A pequena bola de borracha vermelha tine contra a
parede produzindo som mais agudo do que o de uma flauta. O gemido fino
bate e rebate no eco, feito uma chicotada. Outro chute, outro tiro
contra a parede e outro gemido forte, explosivo, a tinir nos ouvidos até
desaparecer no ar. O mulato forte pega sempre de primeira. Tem talento,
tem futebol, como dizem os locutores esportivos. Vai pousar na casa por
dois dias e depois ver como é que fica. Se os homens aparecerem de novo,
sai de fininho. Não basta só fugir dele próprio, de si mesmo, de suas
lembranças. Tem que ficar atento.
É tirado do devaneio pelo
olhar do garoto, que o mira atentamente. Estivera ali o tempo todo
prestando atenção em cada detalhe do chute, no erguer da perna pelo
joelho, na flexão, no esticar aplainado do peito do pé — feito uma
raquete —, na potência, no jeito, na técnica enfim.
Sente-se
confortado vendo o irmão pequeno — e maior fã — a admirá-lo. Convida-o
para pegar no gol fictício, marcado entre o lado da escada e o pinheiro
do quintal. O menino aceita prontamente o convite e se posiciona
excitadamente. Começa chutando com pouquíssima força. O mano é um menino
arrojado, cai bem, é leve. Tomara que consiga passar-lhe tudo o que tem
para ensinar. Se os tempos fossem outros, se não houvesse acontecido
aquilo, teria toda a condição de curtir o garoto, ensinar, e também de
cuidar da casa. Porém, em razão daquilo, tudo mudou.
Sente um olhar
na nuca. Ao mesmo tempo em que se arrepia feito bicho em alerta,
continua pensando na situação em que deixou os dois, a mãe e o mano:
sós, desprotegidos. Tem medo. A sensação infeliz pregou-lhe na nuca.
Volta-se devagar. O menino continua esperando que chute a bola. Ao
virar-se totalmente, divisa o policial procurando disfarçar-se por trás
da porta do armazém, do outro lado da rua.
Já souberam da
sua volta e já o estão vigiando. Nervos retesados, joga a bola para o
alto, espera cair e bate enquanto ainda está no ar. O chute sai forte
demais para o pequeno goleiro. A bola quase lhe atinge o rosto.
Embaraçado e nervoso, corre a ver se está bem, se não se machucou.
Atrapalha-se entre continuar vigiando o caçador ou dar atenção ao menino
assustado. Pede desculpas, o menino de olhos esbugalhados admira-se:
"Nem deu pra ver!". Só mesmo assim para sorrir. Encaixa a mão na nuca do
pequeno e sai conduzindo-o em direção à escada que dá na varanda. A mãe
já está no topo. Ela também tinha visto o caçador. E treme de medo.
Medo. Sempre conduzindo o pequeno mano, sobe a velha escada de cimento
envernizado de vermelhão. Pára ao lado da velha mãe,
abraça-a.
Está marcado. A prisão é um
navio em alto mar, de onde só se sai para ser náufrago. Ficam ali
abraçados. Súbito descobre que todos haviam se tornado náufragos. O
caçador finge que examina uma mercadoria exposta perto da calçada. Para
eles não há mais porto nem vida. Tudo o que lhes resta é o pequeno barco
que ninguém pode salvar e que lentamente afunda. O garoto surge de
dentro da casa comendo pão com manteiga. Fita-o de novo com
deslumbramento. Em seus ouvidos ainda tine o chute forte que quase o
machuca. Faz uma pausa, lambe a manteiga que lhe sobrou num dos dedos.
Enche o peito e lança o elogio comovente: "Foi um
raio!".
©imagens davies &
starr