o sentido

 

há os rastros do silêncio
nas palavras, eu sinto
o predador informe
que nos respira:
uma selvageria me percorre

eu adivinho o êxtase
da refrega, o verso
que me acomete de vertigens
o olhar imponderável
da mais antiga fera

 

 

 

 

 

 

menino de engenho

 

a josé de sales,

em memória

 

prefiro a didática
da lâmina exaltada
a clareza
no discurso das facas

ouço sempre muito atento
as sentenças de marimbondos
e a conversa afiada
dos canaviais

 

 

 

 

 

 

passional

 

Acordei mascando a pólvora
com a língua engatilhada e
o peito carregado de balas.

Meu sorriso, uma cicatriz,
anunciava a tragédia.

Os olhos flamejantes
consumiam a paisagem.

E eu pedia à minha boca:
mira bem o coração,
mata esse impostor.

 

 

 

 

 

 

so blue

 

Esse é aquele tipo de azul
que se emprenha de abismos.
Anda por aí mal sossegado,
com fome de vertigens.

Vive de devorar nuvens
e ruminar pesadelos.
Seu arroto espanta brisas,
semeia tempestades.

É um bicho de trincheiras:
viceja no gume das baionetas
e arrasta o peso do chumbo.

Talvez ele até seja
o próprio anjo caído,
pois anda esquivo no obscuro
de certas passagens para o inferno.

 

 

 

 

 

 

ritual

 

café novo no bule
uma pilha de pratos no secador

a agenda
finalmente passada a limpo

e a vida

possível outra vez

 

 

 

 

 

 

camaleão

 

a flor da minha pele

cansou-se das horas

as meninas dos meus olhos

exilaram-se no horizonte

desde a planta dos pés

me desarvoro

 

trago-me outro

e exalo manhãs

 

  

 
 
 

umbrela

 

sobre o céu
atrevida
guardar chuvas
parar sóis

à terra
entre tanto
confessa

não faço mais
do que uma sombrinha

 

 

 

 

oito coisas para fazer com preguiça

 

escorregar o ânimo num cago de chuva
sentir desejos de planta por travesseiros
celebrar a paz das vassouras com as teias
vegetar as idéias no pó assentado
esquecer do amarelo gritando lá fora
embalar um mofo com pão dormido
deixar para o limo o amansar as facas
ignorar (só esta manhã) o desmantelo do tempo

 

 

 

 

 

 

festa chique

 

acaso viste a verdade?
a verdade está lá fora
foi fumar um cigarro
aqui dentro o receio
tornou tudo tão arrumado
que a deixou cheia de dedos

 

 

 

(imagens ©magdullah)

 

 

 

 

 

 

Héber Sales. Nasceu em Balém de Maria, Pernambuco, em 1968. Reside desde o ano 2000 na cidade de Salvador, Bahia. Além de escrever regularmente no blogue Coisas Para Fazer com as Palavras, tem textos publicados nas revistas Digestivo Cultural, Diversos Afins e WebInsider.
 
Mais Héber Sales em Germina