SEM SAÍDA

 

Levanta, acorda,

Sai do teu túmulo vivo

Tenta redivivo ser,

Junta-te à horda

Dos filhos de Deus.

Quantos, quantos dos teus

Ainda choram, ainda moram,

Ainda vivem? Acorda,

Não espera pelos anjos

Eles estão muito ocupados.

Ultrapassa a maré-rasa,

Esbraveja, extravasa,

Despeja o teu silêncio

Há tanto tempo calado

Nos ouvidos empoeirados

Da indiferença, dos moucos.

Contesta, protesta

No teu manifesto rouco,

Encara, arrosta, afronta,

Desmonta do estribo do medo,

Recusa ser arremedo.

Apaga a luz, acende as trevas,

Cobra o justo, devolve a esmola,

Não teme o custo pois nada levas,

Desfralda a vida, zarpa do porto,

Alça teu sonho, rompe a gaiola,

Liberta-te... pra seres morto.

 

 

 

 

 

 

ESTILHAÇO

 

Meu mundo está encolhendo.

O horizonte já não está

Tão distante quanto antes.

Meu telhado de nuvens está

Baixo e continua descendo.

Que o tempo não me remende,

Que a vida não me tenha intruso

Enquanto sigo em desuso

Com a validade vencida,

Um andejo vacilante

Na orla de sobrevida.

Minha alma calada entende

E espera impalpável no etéreo

Na düidade da existência.

Quantas desculpas esqueci

De pedir por arrependimentos,

Por pesares, por negligências,

Quantas súplicas guardei

No silêncio de um momento

Em que eu me arrependi!

Quantos sonhos nunca acordaram.

Nas asas do tempo partiram

Tantas vozes e braços amigos,

Fiéis abrigos que hospedaram

Minhas carências, fraquezas

E incertezas que a desoras

Moldaram este engaço de agora,

Este estilhaço prévio de vida

Que nem na estação mais florida

Festejou a primavera.

 

 

 

 

 

 

AMANTE GUERREIRO

 

 

Se sou poeta? Sei lá se sou,

Só sei que penso com o coração

E que quando escrevo me dou

Por uma paixão incontida

Que faz do meu peito a guarida

Dos sentimentos do mundo.

Sou amante, mas sou guerreiro

Diante da flor e diante da dor,

Por amor até morro primeiro,

Contra a injustiça miro meu brado,

Armo o soldado com as palavras

Com a indignação ao meu lado.

Cavalgo na trilha dos versos,

Com a poesia eu batalho

Sem pejorar, mas acusando,

Não recuando, apenas avanço,

Sopeando sempre o perverso

Universo de iniqüidades

Onde verdades são grandes mentiras,

Onde o perfeito se revela falho,

Onde a fome é um atalho

Pelo qual a morte encurta a vida,

Onde essa vida tem senhores,

Onde a hipocrisia, com favores,

Limpa a ferida, mas deixa as dores.

Se sou poeta é meu verso que diz,

Falando de amor para além dos desejos,

Talvez até uma imensa utopia,

Mas enquanto houver uma vida vazia

Eu não serei um poeta feliz.

 

 

 

 

 

 

POR TI

 

 

Neste silêncio que me dói,

Nesta ausência que corrói

A minha paz,

Nessas noites repetidas,

De saudades pressentidas,

Uma lembrança me traz

O teu sorriso,

Os teus beijos,

Os teus carinhos,

Desejos tantos em que amamos,

Caminhos quantos

De que preciso

Para viver,

Mas continuo sozinho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DERRADEIRA SOLIDÃO

 

 

SÓ,

 

 

 

 

 

 

NO                                                                   PÓ.

 

 

 

 

 

 

E

 

 

 

 

 

 

 

SÓ.

 

 

 

 

 

 

ALERTA

 

Água, água, água,

Vejo um mar de baleias com sede,

Vejo um deserto de águas retirantes,

Vejo o cinza a repintar o verde.

 

Água, água, água,

É o sal que fugiu da terra,

É o pó que espera pela vida,

É a paz com jeito de guerra.

 

Água, água, água,

O alento aos poucos se expira,

Na fanfarra cretina dos discursos,

Onde o homem é a grande mentira.

 

Água, água, água,

Vejo cemitérios de asas no chão,

Vejo alvoradas de poeira no ar,

Ouço um mutismo de silêncio-inação.

 

Água, água, água,

Não há tempo para lágrimas, morre o pranto,

O espinho sobrevive sem a flor,

O amor se esvai no desencanto.

 

Água, água, água,

Nem fauna, nem flora, nem essência,

O racional se opõe à natureza,

A duidade é quebrada na demência.

Horror insano e tão previsível

Numa voragem destrutiva insaciável

Mas, se o homem se vestir logo do juízo

Ainda poderá se despir do inevitável.

 

 

 

 

 

 

MUITOS ANOS DEPOIS

 

Pouco me importa o que teci, o que perdi,

As lágrimas, as saudades, os desencantos,

Tantos disfarces, infernos, tantos véus,

E quantos céus que eu rejeitei, e quantos.

 

Pouco me importa agora esse tempo

Que traçou rugas, desenhando o envelhecer,

É o mesmo tempo que hoje pára e escuta

O que a vida sempre me ouviu dizer:

 

Eu te amo.

 

 

 

 

 

 

ARDENTE DESEJO

 

Vem dormir nos meus sonhos,

Traz promessas aos meus desejos.

Sem pejo, despudoradamente,

 Pressente meus anseios,

Me banha com teus beijos,

Me inunda de paixão,

Conduz a minha mão

Ao encontro dos teus seios

E, sem pressa, devagarinho,

Ensina-lhe o caminho,

E deixa que meus dedos,

Na avidez da ansiedade,

No roçar de mil meneios,

Te incendeiem de emoção o peito.

Flutuarás então na excitação,

A mesma que todas as noites

Me põe na tua direção,

Vagando em pensamentos

Buscando nossos momentos,

Esperando que de repente, num açoite,

Saltem do imaginário pro real

E nos atirem do sonho para o leito.

 

 

 

 

 

 

A ÚLTIMA NOTÍCIA

 

"Atenção, muita atenção

Para a última notícia".

(e seria a última mesmo)

A voz lúgubre noticia

No espaço vazio, a esmo,

A última notícia.

Nem chegou a ser a última

Porque não chegou ao fim.

 

Nem mais ouvidos havia

Para escutar a notícia.

A cidade ficara surda,

A pátria estava surda,

O mundo já nada mais ouvia.

Nem ouvia o beija-flor,

Nem a flor mais pediria

Um beijo ao beija-flor.

 

Nem o amor venceria,

Nem o amor ouviria,

Fora vencido o amor.

A aurora ainda viria

Mas, não acordaria a vida

Que também fora vencida.

A lua ascenderia

Descendo seu prateado

Nos corpos dos namorados

Que também já não amavam

Mas, estavam abraçados.

 

Na solidão do mundo sentei,

No silêncio da vida chorei,

Olhei para o alto e orei.

Mas, ainda haveria Deus?

O sinal estava verde, pra nada.

O vermelho parara tudo,

Crentes, dementes, ateus.

Só uma barata atravessava a rua.

O trânsito, parado e mudo.

 

O mar fugira no horizonte.

No horizonte havia um monte

De ossos partidos,

De ferros distorcidos,

De verdade nua e crua,

De justiça social.

Enfim todos eram iguais,

Estavam nivelados no nada.

O nada então era tudo.

 

Pacifistas, ecologistas,

Políticos, poetas, o bem, o mal,

Enfim todos eram iguais.

Não se ouviam protestos mais.

Apenas eu tinha ouvido

Um derradeiro gemido

Mas, não a última notícia.

"Atenção, atenção..."

E não havia mais plantão

E nem havia notícia.

 

Perplexa e intrigada

A barata me encarava.

Eu era um resto de nada,

Ela, um saldo de tudo.

Pensei: "A História, a Ciência, a Cultura,

Tudo, tudo agora perdura

Na poderosa barata".

E perplexa ela me olhava

Enquanto eu expirava

Junto com a paz fictícia.

 

Foi aí que eu percebi

Que para a barata eu era:

"A última notícia".

 

 

 

 

 

 

MAGIA

 

No alto da duna branca

A vida pousa e descansa,

Meu pensamento na escuna

Velejando em lembranças.

O vento que vai passando

Me chama para o momento

E vejo o sol bocejando,

Discreto, se escondendo,

Sem pressa, suave, bem lento.

As cores vão desbotando

Apagando mais um dia,

A noite vai se espalhando

Trazendo de volta a magia.

 

O poeta acende as estrelas

E enfeita o palco noturno,

Alegres duendes vêm vê-las

Até um pigmeu soturno.

O sorriso da lua cheia,

Que alceia, ilumina o mar

Com as fadas a espreitar.

No ar há murmúrios de preces

De crentes, doentes, amantes,

Que os anjos, seres mutantes,

Vão entregá-las aos santos.

 

Lágrimas, sorrisos, espantos,

O encanto dos narcisos,

O medo dos desencantos,

A ciranda dos indecisos,

A profecia dos insanos,

A calçada dos excluídos,

A injúria dos profanos,

A angústia dos oprimidos,

A vergonha dos desonrados,

A vigília dos perseguidos,

O riso dos dissimulados,

O desprezo dos abjetos,

A fé que não desanima,

A mão que esqueceu o afeto,

O verso que perdeu a rima.

 

A voz da noite confia

Muitos segredos ao vento

Enquanto mil pensamentos

Planejam na fantasia.

Nas trevas o silêncio vigia,

A morte se confunde ao sono,

O mistério se refugia,

A vida acorda pro sonho.

 

 

 

 

 

 

ANJO DA GUARDA

 

Foste meu anjo da guarda,

Meu anjo custódio,

Com destaque no pódio

Deste velho coração

Que encontraste sofrido, amargurado,

E livraste das amarras da solidão,

Ao lhe estenderes tua mão,

Tua solidariedade,

Tua atenção,

O teu carinho,

Plantando no meu espinhoso caminho

As sementes de um futuro

Que quase fora sepultado

Pela vida, destruída, amargurada,

Pelo amor, amante, apaixonado, forte,

Que cresceu sempre na dificuldade,

Mas que não pode vencer a morte.

 

Hoje és meu anjo da guarda,

Meu anjo custódio,

E se a vida continua,

Se reaprendi a sorrir, em vez de chorar,

Se desisti de partir, para ficar

E reencontrar a felicidade,

Que convive com a saudade,

Foi por dádiva, por graça tua,

Por tanta generosidade,

Por tanto devotamento,

E por isso estás presente

Em cada momento

Da minha paz, sem partida,

Do meu amor, sem procura,

Com amizade, com ternura,

Passeando nos meus sonhos,

Vivendo na minha vida.

 

 

 

 

 

 

A MANHÃ SEGUINTE

 

Por isso hoje

A alvorada despertou no silêncio

E a Natureza não abriu suas asas.

Por isso hoje

Havia um tom cinza de outono

No verão da manhã entardecida.

Por isso hoje

Havia apenas sombra na alma do mundo

E uma ânsia de passado no tempo que seguia.

Por isso hoje

Na nossa solidão cresceram espinhos

E as rosas foram todas para o céu.

Por isso hoje

Um suspiro soluçava numa lágrima

E o amor dividia o coração com a saudade.

Por isso hoje

A vida antiga, o efêmero, te perdeu

E o espaço sempiterno é agora tua vereda.

Por isso hoje

Tu és uma lembrança, muito mais que um retrato,

Uma dor que não machuca

Mas nos acorda pra orfandade,

Um sorriso etéreo que não abandona,

Que abençoa, compreende e ainda perdoa,

Uma essência de vida unitiva

Comungando com a Eternidade,

A luz que acenderá nossas trevas

Sempre que a ilusão apontar nosso caminho,

A nostalgia tão presente nos detalhes,

A ausência que esvazia nosso amanhã.

Por isso hoje

O orvalho amanheceu salgado,

É que ontem, a noite chorou.

Por isso hoje

Também estou com essa vontade de chorar

Mas recordo que tu nunca foste triste

E que se ainda existe neste corpo cansado e vivo

Colheita de amor, ternura, solidariedade,

Tolerância, indulgência, perseverança

Foste tu que semeaste.

Por isso hoje

Apenas vou lembrar teu rosto, agora eterno,

E se teu sorriso para nós virou saudade

Tua bondade de fada, madrinha, teu Dom materno

Sempre estarão em cada um de nós que tanto amaste.

 

(imagens ©charlie drevstam)

 

 

 

 

Francisco Simões (Belém do Pará, 1936). Foi locutor, produtor de programas e escritor de crônicas diárias no rádio paraense, tanto na Marajoara, como na Rádio Club do Pará. Durante vinte anos, integrou a Associação Brasileira de Arte Fotográfica, no Rio de Janeiro. Ganhou mais de mil premiações nos salões mensais e anuais. No auge da bitola super-8, produziu filmes de curta-metragem, durante o regime autoritário. Ganhou prêmios de destaque em festivais e mostras, com filmes voltados para a crítica social e política. Trabalhou 30 anos no Banco do Brasil. Foi professor, coordenador e programador de cursos, entre outros cargos de destaque. Após 1986, quando se aposentou pelo BB, passou a realizar exposições externas de "Fotografias Artesanais". Em 2000, recebeu o título de cidadão honorário de Cabo Frio. Em 1994, voltou a escrever poesia. Entre 1999 e 2001, ganhou dezenas de prêmios em concursos literários. Foi publicado em diversas antologias literárias, assim como em alguns jornais. Retornou à prosa em janeiro/2001, com 63 anos de idade. Hoje, escreve especialmente para o Coojornal da revista Rio Total e Conexão Maringá. É também colunista do Sinal, do Sindicato dos funcionários do BACEN. Mais informações em seu site, clicando aqui.