JOSÉ DE ALENCAR

(mas em 1955)

 

 

Trecho do romance Lúcia, de Gustavo Bernardo
(Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999)

 

 

Assim nascia, como nascem tantos, um professor. De uma derrota capital.

Nos bancos da faculdade, admirei-me logo por dois mestres (precisava tirar Sousa Mendes da cabeça — mais do que isso, precisava tirar o doutor Silva Rocha, e sua frase, da cabeça). Um deles, ou melhor, uma delas, era a professora Dirce Côrtes, que emudecia, com o seu brilhantismo, os discípulos e os funcionários da faculdade, ensinando, à noite e até muito depois do horário, literatura brasileira.

O outro mestre era justamente o professor José de Alencar, eminente gramático e grande polemista, defensor intransigente da língua pátria, que escrevia cartas diárias para os jornais, principalmente para O Diário de Notícias, protestando, com veemência mas elegância, contra os atentados à última flor do Lácio — muito mais graves, segundo o meu amigo, do que aquele sofrido pelo doutor Carlos Lacerda, no ano anterior.

Alencar exagerava um pouco. Mas descobria crimes contra a língua cometidos diuturnamente pelos políticos (com a honrosa exceção do próprio Lacerda), pelos jornalistas, por seus alunos (que humilhava, publicando coleções de seus erros nas páginas das seções de cartas, acompanhados de diatribes contra a juventude em geral), e por comerciantes e publicitários, nos seus cartazes, anúncios e tabuletas.

Alencar se formara primeiro em Direito, antes de se destacar como gramático e filólogo. Era membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e chegara a advogar no início da década. Dizia-se, ainda, consultor permanente do Ministério da Justiça. Talvez por isso transformasse todo erro de português em crime de lesa-pátria.

Por razões que não compreendia bem, eu vinha sendo, naqueles últimos anos, o único orientando do mestre Alencar. Na verdade, vinha sendo praticamente o único aluno nos seus cursos.

Haviam me confidenciado, à boca pequena, que o meu mentor era periodicamente internado no Hospital Pinel, na Urca, com "surtos psicótico-esquizóides", como rezavam seus boletins médicos: imaginava-se, não em 1955, mas sim, por exemplo, em 1855, cem anos para trás. Saber deste detalhe desagradável, no entanto, nunca me havia feito relevar a importância do seu conhecimento, quer para a glória da língua pátria, quer para a minha própria carreira profissional — e não admitia que os meus colegas não possuíssem a mesma lucidez.

Pois foi com Alencar mesmo que eu a encontrei pela primeira vez, enquanto repicavam os sinos da igreja, daquela maneira pungente. Tínhamos vindo passear no seu imponente automóvel, um Plymouth preto, pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro. Àquela altura, eram poucos os professores que possuíam os seus próprios automóveis, quanto mais um Plymouth preto. Verdade que o carro não fora comprado com o salário da faculdade. Tinha sido presente do pai, o doutor Martiniano, governador do Ceará — mas fazia o mesmo efeito.

Pesquisando erros de português nas tabuletas indicativas do caminho, terminara por estacionar na ladeira da rua Taylor, relativamente distante da Glória, justamente para me mostrar, enquanto caminhávamos, outras placas de rua, e ainda cartazes de barbeiros e manicures, menus de botequins e de restaurantes, letreiros de bonde e lotação, praticamente todos com algum atentado ao vernáculo.

O carro parou numa esquina que chamou a minha atenção. Era uma esquina na ladeira em curva, quase uma espiral, na qual se plantava um prédio novo, mas estreitíssimo, também em curva, de uns cinco andares. Despertou-me a curiosidade pelos apartamentos daquele prédio e, mais ainda, pelos moradores dos apartamentos daquele prédio.

Como seriam. Seriam magros? Seriam gordos? Já tinha elevador? Cabia mais de uma pessoa no elevador? Como seria o banheiro, como seriam as banheiras naqueles banheiros.

Meu amigo, que falara da faculdade até a rua Taylor (rua que ainda não pertence exatamente ao bairro da Glória, ladeira fincada entre os bairros da Lapa, da Glória e de Santa Teresa), ao sair do automóvel levantou os olhos para a fachada do prédio estreito – e emudeceu por curtos segundos. Suspeitei vislumbrar leve franzir da testa, e quase imperceptível mordida nos lábios. Passado o prédio, Alencar voltou à fluência anterior, preocupado em chamar a atenção não só sobre frases e erros, mas também sobre os detalhes da cidade em que ambos nascemos.

À medida que chegávamos ao plano horizontal, à rua da Lapa e, logo em seguida, à rua da Glória, ele se sentia à vontade para contar sobre as grandes festas populares da corte de Dom Pedro II, especialmente a mais popular delas, a festa da Glória. Fazendo muitos gestos com os braços, apontava ali, aqui, acolá, quase desenhando no ar a grande romaria que desfilava pela rua da Lapa e ao longo do cais.

Que cais, eu perguntava, sem entender. O Cais do Porto, que eu soubesse, então, localizava-se na Praça Mauá, razoavelmente longe dali. Alencar deu um sorriso algo impaciente e mostrou, com gesto largo, as estruturas preservadas de um antigo cais, as escadas que desciam para o mar há algum tempo aterrado. Ah, sim, respondi, sem muita convicção. Continuava estranhando, olhando um mar sem barcos e sem golfinhos — olhando um mar de sinais de trânsito e veículos buzinando, pedestres afobados se atropelando entre si e um ou outro sendo atropelado por um lotação (embora os lotações mantivessem preferência especial por pedestres atravessando a Praça da Bandeira, no princípio da zona Norte).

Mas Alencar não parava de falar, deixando o interlocutor a ver navios — isto é, a não ver navios, já que eu não conseguia ver o cais que o outro me apontara. Falava ele da grande romaria que desfilava pela rua da Lapa e ao longo do tal cais, serpejando nas faldas do outeiro e apinhando-se, multidão regorgitante, em torno da poética ermida. Regorgitava-me eu, por minha vez, com o vocabulário empolado e empoeirado do Alencar, a quem considerava sem dúvida um grande orador, enquanto contemplava a multidão de atropelados e atropelantes, entre obras incompletas da prefeitura e estátuas não muito bem cuidadas.

Ele me mostrava que, na época do antigo cais e das grandes festas do Império (e eu já ia ficando com medo de que o meu amigo fosse despencar de novo no tempo, cem anos para trás), quem demandava o outeiro da Glória tinha de atravessar uma faixa de areia pequena e estreita, chamada Praia das Areias de Espanha, encaixada entre a lagoa do Boqueirão e o outeiro das Mangueiras. O outeiro nada mais era do que um prolongamento do morro do Desterro, que terminava na praia, onde começava o caminho do Catete, ou da Glória, que hoje conhecemos como rua da Lapa.

A alteração do perfil da cidade, do antigo saco de São Diogo até o morro da Glória (e assim, no meio da rua, ele começava uma aula da história da cidade, atraindo olhares enviezados dos transeuntes), fora lenta, resultante de aterros sucessivos, iniciados no século dezessete, com a ampliação da Várzea do Carmo — atual praça Quinze de Novembro. A lagoa do Boqueirão levava suas águas além da atual Rua do Passeio. Aterrada, deu lugar ao Passeio Público.

Em continuação, vinha a Praia da Glória, ao longo da atual rua da Glória. Contornando o morro da Glória, antigo Uruçumirim, existia a Praia do Russel que, aterrada, dera lugar à rua que ainda conhecemos pelo nome de Praia do Russel — uma praia deveras pavimentada. Como testemunho da antiga linha da orla marítima (ah, bom), permanecera a muralha da rua da Glória, que passara a terminar no pedestal do Relógio da Glória, Hotel Glória à frente, nada restando do cais, debruçado sobre o mar, nem do antigo Passeio Público e das primeiras muralhas do Flamengo.

Ao final do seu roteiro turístico pela ampulheta do Brasil, eu suspirava, aliviado. Os tempos verbais do professor José de Alencar haviam permanecido no passado. Podíamos então achar tudo muito poético, e com semelhante espírito elevado chegávamos à Igreja da Glória.

Tocava a ave-maria, no rádio do botequim mais próximo, naquele momento exato: quando pisamos no adro da Igreja. Escurecia rapidamente. Gozava-se a fresca brisa que chegava do mar não muito distante, misturando o cheiro agradável da maresia com as impressões olfativas, menos agradáveis, certamente, da hora do rush urbano. Podíamos contemplar, do alto, o panorama daquele mar colorido de automóveis e pedestres se movendo lentamente.

Andando devagar, como quem não tivesse hora para chegar à casa ou à faculdade — não daríamos aula naquela noite —, podíamos admirar, ou criticar, as poucas devotas que chegavam fora da hora da missa, para acender suas velas nos muros da Igreja, rezando fervorosas preces a Nossa Senhora, São Judas Tadeu, São Jorge, Iemanjá ou Ogum, enfim, quem lhes pudesse ajudar a recuperar um amor, uma pensão alimentícia, um filho perdido para o álcool, ou, pior, para uma vagabunda qualquer.

Era comovente, sem dúvida, observar a luz bruxuleante das velas acesas, disputando espaço com os postes de luz amarela e os fósforos dos transeuntes, que passavam acendendo seus cigarros e jogando maços vazios na calçada ou na sarjeta, para o gari da manhã seguinte recomeçar seu trabalho de Sísifo, varrendo a cidade enquanto a sujavam às suas costas.

Alencar logo se viu disputado por alguns pedintes. Como ele abria a bolsinha de moedas para soltar alguns trocados na mão encardida do primeiro coitado, das gretas do chão apareceram vários outros, invocando os santos nomes de Jesus Cristo e de Nossa Senhora em vão.

Recentemente, nosso mestre havia escrito um artigo, publicado no Correio da Manhã (do lado da coluna do Drummond), criticando, com a veemência costumeira, os motoristas insensíveis que, nos cruzamentos, levantavam depressa o vidro das janelas dos seus automóveis, para não comprarem uma-balinha-pra-me-ajudar. Ele mesmo deixava abaixado, permanentemente, o vidro da janela esquerda de seu leal Plymouth, por princípios éticos e mecânicos (a manivela estava quebrada e o dono não tinha tempo de consertar).

Por causa, provavelmente, do artigo no jornal, o grande professor e melhor articulista (segundo a minha imparcial concepção) não conseguia se desvencilhar dos coitados dos mendigos. Sorria amarelo, desculpando-se por não ter mais dinheiro, enquanto agarrava-se à carteira adquirida, no ano anterior, numa loja de souvenirs, em Copacabana.

Como não havia sido eu o autor do artigo, sentia-me no direito a gozar de tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre uma pequena muralha, que fazia as vezes de observatório conveniente. Para um homem de meia-meia-idade (meus vinte e sete anos até então, um tanto ou quanto amarrotados), que melhor festa do que ver passar pelos olhos, à doce luz da tarde moribunda, uma parte da população, com os seus vários matizes de miséria e pressa, da gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (aliás, bem próximo à estátua do dito cujo, furado por três flechas consagradas).

Era o que eu fazia. Era o que eu via.

Via, aos volantes dos automóveis, pendurados do lado de fora dos lotações, acotovelando-se sob os sinais de trânsito, dirigindo bicicletas ou deslocando-se apenas com os seus próprios pés, todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; encontrava todas as posições sociais, desde as figuras ilustradas da política, da fortuna ou do talento (que na verdade não apareciam na rua, muito menos naquela hora, mas podíamos enxergá-las nas primeiras páginas dos vespertinos pendurados na distante banca de jornal) até o proletário humilde e desconhecido (que, este sim, se encontrava nas calçadas, mas em tal quantidade que se multiplicavam geometricamente, por mil e muito, tanto o desconhecimento quanto a humildade); esbarrava com todas as profissões, desde o banqueiro falido até o mendigo bem sucedido, sublocando os melhores pontos de venda de caridade e boa-vontade; e, finalmente, se me apresentavam todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja.

Todos desfilavam à minha frente, sem o ver vendo-os, roçando a seda e a casimira com o algodão barato, misturando o perfume delicado do sabonete Lifebuoy às mais impuras exalações. Mesmo não me encontrando nos áureos tempos de Dom Pedro II, quando os senadores do Império passeavam pelos mesmos locais em que estávamos, me sentia aprendendo mais, naquela meia hora de observação silenciosa, do que nos cinco anos que esperdiçara na Faculdade de Filosofia (se não levar em conta, naturalmente, as iluminadas palestras do professor Alencar).

A lua vinha assomando pelo cimo dos edifícios fronteiriços, seu amarelo fulgurante ligeiramente borrado pela fumaça dos coletivos e dos caminhões. Mas, de repente — não mais do que de repente — eu descobria, a poucos passos do meu observatório improvisado, uma linda moça.

Ela parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas, esgarçadas sobre o céu azul que escurecia — o que me permitia admirar, no primeiro olhar, seu talhe esbelto, de suprema elegância. O vestido que o moldava era vermelho vivo com orlas de veludo negro, colado ao corpo como o decote que, pronunciado, apertava e elevava os seios.

Uma linda moça…

 

 

 

A Alma do Urso

 

Trecho do romance A alma do urso, de Gustavo Bernardo
(Belo Horizonte: Formato, 1999)

 

Naqueles dias em que eu me encontrava perdido em Palos (como podia "me encontrar" se eu estava perdido?... mas você faz cada pergunta!), acabo mas é perdendo agora o rumo do que dizia. Ah, sim: naqueles dias em que eu me encontrava perdido em Palos, você provavelmente se achava nascendo, filhote de mãe silenciosa e forte. Em volta, o seu mundo era branco, tão branco, enquanto o meu mundo insistia escuro, apenas pontilhado pelas muitas pequenas luzes na caverna do céu.

Se esta Terra é de fato redonda, como queria o italiano (onde ele estará agora?; terá voltado para a Espanha, ou para a sua Itália? — coisas que não se podem mais saber), você nascia bem próximo do Pólo Norte, filho quem sabe da própria Ursa Menor, assistido por Perseu, Andrômeda e Cassiopéia. Seus olhos brilhavam assim, estrelas negras e profundas, tantos anos atrás? Não se pode saber, de verdade. Daria metade dos dias que ainda me restam para ver o que se guarda na sua memória — quando nem tenho mais tanta certeza do que guarda a minha própria.

Mas de alguma coisa sempre me lembro.

Lembro-me, por exemplo, do dia em que o italiano chegou a Palos, recrutando a tripulação para a sua viagem, às custas da rainha da Espanha. O que ele pretendia soava um pouco absurdo, mas as pessoas daquele porto — e daquele tempo — não se preocupavam demais com absurdos.

O italiano pretendia buscar uma rota para a Ásia através do Atlântico, isto é, pretendia chegar ao Oriente navegando reto na direção do Ocidente. Toda a gente podia se perguntar como chegar num lugar andando exatamente de costas para ele — mas a maioria das gentes se perguntava é nada. Eu não perguntava nada (ao menos em voz alta). Tratava-se de um trabalho, que prometia ação, companhia, ouro, mulheres (se achássemos as índias) e a cota que eu precisava de solidão, nas noites de vigia sob o céu.

Embarcamos cerca de cem homens, divididos em três barcos. Puseram-me naquele que trazia o nome de Pinta, comandado por um tal de Pinzón. A nau capitânia era comandada pelo próprio italiano, enquanto o terceiro barco recebera o comando de outro Pinzón, acho que irmão mais novo do primeiro.

Deixamos o porto de Palos "no dia três de agosto do ano da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e dois", ou pelo menos assim mesmo deveria estar escrito no diário de bordo do italiano. O que eu teria para contar da viagem? Em geral, tempo bom, bom vento, nenhum monstro, pelo menos que eu tenha visto, e as muitas, tantas estrelas.

As estrelas. Elas formavam desenhos de propósito, para brincar ou para falar com os cá de baixo? Ou os desenhos eram coisa de homens e de vigias insones, feitos por cima dos pontos para lembrar histórias passadas? Não se sabe. As estrelas viviam de fato todas assim juntas, à noite, parecendo tão próximas — ou elas se encontrariam imensamente longe, nos deixando perceber uma luz fugaz, distante? Não se sabe. Talvez as estrelas, aqueles pontos de luz, fossem apenas pontos de luz, e nada mais — porque nem existissem mais, perdidas da luz que teriam lançado no espaço. Talvez. Não se sabe.

Não se sabe coisa demais.

Mas, sabendo ou não sabendo — que importa —, Pégaso continuava galopando, as asas balançando, elegantes, até sair de cena, até sair do céu; Capricórnio e Sagitário invertiam a situação perseguindo Hércules, até que Hércules escapava, e também saía de cena e do céu, coitado; Capricórnio e Sagitário se perdiam um do outro, saíam e voltavam do céu, uma, duas, algumas vezes, até desaparecer, onde quer que estivessem (coitados); o Escorpião ficava sempre na beirinha do céu, se molhando no mar, lá na linha ondulada do horizonte, deixando ver ora a sua cauda, com o temido ferrão, ora a cabeça, com os olhos escuros, escuros.

Como os demais, também chegava o tempo de Escorpião sair do céu, dando lugar a tantas outras estrelas que desenhavam no escuro mais escuro nunca conhecido formas velhas conhecidas, até poder me sentir conhecendo as novas tão velhas estrelas: o Cão Menor, a perigosa Hydra, o Leão rugindo, rugindo seu silêncio a tremer as engrenagens do cabrestante, a ameaçar perder a âncora, a enfunar as velas na calmaria das noites.

Até que chegou no céu sobre os meus olhos aquele conjunto de estrelas que mais me deu medo porque mais se parecia com um sonho, até que apareceu no céu Órion, o gigante caçador, seus braços, sua armadura, aquela cota de malha, aquele capacete invisível. Continuava fugindo da cauda e do ferrão de Escorpião, que Ártemis, a deusa virgem, enviara para matá-lo (uma história que me contaram quando eu era ainda muito pequeno — mas me marcou que não esqueço, como esqueço episódios reais e recentes).

O medo de Órion (o meu medo) se sentia no tremor das estrelas que o compunham: Escorpião decerto se escondia detrás do céu escuro, como debaixo de um lençol, para emboscá-lo quando ele menos esperasse.

Quando eu menos esperasse.

Foi mesmo Órion quem me apontou a terra, de madrugada, quando o Sol corria por trás para afugentá-lo e às outras estrelas do terreno negro-azul que me cobria, insone.

Terra à vista. 

 

  

 

OBEDIÊNCIA

 

Capítulo do romance Me nina
(Rio de Janeiro: Taurus-Timbre, 1989)

 

Quando o fogo se dá por satisfeito, amanhece.

Todos se entreolham como estranhos despidos no mesmo quarto. Apenas cães e plantas morreram no incêndio. A casa ainda de pé, paredes e janelas, embora as portas queimadas e não haja mais teto. Pois foi a fogueira, com teu rancor; as chamas espalharam-se pela terra, parecendo fome.

Os móveis e os tapetes se salvaram. Possível sentar nas cadeiras de vime e olhar para cima, para o céu pálido, recortado por algumas vigas-mestras carbonizadas atravessando parede a parede. As nuvens, no céu, esculpem figuras brancas. Corta o ar, com vagar, uma caravela portuguesa. Amanhece em véspera de santo antônio, sem vestígios de cristais. Todos entendem que o fogo obedecera a alguém.

As tias, logo que se sentem um pouco menos ofuscadas, põem-se a varrer as cinzas para baixo do tapete do hall. Ninguém quer sair à rua imediatamente, embora o portão, na claridade viram, não estivesse trancado.

(já tem muito tempo, tudo isso; mas a memória ainda não estourou; continua crescendo, doendo — se a memória uma bolha de pus presente, em processo de crescimento).

 

(imagem ©stock tek)

 

Gustavo Bernardo nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1º de novembro de 1955. Seu nome completo é Gustavo Bernardo Galvão Krause. Doutor em Literatura Comparada, é professor de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com auxílio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), estuda as relações entre a literatura e o ceticismo. Na sombra das atividades acadêmicas, escreve romances. Mais em Dubito Ergo Sum.

Algumas publicações: Pálpebra, poesia (Rio de Janeiro: Lidador, 1975); Pedro Pedra, romance (Belo Horizonte: Lê, 1982 - 14ª edição em 2002); Redação inquieta, ensaio (São Paulo: Globo, 1985; Belo Horizonte: Formato, 2000 - 5ª edição); Me nina, romance (Rio de Janeiro: Taurus, 1989); Quem pode julgar a primeira pedra?, ensaio (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993); Cola, sombra da escola, ensaio (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997 - 2ª edição em 1998); Lúcia, romance (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999 - 2ª edição em 2002); A alma do urso, romance (Belo Horizonte: Formato, 1999 - 2ª edição em 2001); Educação pelo argumento, ensaio (Rio de Janeiro: Rocco, 2000); Desenho mudo, romance (São Paulo: Atual, 2002). A dúvida de Flusser, ensaio (São Paulo:Globo, 2002); A ficção cética, ensaio (São Paulo: Annablume, 2004).