Greta Benitez (Curitiba-PR). Publicitária e pós-graduada em Marketing. Lançou, em 1999, o livro de poesia Rosas Embutidas e edita o site Poesia Insana. Já obteve diversas premiações em vários estados do Brasil e foi publicada em várias antologias.
  






 

..........Não sou tão velho assim. Mas admito que na minha carreira de jornalista já vi coisa que até Deus duvida. Essas e outras que me fizeram acreditar no fantástico, ao qual me mantive descrente por muito tempo em minha vida. Na verdade, era bom não acreditar. É como acordar do pesadelo: você vê que não era real, pega seus óculos, as chaves da casa e vai trabalhar. Está tudo ali. A calçada, o asfalto, o rádio. Mas não é nada disso. Na realidade, o pesadelo não tem fim. Você apenas acorda para um novo pesadelo.
..........A Mulher Pela Metade foi uma das pessoas que me conduziu nesse mundo do fantástico. Ela me ajudou. Me ajudou a não ter tanto medo do pesadelo. Até mesmo a gostar dele.
..........Era uma casa elegante. Cheguei no meu carro velho e sujo, munido de gravador e minha timidez habitual. Um jardim de belas flores, arquitetura clássica. Toquei a campainha e fiquei gelado quando ela abriu a porta.
..........Era realmente, uma mulher pela metade. Como cortada, ao comprido, por uma lâmina afiada. Andava ajudada por uma espécie de patim, que fazia com que ela deslizasse segurando nas paredes. Muito habilmente, ela se locomovia com graça pela casa.
..........Ela me ofereceu duas xícaras de chá. Para ela, duas doses de uísque, que depois resolvi aceitar também. — Comigo é tudo em dobro — disse. Eu, sempre meio de lado, porque temia ver o seu "meio": o local onde supostamente teria havido o corte. O que haveria ali? Carnes, sangues coagulados, estômago à mostra? Cérebro? Eu sei, eu sei. Timidez e medo são meus piores companheiros.
..........Minha grande surpresa foi ver esse "meio" coberto por uma espécie de tela feita sob medida para estar ali.
..........— Sempre gostei muito de arte — ela disse. — Aqui tenho pequenas reproduções de meus artistas preferidos. Reconhece aí o detalhe de Bosch?
..........— Não conheço esse. Não gosta de Van Gogh? Não vejo nada dele.
..........— Não é dos melhores — disse, com um sorriso.
..........Sabia que minha situação era crítica. Mas respirei aliviado quando vi que não teria que ver um corpo humano por dentro. E continuei ouvindo ela falar:
..........— Vítima de amnésia. Acordei assim, aos dezessete anos, sem ninguém e com uma conta de alguns milhares de dólares. Por sinal, acordei em um hotel barato do centro velho. Não sei de nada, juro. Tenho sim, algumas lembranças... o néon do hotel piscava. Sei que tinha visto filmes com alguma coisa assim, quando eles tentam criar aquele clima. Mas é difícil. Sei que nunca encontraram alguém como eu, mas creio que nasci assim, ao contrário não sobreviveria. Imagino que eu seja de uma raça desconhecida. Gosto de inventar histórias para mim. Eu estaria no hotel, porque era a prostituta mais cara de uma grande rede. Para gostos pouco usuais, coisas assim. Artigo de luxo. Foi quando tive algum tipo de delírio que me roubou a memória e me deixou apenas com minha nécessaire. Maquiagem alemã, documentos e cartões de bancos. Além de lingerie adaptada, claro. Para ser sincera, não tenho nada a reclamar. Tenho uma vida boa. My life is good. O pior para mim é que tenho um sonho. Queria muito cruzar as pernas. Acho isso tão sexy. Mas se esse é meu pior problema, deve ser porque sou feliz, não?
..........A Mulher Pela Metade. Talvez a pessoa mais inteira que eu já tenha conhecido.

 


 


..........E ele saiu.
..........Saiu pela porta igual às outras portas dos outros apartamentos do prédio. E ele estava feliz. A porta dele brilhava. Era o dia que ele mais esperava e o dia em que ele realmente era feliz.
..........E ele chegou. Subiu as escadas do prédio velho do centro da cidade. No térreo do prédio funcionavam um cinema pornô e uma loja de roupinhas de bebê.
..........E ele viu a Segunda Porta. A Segunda Porta era a que brilhava para ele. Pouca coisa brilhava para esse funcionário da burocracia.
..........A garota que Brilhava atendeu. A garota cega, de 15 anos, da qual a pele branca também brilhava, esperava o homem.
.........."Apenas a morte pode ser melhor do que essa menininha triste" ele pensava.
..........Ela sabia o que fazer com a faca, a vela e os cigarros, com a dor que purifica. Seus olhos estavam cheios de amor. Deles também saíam facas.
..........No quarto negro e vermelho havia uma TV ligada sem som. Havia também um anjo que tocava violino e assistia. E o homem tinha quase certeza de que o que faziam não era um pecado.
..........Os três, no quarto, sabiam, em total cumplicidade, que a dor é a melhor sensação e a última tentação.
..........O gosto de seu próprio sangue em sua boca fazia o homem se sentir um pouco puro e podre.
..........Os olhos vazios da garota estavam cheios de entusiasmo.
..........Havia uma estranha harmonia entre o ritmo das dores do homem, do violino que o anjinho tocava, dos sentimentos da garota cega, do vento que entrava pela janela e da cortina que balançava.
..........O prazer do homem morava também no cheiro das rosas um pouco mortas, que a garota esqueceu de trocar.
..........Na hora do pagamento, o homem continuava feliz e os olhos da garota estavam cheios de piedade.
..........Ele saiu pela porta que já não brilhava tanto e, na rua, viu a grávida na lojinha. E voltou para o seu apartamento. Em Paz.