Um
dos aspectos mais evidentes da obra de Israel Kislansky é seu interesse
pela temática feminina de inspiração serena e contemplativa. Visão que
sugere a suspensão no tempo e o distanciamento da voracidade dos problemas
contemporâneos. Entretanto, olhando com maior atenção, veremos que essas
mulheres são também enigmáticas e se debruçam sobre mistérios sedimentados
ao longo da história da arte.
Quando
Paulo, o apóstolo, chegou à cidade de Éfeso por volta do ano 55 d.C. e
vislumbrou o magnífico templo de Ártemis-Diana, ele contemplou a imponente
figura da deusa de múltiplos seios, expressão da religiosidade ancestral
em pleno vigor naqueles tempos. Por
seu compromisso de pregador da nova fé cristã, Paulo foi preso e
hostilizado pelos seguidores da milenar cultura pagã, personificada na
estátua de Diana. Contudo, tal hostilidade duraria pouco. Sua estratégia
para perpetrar a nova crença foi associar o tradicional símbolo de
fertilidade e feminilidade a uma nova "roupagem",
representada na mitologia cristã pela figura da Virgem Maria, mãe de
Cristo. Em decorrência desta transição, a antiga escultura da deusa foi
removida de seu altar e enterrada, sendo descoberta apenas no século XIX.
Aquilo,
então, que parecia ser o fim de uma antiga era, logrou ser mantido em sua
essência pelo simples gesto de transmutar-se em sua forma externa, em seu
suporte sensível, sem se deixar afetar em sua raiz antropológica.
Escrevia-se assim mais um capítulo na história das antigas tradições do
culto à Mãe Natureza e à terra, manifestada nas Vênus e outros símbolos de
fertilidade universalmente representadas na imagem da mulher. Progressiva
construção imagética mantida sempre presente no universo da arte.
A
noção de antiguidade que traz consigo a sugestão de permanência, ou a
noção histórica que se associa à idéia de transformação, nos permite ainda
hoje observar o feminino na arte, na somatória de suas múltiplas
personificações. Entretanto, a simbologia representada através da figura
feminina ao longo dos séculos distanciou-se de seu denso conteúdo. É sobre
este distanciamento e da tentativa de reafirmação do Belo feminino na
arte, que trata a obra do escultor Israel Kislansky. Com
suas mulheres de bronze em proporções monumentais, situadas entre o
sagrado e o profano, o artista re-instaura o mito feminino num contexto
tipicamente contemporâneo. Inserido
numa sociedade ambientada na alta tecnologia, ele se especializou nos
processos de fundição em cera perdida e na longa tradição figurativa, como
manancial fecundo de sua arte. Não que isso represente trazer apenas o que
é velho e ultrapassado, mas antes, o reconhecimento e a pertinência do
momento presente, quando questões cruciais exigem experiências
consolidadas na trajetória da humanidade, pelo valor e eficiência que
possuem. Evocando-as como os antigos evocavam as musas antes de
manifestarem a criação artística, Kislansky evoca a força ancestral de
mitos adormecidos. Envoltas
entre pedestais e molduras — parecendo ter caído destes suportes — suas
mulheres estão como que fora do tempo e da história, a nos observar. De
bruxas da idade média às efígies republicanas com barrete frígio, passando
pela dessacralização promovida por Rodin — que as destituiu por definitivo
de seu pedestal de pureza e santidade — reerguem-se para reivindicar o status de outrora. Resistindo ao
subjugo do mass mídia e à
tendência cada vez mais inócua que insiste distanciá-las de sentidos mais
elevados. De
todas as imagens femininas que poderíamos escolher para representar nosso
tempo — mães, santas, executivas bem sucedidas, donas de casa "garotas-propaganda
de sabão em pó",
"rainhas
do lar"
ou "dos
baixinhos",
top-models capa de revista,
"mulheres
biônicas"
siliconadas ou clonadas — Kinslanky escolheu justamente aquela que
representa todas simultaneamente: a imagem da mulher nua, despojada de
atributos, validada na força do belo e por ele restituindo o maior de seus
atributos. Fixando a beleza como valor primordial da mulher, sua obra
liberta o feminino dos estigmas secundários e aponta o ícone da
feminilidade (sobre) vivente nos nossos dias. Houve
um tempo em que se acreditava no artista como "grande
inventor";
criador daquilo que representaria exclusivamente o novo, o inusitado. Como
artista contemporâneo, Kislansky reconhece o valor da tecnologia
disponível e se preocupa muito mais em manipular e interferir nas regras
sintáxicas da arte do que apenas aplicá-las, concentrando-se em fixar um
significado artístico para o nosso tempo. Sua obra tem o fascínio que a
forma humana em toda sua complexidade e fator de sedução traz de maneira
intrínseca. Além disso, é tão bela quanto a linhagem escultórica e
monumental do bronze, a correr no sangue da humanidade desde tempos
pré-históricos. Metal tão singularmente importante, que com ele o homem
construiu significados, confrontou dilemas, registrou sua evolução,
escreveu sua história. Acreditamos
que, enquanto houver humanidade, "páginas" como
estas continuarão a ser escritas. E esperamos que, nelas, artistas como
Israel Kislansky continuem a narrar nossos mitos. Gilberto Habib
de Oliveira
é
Pesquisador da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Bacharel em Artes
Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina e Especialista em Museologia pelo
MAE/USP. Mais aqui. |