Terra

© masao ota
........Verdes campos de capim gordura, imensidões até onde a vista alcança. Borboletas, passarinhos. Silêncio (mas escondido atrás do abacateiro, de vez em quando o lobisomem uiva). Três ou quatro curiós e uma coruja tardia. Madrugada alta, primeiras raias de sol no horizonte Uma paz, uma alegria. Sapo cururu na beira do rio. Infância. Sem-vergonhas espalhadas e margaridas silvestres. Urutau, o chora-lua. A brisa que ondula a relva movimenta o mar, sereia. Preguiça, sinhô, uruaê batô! Terra sem mal. Que vontade de cantar. Terra molhada de chuva. Terra preta entranhada de água, oferecida espalha sua força, úbere do mundo: cocanha. Minhoca comeu a terra; pássaro preto, a minhoca; urubu não comeu nada — magro, espreita ao longe a antevisão do futuro.
........Nessa hora (o dia não nasceu, a noite não morreu), menino pequeno e seu pai passeiam sozinhos pelo campo. Mãe em casa, esquentando o leite. Menino segura a mão grande do pai. Tão pequeno, e sabe já que os rudes calos dele são sua âncora - flechas do tempo ensinando caminhos, estrelas—guia nos labirintos do mundo, rochedos. Facão do pai corta o denso mato molhado, desbastando o horizonte do menino. O sol desponta, estreitinho. Menino se pergunta: será que a chuva molha o sol? Sol toma banho de chuva?
........Menino adora goiaba branca. O pai cata a goiaba úmida do pé, dá para menino. Sossega, menino — tem mais bicho não, o pai mordeu a fruta antes e cuspiu o bicho fora. Menino saboreia a goiaba branca, olhos fechados, os tenros carocinhos da polpa enrolados debaixo da língua, boca doce derretendo de amor. De repente, como tantas vezes em sua vidinha acontece, menino escorrega. Despenca do barranco encharcado — o mundo de ponta-cabeça, socorro! A mão segura puxa-o rápido para a borda; gesto único, firme e certeiro. Menino mais branco que a goiaba! Pai ri do medo do menino, menino ri do riso do pai, cachoeiras cristalinas refulgem da montanha até eles. Pai gosta de rir do mundo, satisfação do menino!
........Sob os pés a terra mole cede, cobrindo os joelhos do menino e os tornozelos do pai. Gostoso enterrar os pés lá dentro. Primeiro um, depois o outro. Mexer todos os dedos dos pés na terra fofa empapada de água, barro da vida. Delicioso mergulho dos pés, tornozelos, batatas das pernas, joelhos... até o fundo incerto da terra, onde coabitam o terror e os mais secretos desejos. Guiada pelo pai, a caminhada pelos matos do mundo vai parecendo menos perigosa a menino. Proteção. Conforto. Calorzinho nas bochechas, na ponta do nariz, nas orelhas. Menino não se agüenta. De tanta alegria pula no pescoço do pai, abraço apertado, compartilhado. Os dois num só, corações passarinhos.
........O cheiro da terra molhada ganha o capim, o ar, as folhas das árvores tortas, impregnando para sempre cada poro do menino pequeno, que dele jamais se esquecerá. A ele voltará sempre que a vida lhe for muito dura, faltarem-lhe força e consolo ou simplesmente sempre que, distraído na estrada, baixar de repente o vidro do carro em movimento, após alguma chuva.
janaína amado
Janaína Amado publicou o romance Dandara (São Paulo: Editora Maltese, 1995) e os infanto-juvenis Quem Tem Medo de Pesadelo? (São Paulo: Editora Atual, 1991), Terror na Festa (São Paulo: Editora Ática, 1996) e, em co-autoria, A Nave de Noé (Rio de Janeiro: Editora Record, 2000). Publicou ainda diversos livros como historiadora. Há cerca de dois anos, dedica-se apenas à literatura, sua paixão maior.