cruz de madeira, mais de seiscentos condolentes-figurantes pagos previamente, a roupa do defunto ao lado da cama, um terço, uma gravata negra, a escultura de um anjo tocando uma trombeta e a epígrafe: aqui jaz um ilustre filho da cidade. Jonas entendia sua razões, prometera que chegaria na cidade por volta das quatro horas e trataria dos detalhes restantes do velório. Uma misteriosa mulher extremamente elegante, de bela estatura, corpo moreno já marcado pela idade, olhos negros, porte ereto, cabelos ondeados, porém lisos, também chega à cidade naquela tarde, acrescentando mais detalhes misteriosos aos acontecimentos.

 

Doze pílulas de tranilcipromina mais os últimos quatro prozacs, duas boas goladas do malte puro para azeitar a goela, e pronto. Deixou o corpanzil cair na poltrona de damasco e verde musgo, único objeto que dava dignidade ao quarto ordinário, cruzou as mãos no estômago, que a essa altura já começava a ruminar seu fim. Apenas uma leve náusea de maré alta. Às três horas, imaginando ele que quando o médico chegasse àquele fim de mundo para constatar o óbvio, recolheriam seu corpo, e quando os jornalistas da capital farejassem sua morte, os moradores deveriam repetir com veemência a mesma história bem paga e previamente combinada: Sim senhor, o senhor Olavo Abraão M. de Albuquerque era um legítimo filho da terra, voltou para morrer na sua cidade natal.

 

Jonas, amigo até na ausência, acompanhava de um bar apenas com os olhos a passagem do cortejo. Permaneceu em silêncio, desarmado também na alma. Até quando, em meio a multidão, o olhar do primogênito se cruzara com o dele, abanaram de leve a cabeça. Até nisso, de ambos, não se via culpa. Que descansem em paz o filhos-da-puta, mesmo à distância, Jonas quase intuiu dos olhos do outro.

 

 

 

 
 
 

Olho por olho....

 

 

Dentes de ouro, sorriso suasório. Após juntar algum dinheiro em pedras e jóias com a lida do garimpo, parece que lá pro Norte, Moacir decidiu partir. Sonhava em parar numa cidade pequena abrir um secos & molhados e levar Josefina consigo. O filho que levavam consigo fazia, ele, de conta que era seu. Os seus, de fato e de direito, providenciaria assim que sentassem praça. O cão, o destino do cão que seguia Moacir por toda a parte talvez nunca se venha a saber, talvez fosse melhor não perguntar qual será o destino do animal, ignaro e disperso por natureza, que vive apenas os dias sem um fio condutor que ligue seus acontecimentos cotidianos a um sentido da vida, que não aquele de seguir e proteger seu proprietário, se é que aí esteja o verdadeiro  sentido da felicidade animal, o de não refletir sobre seus semelhantes seres, sobre a mudez das coisas, o sentidos presentes e ausentes, as origens, os fins, as razões, as margens das intenções, os desesperos dos gestos...

 

Escolheram para viver, aquela pequena cidade de interior, com o busto do filho ilustre, igreja e prefeitura. Meio padaria, meio armarinho: vitrine com carnes boiando em caldos engordurados, salgados, ovos cozidos, restos de aguardente nos copos sobre o balcão, mesa de totó, ovo rosa, maria-mole, mortadela pendurada, linhas de diversas cores, pipas coloridas, garrafas de cana penduradas, enlatados nas prateleiras que iam até o teto. Em poucas semanas os clientes já tinham caderno de fiados, e sem que Moacir percebesse, os visitadores entravam pelos fundos do bar. Os comentários já se espalhavam pela cidade e à alcunha de forasteiro se agregou a de corno.

 

Quando descobre que é traído, na tarde em que buscaria os filhos na casa da cunhada, mas que por obra do acaso ou do azar, nesse caso, caminhando lado a lado em significado e infortúnio, retorna com a sensação, comprovada ao olhar a mesa de centro da sala, de que tinha esquecido as chaves de casa, Moacir, trincando os molares de ouro, sorrateiro, escuta os ruídos no quarto, ouve os gemidos, recolhe suas lembranças em tudo que se desordena ao seu redor; aproveita um dos passeios matinais de Josefina à igreja e tranca o portão dos fundos, veda as janelas, trocas as fechaduras e envenena o cão estimado da casa, afeto da mulher. Os clientes estranharam a loja vazia no meio da manhã. Quando Josefina retorna, ele aplaca o coração partido, aqui significando estilhaços de um paraíso possível para sempre perdido, sentido fragmentário que o abandono do corpo exprime em juízos vingativos, reativos, violentos, que vão sendo cardados, fiados, tecidos dia-a-dia silenciosamente, mas que no caso de Moacir o golpe de asa negra do orgulho o impulsionou, intenção precedida de uma profunda dor na alma, prende-a no quarto para sempre. Nunca mais se viu Josefina, as lendas eram muitas, dizem que ela criou fiapos de barba no queixo e no buço, a pele esverdeou de tanta escuridão e os olhos exoftálmicos denotavam avançado estado de miopia. Como não se teve mais notícias, dizem que ela aceitou seu destino recluso. Uns elogiavam, outros condenavam a atitude de Moacir. O fato é que todas as noites antes de se deitar ao lado de Josefina, sentado aos pés da cama, acendia uma vela na mesinha de cabeceira, rezava um Pai Nosso, uma Ave Maria, riscava o sinal-da-cruz sobre o peito e dormia o que lhe parecia ser o sono dos justos.

 

...dente por dente

 

Durante uns dois meses Moacir passou a sentir fortes engulhos. Semanas se passavam. Alguns diziam que era úlcera, outros chegaram até a desconfiar de tuberculose e deixaram de freqüentar a Mercearia do Moacir. Os filhos iam crescendo com a ausência da mãe, que recebia a comida por baixo da porta — os excrementos eram acumulados num barril no canto do quarto e recolhidos quinzenalmente. No fim do segundo ciclo lunar a quitanda foi aberta sem a presença de Moacir. A sombra de Josefina que reaparecia, após doze anos de reclusão, não se comparava com a exuberância daquela outra mulher do passado. Os corpos de Moacir e Estógio nunca foram encontrados na cidade. Mas, secretamente, Josefina passou a exibir um cordão de ouro onde o que chamava a atenção era o crucifixo de pedras esmeraldas, ladeados por dois caninos de cão.

 

 

 

 

(imagens ©ip)

 

 

 

Francisco Rogido (1972). Brasileiro, vive nos Estados Unidos e trabalha na Library of Congress. Já teve contos publicados em algumas revistas literárias, dentre elas, a Revista Cult, edição 58. No momento, está concluindo seu primeiro livro de minicontos, de título provisório, O inferno é aqui.