Nas madrugadas insones da terraplana que eu habitei, isolado no quarto que foi de meu avô paterno, folheava ou tinha sempre no campo de visão O vôo da madrugada, de Sérgio Sant'Anna — livro que comprei em uma das minhas primeiras vindas à Belo Horizonte —, para que pudesse recorrer à uma memória afetiva que me mantivesse de pé. Tentando ricochete dos disparos daquela pistoleira intitulada Saudade. Enquanto escrevo o começo deste texto, lembro que costumo dizer que fui salvo pela escrita como memória. E é justamente avançando a memória pelo conto "Invocação", que posso reafirmar que a Literatura ajudou a transformar solidão e angústia em amor e alegria. Exatamente como Sant'Anna pede à mãe, neste conto. E como desagregado de basalto que sou, desdenho o senso comum e estabeleço que este livro não é um elemento de ligação, mas sim de passagem. Um elemento de devir. De porvir. Algo que poderia ajudar a me colocar em meu próprio lugar.

Como Edvard Munch, que disse ter estado à beira da loucura — e que isso foi arriscado.

Mas então já é madrugada na Belo Horizonte em que habito — sempre me senti mais vivo de madrugada — e agora me vejo vencido pelo cansaço-alterosa de quem vivenciou a terraplana por três décadas. Deixo as luvas de pugilista calcário ao lado da cama e arrisco algumas horas de sono, como um bom mortal. Era nas madrugadas de recém-chegado que meu filho acordava, reclamando fome e atenção, e eu revezava solicitude com minha esposa — já disse que sou um bom mortal. Depois que o deixava saciado, para embalar o sono deste genético madrugador, cantava antigos blues, bem baixinho, de modo a não incomodar o sono da mãe, em uma espécie de pedido de proteção e ajuda àquilo em que acredito. Algo semelhante, quero assim pensar, ao que Sant'Anna faz em "Invocação", quando recorre à memória de entes queridos, como sua mãe e um tio que idolatra, mesmo sem ter conhecido, além da negra Bó e de Carlos Castilho, ex-goleiro do Fluminense, para que estes ajudem a constituir força, serenidade, apuro e — por que não? — coragem para escrever um conto. Efeito muito melhor, creio, do que recorrer a certos pactos.

Dedilhei estas associações, como quem se diverte com slide guitar, enquanto conversava com um amigo distante, que estava encalacrado no sertão baiano e onde habita minha consideração, quando ele apostou que eu cantava blues para meu filho dormir — para desespero da minha esposa. Olhei pela janela, vendo o céu acinzentado desta cidade e, conectado à outra madrugada-devir, pensei em Lou Reed — outro desterrado no tempo e no espaço. Falei para meu amigo o trecho que sei de cor de "A voz", onde LR é citado — "sim, a voz é também a de um cantor-compositor em você, nada operístico, quase falando, como Lou Reed, contemplando de uma ponte, nas águas de um canal de Bruges, junto aos reflexos de torres, igrejas, cruzes, imagens de santos e Deus ...". Minha voz sumiu nesse trecho. Em parte, afetada pelo clima que ainda me era estranho.

Agora não mais. Os dias ruins foram embora.

         O tempo quente e seco não mais queima as minhas narinas. Mas os morros ainda encarnam desafio de adaptação. Fechei meu corpo, petrificando-o com couro de lagarto, para resistir à neve preta que insistentemente cai na planície goitacá e que intentava cobrir-me dos pés à cabeça. Até o esquecimento. Como fez com os índios de cabeça raspada. E assim, lagart'atooed, encho os pulmões com ares cinzentos e reestabeleço meus elos com a Literatura, de modo que sou remetido a atos de salvação.

Afinal, foi a Literatura que me colocou exatamente neste ponto.

Pela proximidade intrínseca com eventos que me são caros,  O vôo da madrugada tornou-se uma espécie de livro sagrado — todos nós, sãos de consciência, acabamos fazendo uma escolha dessas, em certos momentos. Sim, tornei-me um crente! No meu credo, aprendi a confiar no elemento constituinte sanctum do meu faro, que se aguça diante das tais terríveis simetrias. A saber: a onipresença deste livro em momentos-chaves de mi vida/bala perdida. Simetrias por demais escancaradas para que eu pudesse continuar fingindo que não estava a percebê-las. Como o destaque gentleman que este livro ostentava na prateleira da livraria que visitei quando estive em Belo Horizonte — pela primeira vez, depois do encontro livresco-primaveril, já decidido à salvação nos braços de uma certa poeta belo-horizontina. Uma elegância perceptível por certa cumplicidade, evocando um senso sorumbático, irônico, um humor refinado e uma serenidade que somente obtêm aqueles que encaram o obscuro — seja lá de que forma vier.

         Comprei o livro na hora, sem pensar duas vezes. E rumei, madrugada adentro, em direção à uma série de viagens de dez horas, cujo ciclo finalmente foi encerrado. Mas nesse momento em especial — permitam-me congelá-lo, exatamente como Sérgio Sant'Anna faz em determinado momento em "A figurante", para registro de minha memória —, solitário junto aos demais passageiros, sem conseguir dormir e descobrindo verdadeiramente o que é Saudade, encarei a leitura de O vôo da madrugada e, desde o conto homônimo, que abre o livro, compreendi o valor da memória como tábua de salvação.

         E agora, enquanto meu filho — porção integrada de mineira com fluminense — dorme o sono dos justos, me pego fitando as luzes da cidade tentando driblar o céu acinzentado — que é assim, mesmo de noite, eu sei —, avaliando a mutação contida no termo stranger in a strange land. Associo a história desta leitura à uma espécie de rito de passagem. Por isso, é melhor não deixar dúvidas: grato, Sérgio Sant'Anna. Por ser um prestimoso companheiro, me ajudando a agüentar a solidão das rodoviárias, à medida em que se aproximava o momento em que eu iria me fixar em Belo Horizonte.

 

 

Jorge Rocha (Campos-RJ, 1973) Escritor, jornalista e professor universitário. Mora em Belo Horizonte desde 2004. Edita o blogue O Jornalismo Morreu!.