FRONTEIRAS

 

 

O relógio secular da parede tocou cinco vezes e José estava sozinho. Rádio tocando Glenn Miller e informes ocasionais. Conhaque com ovo e menta num copo alto de uísque, bebido aos poucos. Garrafas espalhadas no chão da sala. Papel de parede descascando-se em tiras bege e José sentado, tomando conhaque com ovo e menta num copo alto de uísque: lucidez comprometida. As paredes próximas — lembram o escritório, pensa ele. Cada vez mais próximas. Fino fio de aço apertando a garganta devagar: compactador de lixo. Era um lixo. Já estava sentado ali, bebendo feito um louco fazia algumas horas. Lembrando de Dico. José esmagado por um copo de uísque duplo fazendo tique-taque e borbulhando Glenn Miller. Quarenta e dois anos e — como as paredes que vão se aproximando — descascando por dentro, aos poucos. Quem diria. O que diria Dico? Que estava caminhando inexoravelmente para a anulação e a alienação totais, que estava fazendo o jogo deles? Uma lágrima gotejou, misturando-se ao conhaque e saiu mais um informe no rádio: no Líbano, guerrilhas fronteiriças vão avançando pela sala de jantar até alcançarem o living e acertarem José.

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou seis vezes e José estava sozinho. O copo de uísque, ovo e menta fez bang e José foi encher outro. Uma faca na pia da cozinha. Observou-a: bela! Prepotente em altivez e onipresença, rasgando o papel de parede em tiras largas de Glenn Miller. A faca inundou a pia da cozinha e José estava sozinho. Só via os filhos de quinze em quinze. Isso é o que dá dar corda para mulher: elas querem logo separar e ainda te roubam a custódia. Ah, José, como você foi bobo. Não notou a artimanha, o planejamento perfeito. Pelo menos burra ela não é, cara. Agora, você fica aí nessa sala escura, trancafiado, esperando não-se-sabe-o-quê. Música triste escorrendo pelas caixas de som. E as paredes — os limites. E José não saía de casa. Apenas recordava. Conhecera Dico na universidade. Num círculo de estudos marxistas, numa época em que era perigoso falar em Karl Marx. 1973, mais ou menos. Dico era o trotskista do grupo, onde havia de tudo um pouco: stalinistas, sindicalistas, trotskistas, leninistas e mais uma montanha de istas que não havia como não se perder. Dico tinha um tipo bem germânico: alto, cabelos ruivos, olhos claros variando do cinza azulado ao verde, pele avermelhada, magro, bigodes fartos. Implicavam com ele, dizendo que politicamente podia ser o que fosse, mas seu bigode, indubitavelmente, era stalinista. Um pouco encurvado também. Ele dizia que era por causa do peso da responsabilidade. Da obrigação de transformar o país num lugar digno de se viver. Todos riam. Ele falava isso e desfiava com a ponta fina dos dedos o grande bigode, com um certo ar de superioridade. E José está trancado na pia da cozinha, ouvindo a infantaria libanesa rasgar com tesão o papel de parede em tiras de relógio. Descoberta e vida. O fio poderoso da faca. José se sentindo só e tonto e inoxidável e bosta e acabou o quinto ou sexto copo de uísque com conhaque-ovo-menta. Foi buscar outro. Seria um recomeço?

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou sete vezes e José foi urinar. Não agüentava mais. É certo obrigar uma pessoa, um pai, a amar só de quinze em quinze? A bexiga espremia mais que as paredes. Cambaleante, José postou-se frente ao vaso. O líquido saiu apressado e quente. Jato borbulhando tique-taques na privada. Uma noite saíra com Dico. Ficaram conversando sobre a revolução, a progressiva desarticulação da esquerda, a falta de conscientização que reinava. Foi legal. Enquanto Dico falava, José observava seus dentes. Sorriso colgate. Havia rumores de guerrilhas lá pelos lados do Araguaia, mas a imprensa apenas calava. Ouviam também falar de um tal Frei Tito, de quem não sabiam mais nada além de que estava também engajado na luta. Os dois ficaram discorrendo sobre a possibilidade de fazer vingar a guerrilha urbana: era por aí que começariam o processo verdadeiramente revolucionário, ou pelas guerrilhas do campo? Dico apostava na guerrilha urbana para dar início ao processo. A bexiga parou. As paredes prosseguiram. Cada vez mais próximas umas das outras. Comunhão perfeita.

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou oito vezes e José estava de pileque e com a bexiga aliviada. Continuava sozinho. Outro informe no rádio: greve dos mineiros ingleses. Tatcher não recuava nas determinações do governo inglês de não ceder um centímetro. Só o amor constrói. Papel de parede mal colado, saindo em tiras de urina — havia urinado na tampa da privada, enxugara os respingos com papel higiênico. Som de Piazzola saindo da faca e rasgando as paredes da pia da cozinha num estrondo. José apanhando do padrasto que descascava papel de parede e comia e chupava até deixar só o bagaço. Homem, para ser homem, tem que levar muita porrada e dar três vezes a bunda. Porrada, já levei. E muita. De correia e vara de marmelo. Uma vez de quinze em quinze, nos finais de semana. Sempre levava os filhos ao Zoológico. Eles gostavam — pelo menos, não reclamavam. Vara de marmelo e correia para castigar. Dor e morte. Ele e Dico tornaram-se grandes amigos. Aos sábados, antes de irem ao círculo de estudos marxistas, conferiam as resenhas de capítulos e capítulos de O Capital que haviam feito, e discutiam-nas. José caía mais para o centralismo democrático. Uma manhã dessas, estavam estudando e Dico foi urinar. Como pretexto, José resolveu escovar os dentes. Excitou-se com o barulho da urina jorrando na privada. Outro informe: o Ministro da Fazenda, aquele velho decrépito que parecia não ter capacidade nem para mijar sem respingar a tábua da privada, anunciava a abertura de investimentos externos no país e um corte drástico nos gastos públicos. Faca de cozinha recortando solidão. E José estava sozinho. Desde que o pai morrera. Era aviador, caiu em Mato Grosso. 1956. Não se soube mais nada, de lá para cá. Padrasto judiava dele. Xingava. Levava ele à missa de orelha pendurada. Chamava-o de caçula mimado. Esse imprestável nem entrou no Exército, por causa da maldita miopia. Ouvia quieto e baixava a cabeça, olhando de rabo de olho a vara de marmelo e o pote de pimenta brava, encostados no canto da sala. Medo. Hoje, mesmo com a miopia avançada, conseguia enxergar a extensão das paredes. Seus limites. As fronteiras do inalcançável. Tordesilhas se estreitando. Paredes espremendo. E José sem ver sol, trancafiado e sozinho. Mastigaram, chuparam, mastigaram, chuparam, mastigaram, mastigaram, mastigaram, mastigaram e só deixaram o bagaço — José. Quando voltaram do círculo de estudos, Dico convidou-o para tomar uma bebida que ele próprio havia inventado. Misturava uma dose de conhaque, gema de ovo e algumas gotas de menta, para dar um tom adocicado e uma cor bonita ao aperitivo. Beberam e conversaram até as altas. Vez por outra, quase que imperceptivelmente, pousava a mão, excitado, na perna de Dico. Desarticulação da esquerda, validade ou não da guerrilha como pavio incendiário e detonador do processo revolucionário, blablablá, não se cansavam de discutir os mesmos temas. Usavam as mesmas expressões para defenderem as mesmas posições, conversaram sobre todas as nuanças, até que a mão de José ousou e subiu pela coxa até tocar Dico. Sentiu-o pulsando. Olharam-se em silêncio por um bom tempo. Resolveram apagar a luz e trancar a porta, depois de um beijo desajeitado mas apaziguador do desejo que os dois alimentavam há muito. Algo que os incendiava — uma presença lasciva em cada um dos dois, que sublimava qualquer tentativa de racionalizar os atos e torná-los todos pertencentes ao processo revolucionário. Algo sem controle. José voltou tarde para casa, com lágrimas de satisfação no rosto. O suco escorreu pela pia e gotejou nas tábuas corridas do piso do living. E José nunca mais encontrou seu suco. Era seco, chibata mole, virilidade fracassada. Laranja oca. Pêndulo preguiçoso aguardando o tempo se esgotar e anunciar a sua passagem com nove badaladas.

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou nove vezes e José estava sozinho. E bêbado. Tonto. As paredes próximas espremendo todo o suco. Depois, o padrasto mandaria um empregado vir buscar o bagaço também. Pelotão de fuzilamento. Qual o seu último desejo? Beber meu suco, oficial. Sem devoluções, mocinho. Um marmanjão com barba na cara, pedindo essas bobagens. A vara de marmelo encostada ameaçadora no canto da sala. O pote de pimenta. O pelotão rindo do pedido. O padre comungando os soldados com hóstias feitas de papel de parede bege embebidas em sêmen. O padrasto gargalha cínico e o alto-falante ecoa pelo pátio do quartel. E as paredes continuam avançando, num abraço que lateja cada vez mais forte pelas caixas de som da privada. Inexistência. No outro dia, ao voltarem do círculo, Dico havia dito que nunca tivera namorada. Olharam-se longamente, como que analisando ou tentando adivinhar até onde iria aquela amizade que já havia se transformado em algo muito mais forte. Persistiria? De longe, um homem os observava. O copo de uísque com ovo-menta-conhaque se ausenta e José vai buscar mais bebida. Lucidez selvagem. Vertigem do impensado. E José está. Continua sozinho. Pensando em Margot: irremediavelmente separados. Solidão contratual: duas assinaturas, álibis recíprocos. Cumplicidade e prisão. E as paredes preguiçosas descascando e escorrendo pêndulos bege libaneses. José fica triste. A bebida subiu demais. José fica triste mais um pouco. Eu não devia beber assim. José fica mais triste que o mundo e José chora e assusta os gatos da vizinha que — dizem — trepa com o jardineiro. Tem gosto para tudo.

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou dez vezes e José estava na frente do homem que o interrogava sobre o círculo de estudos que, por coincidência, era o Comandante do pelotão de fuzilamento. José tomava conhaque com ovo e menta num copo alto de uísque. Absolutamente sozinho. Porre. Ausência de lucidez assumida — um pai de merda, um marido chato (trepa comigo mastigando caule de rosas, vê se pode — dá tesão, segundo ele, dizia Margot antes de assinar a separação) e um funcionariozinho submisso. Vaca de presépio solando o hino do amém. Babaca. E ainda deixa tua mulher levar teus filhos. Até que ela fez bem em se separar de você, José. Você que fique agora trepando com caules de rosas. Na esquina da Floriano Peixoto, perto ali do antigo Ministério do Exército, ele e Dico se separavam, um para cada lado. Dico ia para os lados da Central pegar ônibus para Cordovil; ele andava até a Rio Branco para pegar o 438 mais vazio. De repente, um carro da polícia pára, saem três homens — o motorista ficou — dois agarram José pelas pernas e um pelos cabelos e o jogam dentro do camburão; ele resiste, debate-se, tenta se desvencilhar dos três estranhos até ouvir um baque surdo e acordar numa sala escura tocando Led Zeppelin a todo volume. Uma voz gutural, supostamente vinda de um alto-falante, faz perguntas de coisas estranhas que ele não entendia. Algo sobre um tal comando alfa ou coisa que o valha. Ele desconversa: tem certeza de que o que querem mesmo é saber algo sobre o círculo e das pessoas que dele participam. Quando falaram sobre guerrilha urbana, algo fincou fino dentro do peito e ele lembrou-se das conversas com Dico. Mas eram lembranças muito vagas. A cabeça dele rodava, tinha alucinações com enormes zepelins cor de chumbo sobrevoando o círculo de estudos. Devem ter me dado alguma coisa, pensava confuso, eu estou completamente fora do mundo, não conseguia pensar em nada com firmeza, e a voz gutural perguntava toda hora sobre o comando alfa, beta, e ele não sabia de nada, só sabia de Dico, terreno sagrado, algo impróprio para visitações, que eu amo, e Led Zeppelin toca Going to California, e José, só suco, pensa em Dico, e a voz gutural pergunta por Dico quem é esse sujeito?, e ele explica tudo, fala do Dico, do círculo, que o amava, que ele morava em Cordovil, guerrilha urbana, processo revolucionário, meu Deus!, eu disse!!!... O fio da faca reluz da cozinha e ilumina as lágrimas de José, que lamenta por Glenn Miller e Dico e Margot e descasca a vara de marmelo em lindas tiras de grevistas ingleses pendurados no pêndulo bêbado. Bagaço, sobras, tiras, fuzis, morte, dor, padrasto, quem faz parte do comando alfa?, perguntava a voz gutural do padrasto, paredes, vara de marmelo, uma vez de quinze em quinze, é proibido fumar, não toque nos animais, nem nos seus filhos ou eu vou ao juiz, pelotão de fuzilamento, seu brocha, e as paredes prosseguem na sua rota, compactador de lixo, ai que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, o processo revolucionário e as paredes se aproximam, bagaço, suco, bagaço, liberdade!, abre as garras sobre nós, gritos, murmúrios, ceia de Natal, orar sempre antes das refeições, qualquer dúvida consulte seu médico, Margot, contrato social, bagaço, as paredes, fronteiras, limites, vontade de urinar, Led Zeppelin, aperto, solidão, medo, fogueira, bagaço, bagaço, bagaço, bagaço, bag

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou onze vezes e o pelotão de fuzilamento fez o preparar ordenado pelo comandante. E José estava sozinho. Quantas tordesilhas e demarcações e ordens e paredes e padrastos e Margots? A morte é um bom princípio — afinal, morre a lagarta para ressuscitar lívida e empolgante uma borboleta... Tudo é recomeço. A tristeza da partida pressupõe a alegria de uma chegada e José continuava sozinho e escorria um suco cor de sêmen pelo ralo do banheiro e José se urinou de medo. Medo do mundo, medo do medo. Continuava sozinho e foi pegar outra dose.

Ding-dong.

(O tempo passa depressa quando a gente fica de porre...)

O relógio secular da parede tocou doze vezes e hoje é outro dia e José está morto. Porque hoje é outro dia e por isso outro José saiu do casulo pendurado nas tiras de papel de parede e as paredes espremeram e os vizinhos comentaram e os gatos da vizinhança invadiram a casa e ficaram lambendo um misterioso suco que escorria preguiçosamente do pêndulo da pia da cozinha que tinha um rasgo enorme e vazava tiras de José para os esgotos e gatos. E o tempo passou pelo relógio secular do living, sem que ninguém, nem José, pudesse se dar conta das coisas que aconteceram e não foram consertadas ou remediadas, ding-dong, ding-dong, não há mais tempo, tenho pressa, tenho pressa, e o pelotão foi dispensado (viveram felizes para sempre) se escondendo nas frestas das tábuas corridas, habitando para sempre as frestas e delas fazendo parte, formando um só corpo amorfo, materializado nas lembranças de José, e as paredes espremeram, espremeram, e espremeram e espremeram e José ficou

 

seco

pedra

duro

impassível

 

Sem suco. Só acharam um casulo em cima da pia da cozinha. Um empregado do padrasto veio buscar o bagaço.

Ding-dong.

O relógio secular da parede tocou sete vezes e já era de manhã e as pessoas acordaram para ir trabalhar, tinham pressa, tinham pressa, e José, a sete palmos das tábuas corridas do living, descansa em paz, gotejando eternamente. O informe do rádio noticia um ataque fronteiriço dos contras na Nicarágua. E o mundo fica em paz.

Na Santa Paz de Deus.

Amém.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


João Peçanha: nasci em Niterói e desde cedo me envolvi com arte. Os contos, por exemplo, vieram aos 17 anos e ficaram até os 19, quando foram enterrados até os 36. Nesse intervalo, escrevi o que dava e como dava, mas sempre achando que cinema e literatura, texto e imagem, deviam andar juntos. Um dia, descobri que existiam roteiros, que eram aquelas coisinhas cheias de letras, a partir das quais um filme rolava; a partir das quais uma peça se desenvolvia. Achei que escrevê-los (roteiros, peças) seria uma extensão, uma conseqüência natural do que sempre achei sobre literatura x imagem. Meu livro de contos, Cantata Para 16 Vozes e Orquestra, ganhou menção honrosa no Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira 2001, promovido pela Revista Cult.