Brasil. Um agosto
qualquer.
Chove. Ela não se
interessa pelo que tenho a dizer. Traduz as músicas do Pink Floyd,
enquanto o vídeo exibe o Mágico de Oz. Aponta-me as sincronicidades
entre o disco e o filme. Acho raro. Mostra-me Dostoievski, diz que a
vida não vale a pena. Não consigo perceber muito do que fala. Seu corpo
é branco, me agrada de tão limpo, me incomoda de tão puro, superior,
caucasiano. Justo eu, um nativo colonizado, um paravan*.
Ainda assim, me rendo.
Há uma cumplicidade, quero acreditar. Reencontro, então, outra pessoa
entre os lençóis. Quando fala algo, me diz que tenho a cara da criança
safada que devo ter sido, mas quase não fala. Aquela ebulição de
palavras dá lugar a sorrisos (alguns me intrigam, de tão sinceros,
parecem forjados), a influência yankee desaparece num silêncio,
num Ganges matinal. Quando pergunto algo, ouço um nada como resposta.
Agora vejo um rosto rosado, uns olhos verdes. Gosto muito. Os beijos são
mudos, tão castos se tornam. Tudo permanece sublimado. Descubro uma
maneira pouco carnal de se fazer.
Esqueço que tenho fome.
Explico-lhe que minha fuga era ser budista, acostumado a jejuns, mas
sinto a inutilidade das palavras. Sugere um fast food. A comida
se pretende chinesa. Como de palitos, mas entre nós surge um descompasso
agora, irreversível. A caixa do yakissoba é de papelão, frágil como a
figura do oriental com a qual me mascaro. Não tento entender. Mastigo as
palavras, engulo-as antes que possam sair, numa espécie de vômito
invertido.
Pateticamente, sinto
pena de mim, cheio de planos a dois para o verão. O almoço teve algo de
Última Ceia. Saio, com a certeza de que não vai me telefonar. No ônibus,
desconcentro. Desço antes, caminho até o metrô. Compro um livro. Nele,
encontro o protagonista às voltas com uma húngara de pele imaculada,
corpo de leite, mais do que alva. Leio por duas horas, o sono me
vence.
Quando acordo, sou
novamente o monge humilhado, enganado, arrependido. Mesmo assim,
abandono só por esta noite o hábito de desligar o celular, na
esperança.
Durmo, agarrado ao
travesseiro. Branco.
*Paravan
- Em Malayalam, um idioma do sul da Índia, significa
"intocável, de casta inferior". Os paravans têm, geralmente, a
pele escura.