Nada apagaria aquela sensação de água evaporando-se do olho do peixe. A consciência do erro, outrora ausente, revelava-se. Carne de joelho magoado na fricção do asfalto. Não deveria ter aceitado o convite.
A janela olhando para o céu,
para o mar, para nada. Choveria, ali uma lágrima, se não resistisse,
querendo parecer montanha de ferro, alma de ferro, soluço soprado para o
alto. O escritor não era boa bisca, alertaram, ela não
acreditou.
À distância, e entre as duas velas ainda apagadas, ela resolveu se vingar. Bebeu um gole profundo de mistério. Ao chegar, com a mão erguida para o ar, o escritor a encontrou sorrindo. O seio jazia sobre a mesa posta.
Não devo
falar de misérias, porque tenho o que quero. E tenho mesmo! Mas já ouvi
algum psicopata em fúria grunhir pela vida. Vida para ele era conseguir o
absurdo, era fazer despencar o desejo no abismo da virtude. Muito, muito
tempo depois alguém fantasiado de faraó se vangloriou pela pirâmide em
construção, que ele, na verdade, jamais construíra. Tenho o que quero: um
elefante azul e marinho, uma gravata de bronze e seda, um canguru branco
(oferta de oswaldo júnior), um espelhinho para vampiros, um Gólgota sem
mártir, um holocausto em miniatura, células do fígado de Prometeu, o
chifre do unicórnio. E bem mais. Na mesma mesa em que bebíamos néctar, ele sentou-se. Disse que haveria de criar no universo um clone, dizendo mais, alguém que seria sua imagem e semelhança. Não tenho certeza, mas acho que conseguiu coisa parecida. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Apenas um absurdo, nem tanta imagem, nem tanta semelhança. Uma miséria, dizem. Eu que não devo falar de misérias. Quis um buraco negro e ele me devorou, livrando-me de toda a sorte. Comigo, ainda, o elefante. E neste enigma, a energia que me torna vivo, como se estivesse perdendo o interesse pela memória.
Vivíamos
uma gravidade tão, que a vida parecia ser apenas um adereço na esmola do
mundo. Pensávamos em pedra, ao mesmo tempo, e o pó se enchia de milagre
dentro de nós. Se soprávamos, o hálito, construíamos dessa pedra um
iceberg de nossos desejos. Dentro da água, os nossos segredos. À vista,
apenas a grandiosidade do espetáculo que era o nosso amor. Se bebíamos os
fluidos do sono, a verdade era a pechincha de um mistério, e só. Com as
centelhas não brincávamos. Já éramos uma espécie de fogo profano. Nessas
labaredas não destruíamos o mal, pelo contrário, aquecíamos até cinzas as
marcas da nossa pele. E, assim, deixávamos o passado, dentro daquele
presente tão grave. Agora, porém, estamos mortos. E mortos não nos possuímos de luz. Mortos, restamos. Mesmo assim, continuamos sedentos. E de nossos túmulos, por uma estranha magia, talvez pela certeza eterna, continuamos a beber a nossa saliva para saciar a nossa sede de mortos.
No
silêncio absurdo, o parque à distância: crianças não havia mais, noite.
Desejo era sair por aí, gritar gestos socorros. Mas se assim agisse, os
dedos e a garganta se entranhariam mais de silêncio. Não conseguia
expressão, mudo... Olhar à lua... (Estar só é um medo
só) Tinha
pavor de cães, mas porque os criava, em matilha, nascidos do medo...
E gritar gestos socorros de
nada adiantava para afugentá-los, se assim eles mais apareciam do nada, do
medo. Aí,
Natanael saiu da igreja, alvo infortunado. O chapéu na mão. Abanando-o,
tentou afugentar aqueles cães de artifício, de sacrifício. Foram
tantos... Ele
correu, os cães doaram-se ao medo. Natanael foi seguido até o Parque do
Cocó. Em círculos, a gangorra foi um diâmetro. Natanael, por pouco tempo,
sentiu-se seguro, criança em colo de pai. Ele, que nem conhecera um... Mas
logo os cães do medo cercaram Natanael. (E quando se pensa em nunca
transformar o medo em bichos de maior pavor, o acontecido se dá numa noite
alta... Assim não era a felicidade... Quando criança até que se tenta
reverter medos. Acontece de criar outros e imaginar e torná-los
tridimensionais...) Ali, por uns segundos, Natanael tentou compreender porque criara tantas cicatrizes de caninos na sua pele. A felicidade era muito estranha... os cães libertos do pavor... O chapéu na mão, a gangorra, a lua. E Natanael foi um uivo imaginário na noite. No silêncio absurdo, o Parque... Natanael, sem desculpas, continuou sem entender a sua culpa e seu remorso. A lua luava no céu...
Francisco. Abriu o olho com
dificuldade. Uma sensação de faísca incendiou-lhe a retina. O outro olho
foi apenado com o mesmo dolorido. Ele, porém, deixara de ser o estranho
Kafka. Um galo
retardatário tratou de imaginar a madrugada e agrediu o que já era manhã.
Francisco catou o senso dos que acordam de um pesadelo. Esfregou a mão nos
olhos ardidos, dois hematomas. Espreguiçou-se e tentou se erguer. Até que,
dessa vez, admitiu amarras ao longo do corpo, livres somente os braços. O
óbvio era pensar que estaria preso ao beliche. Refeitos
os primeiros pensamentos, desentendeu-se com a situação. Francisco tentou
arrancar indícios do dia anterior, nada. O galo cantou outra vez, aí ele
desconheceu por completo o lugar. Lembrou-se de que há muito não ouvia
galos. No entanto, como escutara um, tratou de emprestar ao instante a
certeza de que uma manhã estava por chegar. Pensou que a eterna herança
dos galos é anunciar o amanhecer... As mãos
ocultaram o rosto. Esfregaram-no. Esperou motivos. O quarto continuou
escuro, nenhum rumor extraordinário. O galo se fora, enfastiara-se do seu
canto, ou já era manhã, imaginou Francisco. Então,
uma porta se abriu na parede. Olhando mais detidamente, a própria parede
se abrira. Uma luz amarela embebeu o chão. O silêncio era perfeito.
Francisco começou a sentir medo, e a cabeça.
Esperou. Uma
sombra, logo, foi escurecendo a mancha amarela do chão. Francisco
permaneceu atento. Até que desmaiou, ao perceber a aproximação de um
enorme galo carregando um estetoscópio... E era
ainda tarde. Francisco não percebera a sua mutação, nem o falso cantar de
um galo. Talvez por não ser mais nem Gregório, nem um caixeiro-viajante.
Quem era? Não sabia mais. Aquele galo transformara sua vida. Francisco
batera na quina dela. Nunca mais seria o mesmo. Nem gente, nem bicho. No
céu ou no inferno. E as
coisas, os bichos, a vida é que nunca deixam de ser tão iguais, pensaria
se pudesse... Isso é o fim? Ou o que existe ainda é trágico?
Enquanto
o mundo lá fora abre as pernas para a penetração do gigante falo do caos,
aqui dentro, neste quarto, besouros escapam das fotografias espalhadas
sobre a cama. (um rato nasce, neste
instante, um bicho que nunca entenderá a lição; a gravata do Pato Donald
decepa a cabeça do publicitário;
alguém, conscientemente,
mastiga os próprios dedos, alheio a todas as
castrações; um buraco de janeiro solto
na avenida engole o automóvel de placas
cinzentas; o barulho de corpos se
acotovelam diante da enorme cratera cheia de vermes
gigantes; o diabo brinca de deus ou
vice-versa) Os besouros, irrefletidamente,
arrebentam-se contra meu rosto como se cometessem a morte imprevista no
pára-brisa de um automóvel em velocidade. Eu nada faço, não posso mais, a
não ser pensar, pensar no que a máquina agora escreve, guiada pelo
suplício. (lê-se, em algum lugar, o que Thomas de Quincey afirma: "as mínimas coisas do universo podem ser segredos das maiores"; e indústrias desaceleram a produção de seres não-mutilados; bancos deixam clientes do lado de fora por causa das caixas antropófagas; o metrô de Fracaleza pára
por duas horas imaginárias) Meu
rosto se faz maculoso, disforme. Mais obscurece a visão das fotografias
estendidas sobre a cama. O que elas estariam dizendo? Querem dificultar a
lembrança, materializando com besouros a morte da memória? (n.a.: contemas, pelo que os textos insistem em ser temas para contos, ou poemas em prosa — conto-poemas — ou, ainda, a menor parte estrutural do conto — recaída lingüística: cont-ema). Jorge Pieiro nasceu
em Limoeiro do Norte (CE) e mora em Fortaleza (CE). É professor de Literatura,
mestre em Literatura Brasileira (UFC), sócio-diretor da Letra
& Música Comunicação Ltda e e co-editor da
revista semestral caos portátil: um almanaque de contos,
juntamente com Pedro Salgueiro. Publicou
Ofícios de desdita — novela
(Fortaleza, edição do autor, 1987), Fragmentos de Panaplo — contemas (Fortaleza, edição do
autor, 1989); O tange/dor —
poemas (Fortaleza, edição do autor: 1991); Neverness — poemas (Fortaleza,
Letra & Música, 1996); Galeria
de murmúrios — ensaio (Fortaleza, Letra & Música, 1995); Caos portátil — contos (Fortaleza, Letra &
Música, 1999). Possui
contos, crônicas, ensaios e resenhas publicados no jornal O
Povo, de Fortaleza — do qual é articulista —, e em outras
publicações nacionais e estrangeiras. Integra as antologias Geração 90: manuscritos de computador (São Paulo, Boitempo, 2001), Geração 90: os transgressores (São Paulo, Boitempo, 2003), Os cem menores contos brasileiros do século (São Paulo, Ateliê, 2004), Antologia de contos cearenses (Fortaleza, FUNCET/Imprensa Universitária / UFC, 2004.
No prelo, Entropia com estatuetas e Lugaresmos. (imagem de titi) |