..........Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais.



..........MULHER É TUDO IGUAL



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Eu e a Marieta Severo não temos tempo pra solidão. Ela foi casada com Chico Buarque, eu com João Teodoro. Ambos nos deram muito trabalho. Teodoro era alcoólatra e me batia na cara. Passei com ele os piores momentos da minha vida. Como se não bastasse era meio veado, o cara. Vivia se enroscando com garotinhos por aí, depois os trazia pra casa e me apresentava como coleguinhas de trabalho. Ora, vê se eu sou boba. Punha os moleques pra dormir na minha cama, "ele não tem pra onde ir, coitado", e dormia comigo no sofá da sala. No meio da noite, João sumia.
..........Quando bebia além da conta e se punha a fazer escândalo, eu lhe dizia: qualquer hora pego minha bolsa e vou embora sem nem me despedir. Ele não acreditava. "Mulher é tudo igual", dizia.
..........Um dia eu estava na cozinha preparando o almoço quando João entrou e me viu despejar meio litro de azeite, dos bons, no copo do liquidificador. "Pra que tanto azeite?", berrou. A receita é essa, molho pesto é assim mesmo, vai azeite pra burro. Não sei por que, meus olhos se encheram de lágrimas. Liguei o liquidificador na potência máxima e aquele barulho infernal, e aquele manjericão todo moendo lá dentro, e aquelas nozes sendo trituradas, e aquele verde virando pasta cheirosa, foi me dando uma coisa de novidade, de começar de novo, uma coragem, que eu fui ao quarto e peguei minha bolsa. O liquidificador ficou ligado. Depois disso arranjei tanta coisa pra fazer, pra me divertir, que nem tive tempo pra solidão. João Teodoro estava certo, mulher é tudo igual. Um dia vira tudo Marieta.



..........O CARRO DE TONINHA


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Toninha quis comprar um carro, foi lá e comprou. O que guardou do salário de faxineira deu certinho pra comprar um fusquinha 68. Vermelho? Bordô? Roxo? Um pouco de cada. Eram muitas as cores, as marcas de batida, capotamento, ferrugem. Medalhas conquistadas ao longo de muitos anos. Um carro com a história visível, inscrita na lataria.
..........Feliz da vida, Toninha voltou pra casa de carro novo. Ela, no banco do passageiro, o marido dirigindo. Toninha nunca teve cabeça pra tirar carta. Além do mais, era analfabeta. Mas obrigava o marido a levá-la para onde quisesse. Supermercado, Santos, feira, casa da sogra, tudo de carro. Toninha indicava o caminho e o marido guiava, de saco cheio. Mas ela era A Dona do carro, podia mandar em ambos.
..........Um dia o marido sumiu de casa com o carro de Toninha. Três dias, quatro e nada de notícia. No emprego, disseram que ele estava de férias. "Eu mato esse desgraçado, andando por aí com o meu carro e, provavelmente, com uma vagabunda dentro".
..........Toninha foi à delegacia e deu parte. Não do sumiço do marido, mas do roubo do carro. "Um carro como esse é fácil de achar", disse o delegado. E foi mesmo. No dia seguinte, o marido foi encontrado na Praia Grande. Voltou puto da vida.
..........— Porra, você nem dirige, pra que quer esta bosta de carro?
..........— Não dirijo, mas quero o carro parado aí na porta, pra enfeitar. Vou encher ele de samambaia.
..........O marido foi embora a pé. Maria Luísa o esperava no ponto do ônibus. O carro foi devorado pelas samambaias. Acabou apodrecendo dentro delas, feito um xaxim.

(Contos do livro Falo de Mulher)








Ivana Arruda Leite nasceu em Araçatuba, em 1951. Tem dois livros de contos publicados: Histórias da Mulher do Fim do Século (Editora Hacker, 1997) e Falo de Mulher (Ateliê Editorial, 2002). Participou das antologias Geração 90: Os Transgressores (Editora Boitempo, 2002) e Ficções Fraternas (Editora Record, 2003). Tem contos publicados nas revistas: PS:SP, Ácaro, Coyote e Etc. Publicou um livro juvenil: Confidencial — Anotações Secretas de Uma Adolescente (Editora 34, 2002). Escreve o Doidivana.