Tempo

 

ergue ó tempo

tua clava

carro em fogo

 

dispõe livros óculos pertences

o que não eterniza

e fica no quarto

(além) da casa

 

lento

sopro

foge tua presença

tão ampla vasta

ulterior ao vento

eu

sem tempo

para tua glória

 

 

 

 

 

 

Perda é contingência

 

sorvemos tantos reveses

taça e fel

 

       beber

     à dor

   que nos aferra

 

 

 

 

 

 

Resíduo

 

escrito

dialeto de nuvem

ressurreição

no dia do juízo

 

escrevo:

tálamo das falas

 

meus olhos

citarão o fumo

meus olhos

saberão a voz

 

escrito escrito

istmo da língua

barco bêbado

o não dito

 

 

(A fala interdita, 1990)

 

 

 

 

 

 

*

 

meu coração um ancião habita

e aponta longe o corpo que vivi

 

o corpo que vivi perante a porta

perante a porta que jamais abri

 

seria após o Éden, seus jardins?

depois viria o que não tenho em mim?

ou portas e mais portas para abrir?

sem chaves, fechaduras, sem o si?

 

não há que erguer o véu, buscar resposta

nem há o corpo longe que perdi —

mas onde a porta por detrás da porta?

 

 
 
 
*

 

persigo, da fala, a plena expressão

da sala nunca aberta, o corredor

que nos conduza ao Verbo sem autor

e que traduza as coisas do porão.

 

mas como seduzir a sedução

e como, sendo ovelha, ser pastor,

se a fala, como falso condutor,

tem muitas e nenhuma direção?

 

 

 

 

 

 

*

 

eu sei, mas por saber sei que sou parco,

tudo que não tenho é o que perco:

a morte se aproxima e fecha o cerco,

descreve uma espiral, desenha um arco.

 

sou para o oceano menos que um barco,

me sinto sobre a terra qual esterco;

fecundo esse fogo de que me acerco

com o ar que se sufoca sob o charco.

 

eu sei e por saber sei que sou pouco,

perdido, navegando como louco,

procuro por um cais que não conheço.

 

eu sei, pois por saber sei que pressinto:

no gesto de perder, que não consinto,

me enleia alguma teia que não teço.

 

 

(Os ciclos contingentes, 1997)

 

 

 

 

 

 

 

*

 

        A meus filhos

 

 

pai, o que é tarde?

 

unhas roídas para o sem resposta

 

mais difícil é olhar nos olhos

responder: — deus te abençoe

 

(às vezes

corro ao quarto

os abraço

sem tocá-los

 

e cresço

na escuridão

como se a conhecesse)

 

queria dar-lhes

a opção do passo:

cuidado com a pedra

salte esse buraco

repartir

o tenho medo

quero colo

 

mas este cigarro que queima

esta noite que arde

sugerem que eu diga

vamos dormir, filhos, é tarde

 

 

 

 

 

 

 

*

 

        A Luiz Ruffato

 

 

não digam que estive aqui

 

tudo tão triste na ausência

como se os convivas

deixassem rastos de mágoa

 

veja o espelho como dói

e a poeira vertida ao balaústre

 

a taça distante do beijo

 

não digam que estive aqui

 

saio e me deixo

distante de mim

no tempo tão triste

 

 

(Outro sol, 2002-2003)

 

 

 

 

 

 

Minaretes de Istambul

 

        A Eny Ribeiro de Lima

 

Muezim arranha

o céu da mesquita,

xeques do jardim de Rumi.

 

Mulá brande

o rosário da sapiência

em nosso susto.

 

A luz

arrosta a indiferença.

Minaretes de Istambul.

 

Sonhar acordado:

por dentro,

o lado de fora

é azul.

 

 

 

 

 

 

 

Os livros me afastam da palavra

 

        A Edimilson de Almeida Pereira

 

Os livros me afastam da palavra.

Onde a pronúncia sem vício?

 

A interlocução que assuste

toda e qualquer dissonância.

 

Os livros nos separam.

São rios sem margem.

 

Quero o clamor inaudito

da boca embriagada.

 

Quero o rastro sem pegadas

da página em branco.

 

 

(Memória do caos, 2003)

 

 

 

 

 

 

 

 

*

 

O atrito da unha sobre a lousa descende ao monolito, funda o mandamento. Tatua legendas ao avesso. Fere a superfície do abismo.

Que colisões a geram: fonte, centro, verbo, palavra?

Fagulhas intraduz.

Frase na imersão, aniquilada. Pia que o batismo dialoga.

 

 

 

 

 

 

 

 

VII

 

O que o tornou samaritano vem de longe. Ultrapassa o horto da paixão, o lago, a esgarça dos soldados. Pontifica do Jordão para a história.

O que o tornou samaritano ele ignora (a não ser o sangue). Centúrias jazem sob o pó. Mas ele perto estava quando a órbita se cumpria. Da roda que em torno do fato circulava.

O que o tornou samaritano ele não sabe. Um veio coleando desde a margem.

 

(A superfície do abismo, 2003)

 

(imagens ©bob carlos clarke)

 

 

Júlio Polidoro (Juiz de Fora, MG, 29/07/1959). Poeta. Estudou filosofia na UFJF, onde trabalha na área administrativa. Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 1990, fez sua estréia poética em 1979, com Treze poemas essenciais, seguindo-se Pequenos Assaltos, em 1990, Orla dos signos, em 2001 e Outro sol, em 2004. Com poemas traduzidos para o espanhol, o italiano, o francês e o flamenco, tem trabalhos publicados no Brasil, Itália, Espanha, França e Portugal.