"Acho que é hora de parar de criticar a oficialidade e voltar a pensar em questões relativas à figuração. Como encontrar uma maneira mais verdadeira e humana de se voltar a tratar a imagem (...) vivendo hoje em dia e vendo o mundo como ele caminha, parece fazer sentido que, não só eu, mas muita gente se preocupe de novo com as pessoas, com as plantas, com o verde, com o pincel, com as cores, com o que o mundo pode ter de mais perene ou verdadeiro (...) Eu acredito que só existe este caminho: procurar construir algo que seja significativo. Acho que essa busca é o que move o artista. Quando ele pinta, ele não pinta para acumular quadros, ele não está buscando quadros, ele está buscando verdades... Está buscando construir um universo espiritual que seja significativo, para si e também para os outros (...)." Israel Kislansky
Israel, uma
questão que interessa a todo mundo, que talvez você possa esclarecer —
até, inclusive, para os seus
alunos saberem disso (não sei se eles sabem) — é sobre o seu começo. Você
sempre quis ser artista? Quando é que você se fez artista no sentido de
ter optado por trabalhar com arte? É muito
difícil precisar o momento em que você toma consciência do que é ser
artista. Mas, tão logo tomei consciência, descobri que sempre o tinha
sido. Desde pequeno, realmente muito pequeno. Para você ter uma idéia, aos
quatro anos de idade, eu assistia televisão como toda criança da minha
geração e, em vez de ver os programas, eu desenhava a própria televisão
com os programas dentro. Isso é típico da criança que tem uma natureza
para as artes plásticas. Depois, eu continuei desenhando a minha infância
toda, ininterruptamente, até hoje. Eu não acho que todo artista siga o
mesmo padrão, mas comigo aconteceu dessa maneira. Acabei fazendo faculdade
de artes plásticas, ingressei aos dezessete anos, e trabalhando com artes
plásticas logo em seguida, de forma que não foi exatamente uma descoberta.
Quando entrei na faculdade, tive contato com o Van Acker, com a Iole Di
Natale, com uma freira, a irmã Zélia, que foram as pessoas que me deram
uma consciência real do que era arte. E aí, então, aquela necessidade de
estar fazendo coisas, que não era exatamente arte, mas estar fazendo
coisas, tomaram nome. Passaram a ter um nome e ter um sentido maior. Foi
uma felicidade enorme, já de cara, encontrar um caminho e poder começar a
trabalhar cedo. Você me
contou, muitas vezes, das
dificuldades que você teve no começo, o que não é um privilégio só dos
artistas — porque hoje em dia, um médico, um advogado, um engenheiro têm dificuldades para iniciar sua
vida profissional. Nesse sentido, uma vez que você diz que a sua
trajetória foi mais ou menos linear, pois ela já se projetava aos quatro anos de
idade, quais os problemas que você enfrentou, além daqueles da
sobrevivência, comum ao
jovem? Existe um
preconceito, que é uma coisa geral, já formada, de que fazer arte é
necessariamente passar fome. "Você vai fazer o quê, com isso?". Demorei
para conseguir fazer as pessoas que me cercavam, na minha juventude, ou seja, a
família e os amigos, que cobram muitas vezes uma outra escolha, aceitarem.
Minha opção por arte veio muito cedo. Eu, com dezessete, e o meu pai já
teve que engolir a minha faculdade de artes plásticas, sendo que ele, sem
dúvida, gostaria que eu fosse um administrador ou um médico, sei lá.
Então, logo a pressão foi muito grande. Agora, fora a pressão, eu me
considero uma pessoa com uma relativa sorte, ou talvez pela própria
pressão, eu tenha de alguma forma procurado achar caminhos ligados à arte,
que fossem remunerados, e acabei descobrindo que nas artes plásticas,
tanto quanto em qualquer outra profissão, existem muitas formas de você,
não só sobreviver, mas até ganhar algum dinheiro. E, dessa forma,
encontrei todos os caminhos que são conhecidos, ou seja, desde a
ilustração até as encomendas, a venda de obras e as aulas. Todas essas
coisas acabaram me dando uma vida absolutamente normal. Não muito
diferente de qualquer outro colega da minha geração que tenha feito
administração, psicologia ou qualquer outra coisa do gênero. Ou seja: um
jovem, se não vem de uma família que lhe dá condições de construir uma
carreira rapidamente, aos 37, 38 anos, como eu, ele estará, na profissão dele, mais ou
menos no mesmo lugar que estou agora, relativamente estável. Seguramente,
não sou rico, mas levo uma vida absolutamente normal, e com a minha
profissão, que é artes plásticas. Uma questão
que sempre me chamou a atenção na sua atividade como artista, no seu
roteiro. São duas coisas, especialmente: independentemente do artista que
eu admiro, do artista que tem o seu lugar no âmbito aí muito amplo do que
se pode chamar de artes plásticas, uma coisa que sempre me chamou a
atenção é o professor, que eu considero uma coisa extraordinária, e, por outro lado, o líder, digamos
assim, o propagador, o homem que leva à frente as suas idéias, seu jornal
especialmente mostra muito isso, e tem se saído bastante bem. Como é que
você vê essa sua atividade de professor — sei que você gosta muito de
lecionar, seus alunos são a prova mais clara de que você se rodeia de
pessoas talentosas e consegue fazer com que elas produzam e produzam muito
bem — e esse outro lado, essa coisa de você levar avante as suas
admirações? Você é um homem que, quando gosta de um artista, eu acho que
eu sou um exemplo privilegiado disso, você leva adiante essa idéia de que
você tem que mostrar pra todo mundo. Eu diria que você chega quase, não a
impor, mas seduzir as pessoas para os artistas que você admira, para a
causa que você defende. Como você vê essa sua atividade de professor e
essa causa que você defende?
Eu acho que
tudo isso é um ato de fé. Na verdade, tudo é uma coisa só. Quando você tem
muitas coisas que se complementam, você tem que conseguir, de alguma
maneira, conduzir todas elas ao mesmo tempo. Quem desce de sopetão e encontra
tudo isso sendo feito, imagina que tudo nasceu pronto. Não nasceu. Tudo
foi construído devagar e cada coisa acabou ocupando seu lugar e não
deixando que outra a excluísse. Quando eu comecei a lecionar e começou a
dar certo, eu tinha o meu trabalho como artista, e aquilo, lecionar, tinha
que seguir junto. Quando eu comecei a poder realmente lutar pelo que eu
acredito, em termos de arte e pelos artistas em que eu acredito, isso também começou a funcionar e
teve de ser inserido na minha realidade. São situações que vão surgindo,
vão se juntando, e você vai tentando de alguma forma, nem sempre
facilmente, administrar, manter tudo isso acontecendo.
Onde seus
mestres entram nessa história? Sem dúvida,
fui bastante privilegiado nesse aspecto. Eu tive grandes professores. Não
só grandes mestres, mas pessoas carinhosas, generosas, pessoas que sabiam
esperar você abrir os olhos para as coisas, sabiam seduzir o olhar, dar
tempo para você começar a enxergar, sabiam mostrar as coisas e tinham fé
na pessoa a quem estavam ensinando. Isso é uma coisa que eu realmente
aprendi: não existe ninguém que não seja capaz de se expressar
artisticamente, desde que o queira. Se ele o quer, é porque, de alguma
forma, artista ele é — o que acontece é que nem todo mundo é estimulado
para a coisa certa, é trabalhado para a coisa certa, ou teve oportunidade, ou só descobriu
isso, muito depois.
Eu parto desse
pressuposto e não é um esforço pensar assim. Então, quando explico para
qualquer pessoa, meu aluno, eu presumo que estou lidando com um artista. E
eu o trato assim. Se ele não é ... a questão é dele. Quer dizer, eu faço a
minha parte. E de fato, às vezes, as pessoas dizem "você está perdendo
tempo com fulano", mas eu não acho assim, dar condições para que a pessoa
encontre um caminho é o que fizeram por mim e eu faço isso absolutamente
de forma espontânea. Mas todas essas coisas deram certo, não tanto por a
gente planejar, aconteceram de funcionar, estão funcionando. Há outras
coisas que eu fiz e não funcionaram. A música por exemplo. Eu ia ser
músico, larguei a faculdade de artes plásticas para estudar música, fiz
isso durante um ano... Então houve um
percalço nesse percurso... O percalço se
chama música, que é a minha amante. Realmente, não andou. Mas, hoje em
dia, virou uma coisa que está sempre presente. Eu toco, às vezes mesmo
durante as aulas, é bem gostoso. Quer dizer, de alguma forma deu certo
também, só não deu tanto quanto eu queria. O mais difícil de tudo é
conduzir várias atividades junto com a produção artística. Isso é o mais
complicado porque a demanda que você tem, vamos dizer, por imagens, coisas
que lhe ocorrem a todo momento, é muito grande, e o tempo não é todo o que
você quer. E você precisa também ganhar o pão. Por enquanto, a arte não dá
todo o pão. Você, há
pouco, falou uma coisa muito interessante. Você repetiu uma frase de um
dos ícones da arte contemporânea, que é o Joseph Beuys. Ele dizia
exatamente isto: todo homem é um artista. Eu acho que todo homem é um
artista, realmente. Mas vamos entrar na questão mais importante, que
talvez hoje mais o mobilize no sentido público da palavra. Você é um homem
que criou um jornal e discute a arte em todos os níveis, colocando a idéia de que
aqueles que trabalham com o suporte tradicional também têm o direito de se mover. Nós
vivemos hoje um mundo muito dicotômico na arte. Não é de agora, é uma
coisa que surge desde os primórdios da arte moderna, com o impressionismo,
onde você tem uma visão de rupturas constantes e outras de continuação,
ainda que com um olhar crítico — quando eu falo de rupturas constantes,
evidentemente, eu me refiro à vanguarda que hoje entrou nas academias e
praticamente domina o pensamento acadêmico, majoritariamente, embora não
seja um monopólio. Você, que é um homem que trabalha com o suporte
tradicional, como vê essa dicotomia? Você acha que a vanguarda deu alguma
contribuição, ou que hoje ela ainda
dá alguma contribuição? Você acha que isso acontece?
Seguramente,
ela cumpriu seu papel, e uns papéis, acredito, em alguns aspectos
maravilhosos. A dança contemporânea, o teatro moderno, o cinema, todas
essas áreas devem muito às inovações nas artes plásticas. Por exemplo, é
quase impossível você imaginar um cenário de um espetáculo de dança sem
intervenções plásticas que são muito ligadas às artes conceituais. Você
vai encontrar um aspecto lúdico, quase surrealista, em quase tudo que é
dança-teatro. É uma coisa maravilhosa. Fora o que se produziu em si.
Realmente, eu acredito que a arte moderna produziu coisas maravilhosas. A
única questão que me passa é o seguinte: eu nasci em 1965. Eu tive a minha
adolescência da década de 80 pra frente. E passei a me entender como homem
mais maduro, na década de 90.
Ou seja, eu sou de uma geração que encontrou um mundo completamente
diferente do que a modernidade criou. A modernidade reagiu a uma
circunstância e eu sou o jovem que encontrou o mundo feito de outra
maneira, que não aquela. Eu costumo dar um exemplo que eu acho
interessante, que é aquela citação do manifesto futurista, que diz, em
1905 ou 1907, que um carro a 30 quilômetros por hora é mais belo que a
Vitória de Samotracia. Fantástico, na época. Dá para entender uma pessoa
refletindo dessa forma, naquele tempo. Ele não conheceu a marginal, nunca
pegou um trânsito de duas horas dentro de um carro, nunca morou numa
Teodoro Sampaio passando todos aqueles carros, fazendo uma fumaça
incrível. Nós nascemos num mundo já mecanizado, industrializado,
computadorizado... Então o
maravilhamento já se dissipou sob este ponto de
vista? Hoje em dia,
por incrível que pareça, o mais fascinante é alguém ter uma hortinha e
plantar tomatinhos sem agrotóxicos — e ainda se cobra caríssimo por isso!
Ou seja, as pessoas estão buscando de novo a coisa mais simples, mais
humana, possível. Eu acho que, de certa forma, quando resolvi pintar
pessoas, eu não tinha a bem dizer nenhum critério teórico, por qual razão
me inclinasse a isso. Mas, vivendo hoje em dia e vendo o mundo como ele
caminha, parece fazer sentido que, não só eu, mas muita gente se preocupe
de novo com as pessoas, com as plantas, com o verde, com o pincel, com as
cores, com o que o mundo pode ter de mais perene ou verdadeiro (não sei
exatamente que palavra usar). O fato é que eu não consigo reagir à
realidade, de uma maneira semelhante a homens que nasceram há 80, 100 anos
atrás. São pessoas que encontraram outro mundo e reagiram a ele, da
maneira como tinham que reagir. Eu apenas reajo a este mundo de agora, da
maneira que sinto. E acredito na minha intuição. A propósito, li uma
declaração linda do Niemeyer, aconselhando o jovem a acreditar na sua
intuição, a pensar mais no homem e menos na arte. Ele falando isto: pensar
mais no homem e menos na arquitetura... E eu acho que sempre intui, sempre
tive uma inclinação a pensar assim, e encontrei nesse sentido, vamos dizer
que almas gêmeas, ou almas que permeiam esse mesmo universo. Dito isso, o
resto é reação à necessidade de fazer vingar essa intuição. Então, tudo o
que veio, veio no sentido de tornar isso mais presente na vida
concreta. O jornal veio nesse
sentido. Nós fazemos uma arte que é uma arte relativamente elitista, onde
poucas pessoas podem ver minha escultura ou discuti-la — ou a sua pintura,
Enio, ou da Iole, ou desses amigos que eu tenho encontrado. O espaço que
temos em galerias e instituições é mínimo. E por que não temos esse
espaço? Na minha opinião esse fenômeno é muito simples: as
institucionalizações são um preceito da natureza humana. O homem descobre
algo, algo verdadeiro como a arte moderna foi. Depois, naturalmente isso
se oficializa, é "digerido" por todos. Daí, o próximo passo é a
institucionalização. A arte contemporânea está formatada de maneira a
responder a algo de cem anos atrás. Você acha que
a vanguarda responde a uma questão de cem anos
atrás? Eu acho que
sim, porque o que o Duchamp falava em 1910 vai fazer cem anos e, de certa
forma, você vai à Bienal e lá está o Duchamp. Duchamp, eu digo, em outras
versões. Obviamente, muitas coisas se problematizaram e se criaram outras
possibilidades, então por que dizer aquilo de novo? Por que transformar a
realidade em uma série de facetas vistas ainda agora como fizeram os
cubistas? Cem anos depois? Eu não faço porque realmente não sinto. Não tem
outra explicação. Se eu sentisse, eu faria. A minha intuição fala que
existem coisas mais importantes para serem pensadas hoje. E aí, voltando ao jornal, o jornal veio
como parte de achar um lugar, um fórum, onde pudéssemos falar o que
pensamos, já que, contingentemente, nós hoje não temos espaços para tal.
E por que você
acha que não temos espaços? Por causa
dessa institucionalização. A arte moderna, como qualquer, vamos dizer,
qualquer monopólio, tem regras de sobrevivência que inclusive protegem um
mercado. Então, veja, no momento em que se começa a dizer que a pintura
deve ser pintura, que a escultura deva tornar a ser escultura, que existem
caminhos de revalorização dessa coisa, o que você faz com tudo aquilo, que
hoje em dia vale milhões e milhões de reais? Tipo merda
enlatada... Tipo essas
coisas. Para que isso desabe, alguém vai ter que perder muito dinheiro,
essa é uma coisa evidente. Numa época qualquer, algumas coisas valem
muito, mas, numa certa hora, essas coisas deixam de valer; quando deixam
de valer, alguém perde. Talvez as instituições, e quando eu falo nas
instituições, eu não digo só no Brasil, mas no mundo inteiro, não ajam
somente por 'lobby'. Em algum lugar, talvez, haja um ideal. Desconfio que
isso se dê em pequena porcentagem, mas, de qualquer modo, existe ali um
mercado que não é pequeno. Então, toda instituição se protege, porque tem
valores ali, além de ideais. Agora,
e isso é mais importante, eu acho que o retorno de uma arte
figurativa que reflita o nosso momento atual precisa também de questionamento, precisa também de
ser pensada, de ser discutida, e preparada para que ela cresça, se
realmente houver espaço para que cresça, de uma maneira madura. Acho que é
hora de parar de criticar a oficialidade e voltar a pensar em questões
relativas à figuração. Como encontrar uma maneira mais verdadeira e humana
de se voltar a tratar a imagem. Então, você
acha que está na hora, contrariamente ao que prega a vanguarda, de
construirmos, e não ficarmos
meramente no criticismo... Totalmente. Eu
acredito que só existe este caminho: procurar construir algo que seja
significativo. Acho que essa busca é o que move o artista. Quando ele
pinta, ele não pinta para acumular quadros, ele não está buscando quadros,
ele está buscando verdades... Está buscando construir um universo
espiritual que seja significativo, para si e também para os outros.
Uma coisa
interessante que você fala, de uma arte que estaria retornando a um
processo quase que ecologicamente à natureza. Não voltando, mas
reformulando antigas questões. E você fala da natureza, claramente. Você
diz que é um homem da década de 60 e que quando você cresceu, nesse mundo,
nesse sítio ecológico que você se coloca — especialmente uma cidade como São
Paulo, que é um exemplo talvez de como não deveriam ser as cidades, que é
uma das cidades mais feias do mundo — optou pela arte. Você faz grandes esculturas. Pode-se dizer que você é um homem
que pretende de alguma forma interferir nessa paisagem urbana,
sub-repticiamente. Como é que você vê, do ponto de vista do artista que
se dá conta de que o mundo tecnológico, afinal, não tem nada de espantoso, a
não ser ele mesmo — ora, não criou um milagre que se esperava, não
aconteceu aquele salto qualitativo no sentido, por exemplo, de alimentar
todos os homens, embora a produção de alimentos tenha se multiplicado,
apesar duma capacidade impressionante de crescimento e de organização, a
profissão inclusive ficou muito bem organizada pelo capitalismo —, como é que você vê essa cidade e a
sua arte e a arte de todos os artistas? No momento em que a cidade se
enfeia, é essa a formulação
que eu faço, eis que se diz: "a arte não é mais necessária" ou "a arte
morreu." Como é que você vê essa questão? Acho que tem
algumas questões aí que são importantes. Primeiro: é evidente que você
deseja dialogar com as pessoas e a arte pública é sem dúvida a melhor
maneira de fazer isso. Porém, eu tenho pena dos artistas. Eu acho que os
artistas são, na maior parte das vezes, manipulados, e mal manipulados,
porque no fundo dependem de toda uma estrutura de interesses, [estrutura]
que é ignorante, que não tem a menor noção de urbanismo, de projeto
urbanístico... Não adianta você ter uma escultura ou um painel na cidade
contribuindo com o caos visual da cidade. Qualquer projeto artístico de
interferência deveria ser acompanhado de um projeto urbanístico, e o
urbanismo, além de lhe ser dada pouca atenção, está a mercê de interesses
políticos e outros interesses. Ou seja: eu não vejo com muito otimismo a
possibilidade de uma real participação artística e tudo o mais [no sentido
de interferir e promover efetivamente soluções à questão da paisagem
urbana]. O artista trabalha
sem a opção de não fazê-lo,
isto é, ele trabalha movido
por uma necessidade interior que ele ouve e atende. Ao executar a
obra, ele cumpre, ao menos, com essa não sei se vocação ou punição, não
sei que palavra é, mas cumpre uma história dele. Se ele não faz, além de
não realizar a obra, ele vai se haver consigo mesmo, porque essas coisas
são fortes quando a pessoa realmente é um artista, no sentido
interior. Então, o artista
faz, mas a questão demanda
soluções políticas e, infelizmente, não vejo uma solução política
em nenhum sentido, no Brasil. A gente viaja, conversa com muitas pessoas,
tenta se esclarecer e, quanto mais conhece a realidade, mais percebe o
quanto há de corrupção, de jogos de interesses, o quanto tudo é movido da
forma mais vergonhosa possível. Você, há pouco, mencionou a desigualdade
na distribuição de alimentos. Há países que são superalimentados e outros
que são totalmente miseráveis. Isso não tem outra explicação a não ser a
falta de interesse em solucionar esses problemas. A questão da paisagem
urbana também é por aí: a solução depende de interesse em resolver. Mas se
você começa a ver como as coisas são resolvidas... Esses dias, fiz uma
viagem a Brasília e tive a bela notícia de que em Brasília existem 11 mil
e tantos cargos de confiança espalhados pelo setor público. Todos eles
ligados a setores privados: setores da indústria, da agropecuária, pessoas
ligadas a setores lobbistas e contratados, e eu não sei como é que se
oficializa isso. Situações desse tipo são muito estranhas... Acho que o
político, a pessoa que tem real vocação para a política ou para a coisa
social sofre muito, nesse cenário. Ele deve trabalhar com um certo
chamamento parecido com o do artista. Felizmente, tive a possibilidade de
encontrar outros mecanismos e conquistar uma independência, sem depender tanto do mercado da arte,
e pude, até agora, prosseguir minha vida tentando construir uma outra
coisa de acordo com o que realmente acredito. Porém, se você tem que
entrar e dialogar com essas feras, eu acho que é uma luta muito
ingrata. Você é uma
pessoa que defende seus pontos de vista, e não apenas defende seus pontos
de vista, como torna públicos esses pontos de vista, seguindo de perto o
conselho que o Rui Mesquita sempre deu aos seus jornalistas: querem ter
opinião, fundem os seus jornais — de alguma forma, quer dizer que os
jornais não têm nada a ver com a opinião pública, com o que a sociedade
quer dizer, mas com o que os interesses dos eventuais donos de jornais
exigem. Sob esse ponto de vista,
é claro que você não ganha dinheiro com o jornal, ao contrário do
Rui Mesquita, você também está querendo impor suas idéias. Ou pelo menos
está querendo discutir publicamente, já que essas idéias, as idéias de uma
arte figurativa, ou de um neofigurativismo, não estão sendo colocadas pela
chamada imprensa convencional. Pelo contrário, a imprensa convencional
está toda voltada para a chamada vanguarda, talvez pelo complexo de
vanguarda que tomou conta da imprensa nos últimos cem anos e pelo fato de
ela se julgar em dicotomia com o movimento que estava mais à frente...
Você criou um jornal para
defender seus pontos de vista, seus e dos seus amigos. Já que você está
discutindo essa questão, você
não vê esperança nisso? Olha,
sinceramente, eu não criei um jornal. Eu criei um panfleto. Quando as
pessoas perguntam "como é que seu
jornal é apenas sobre arte
figurativa? É somente sobre isso? Vocês não falam de abstrato?
", eu digo que
não é que eu seja contra os outros, apenas estou falando do que me
interessa... Não é um jornal no sentido de algo que persegue um
noticiário. É um grupo de pessoas que têm um trabalho "x", que querem
mostrar esse trabalho mas não tem espaço, então fizeram esse panfleto e o
distribuem gratuitamente. O jornal não é para se vender, não é para se
ganhar dinheiro, é apenas para tornar público algo que está sendo feito e
que não tem sido mostrado. Uma coisa que me aconteceu, e é bem por que o
nosso jornal nasceu, é o seguinte. Já na faculdade era ligado a arte
figurativa. Depois de formado, fui procurar um lugar para ensinar. Ninguém
queria saber dessas questões de figura. Então comecei a ensinar dentro de
minha casa. Quatro ou cinco anos depois eu tinha 30, 40 alunos. Hoje são
80. E aconteceu não porque quis. Se me tivessem deixado, eu teria ensinado
em qualquer buraco. Inclusive os
buracos convencionais das universidades? Talvez. Se eu
pudesse dar aula na USP de modelagem do corpo humano, seria lindo, não é?
Agora, com a questão do jornal, do meu folheto, ele nasceu disso. Eu
gostaria de ver a obra do Van Acker publicada, reverenciada, com o devido
respeito que ela merece. Ele não apenas morreu, sem que falassem nada,
como está absolutamente esquecido dentro do cenário nacional das artes
plásticas. Então, quando eu vi essas coisas, percebi que não haveria outra
maneira senão a de criar uma voz. Eu não queria fazer o jornal, pelo
contrário, dá um trabalho horrível, eu gostaria que alguém fizesse um
jornal e falasse sobre nós, seria muito melhor. As coisas vêm de uma
necessidade de se criar uma ponte de diálogo entre a sociedade e a outra
coisa que está acontecendo e sobre as quais as pessoas não estão
vendo. Normalmente, o
pessoal de vanguarda olhando a sua obra, a obra de outros artistas, a
minha, sei lá, dizem: "mas isso daqui é o de sempre." A este "de sempre",
a esse processo da tradição, eles opõem a sua obra, que são as instalações
— as instalações naquilo que a gente tem hoje como concreto, porque anos
atrás se tinha a questão do conceito. Como é que você discute essa
questão? Se é que você está disposto a conceber alguma coisa a
propósito... Primeiro que
essa afirmativa ''é o de
sempre", eu adorei.
Quando quiser falar do meu trabalho, pode falar que é o de sempre. Eu acho
que não se pode estar melhor acompanhado, do que em companhia do que
sempre se fez em arte. Eu, sinceramente, não tenho a menor preocupação em
ser moderno. Sob aspecto nenhum. "Cansei de ser
moderno, agora quero ser eterno...", não é isso que disse Carlos Drummond
de Andrade? Com certeza,
eu nunca tive essa pretensão, não tenho e não acredito que vá ter. Então,
se um dia eu conseguir, ou nós conseguirmos, se mesmo um amigo meu distante conseguir pertencer à
galeria dos grandes artistas, fazendo apenas o mesmo, eu já estarei feliz.
Não precisa nem ser eu, só
ter um amigo que está lá, na galeria dos grandes mestres... Eu faço o que
posso e o que me é destinado fazer. E, com sinceridade, estou feliz com
isso. Com relação à necessidade de ser moderno, eu acho o seguinte: eu
poderia falar o que muito já se falou, mas acho que este assunto já está
vencido. Isso aí é uma coisa já tão falada, tão esmiuçada por teóricos,
por pensadores... eu não quero mais falar sobre isso.
Iberê Camargo
dizia que essa gente só precisa de botões luminosos na camisa para
aparecer... Eu penso que
sou uma pessoa que nasceu agora, estou aqui, sinto o mundo e desejo dizer
algo, que eu digo. Se isso funcionar para as pessoas, eu acho que vai bem.
Eu não estou muito preocupado com esta questão. Só para
retomar uma coisa, melhor colocada. Você fala da política. A origem
etimológica da política é cidade. Nós, artistas, temos a ver com a cidade
porque somos cidadãos. Como o ferramenteiro Lula, como o economista Serra,
seja lá quem for, todos temos
a ver com a política. Mesmo a pessoa que está debaixo do viaduto, ela tem
a ver com a pólis, com a cidade. Como você vê a possibilidade, a
esperança... existe esperança na pólis? E qual é a participação que você
vê dos artistas nisso, já que,
desde a antiga Grécia,
os artistas trabalharam para a cidade e na
cidade? Eu acho que a
esperança está no homem, e ela resiste por esta razão. E acho que tanto a
esperança, quanto o problema, estão no próprio homem. O que eu poderia
dizer é o seguinte. Talvez, em nenhum momento da história da humanidade, a
questão seja tão claramente o individualismo. Acho que a sociedade
caminhou para uma individualização em todos os sentidos. Você vive para os
seus desejos, para responder ao seu ego, essa coisa toda. Então, eu acho
que há esperança enquanto o homem conseguir se mobilizar no sentido de
estruturar formas de solidariedade ou de desenvolver uma atitude mais
sensível aos reais problemas que são a fome, o preconceito, a questão do
radicalismo (um problema que se vê não só em Israel, Palestina e tudo
mais, mas em todos os lugares onde você encontra radicalizações,
fundamentalismos, e nesse sentido acho que tudo isso é reflexo de uma
sociedade muito individual, focada nas necessidades individuais do homem e
não nos valores de uma sociedade — hoje, você não se move por valores, e
sim por desejo.)... Mas você acha
que o artista pode intervir? Eu acho que o
artista faz seu papel. Esse papel na minha opinião deveria ser construir
uma obra que sensibilizasse ou abrisse caminhos para uma possível reflexão
sobre o lugar que ele está hoje. De certa forma a arte contemporânea,
quando tenta denunciar, procura fazer esse papel. Há quantas e quantas
instalações sobre isso, sobre aquilo... — eu não sinto que isso resolva,
como também não acredito que outro tipo de arte em si vá resolver. O Goya
existiu, fez todos os desastres da guerra, fez tudo aquilo e as guerras
continuaram. Acho que aí eu vou com Niemeyer, acho que você, antes de ser
artista, é homem e que talvez tenha mais para fazer como homem do que como
artista. Como artista, você faz o que é da sua natureza. Mas você pode se
mobilizar como homem, para educar uma pessoa próxima a agir de uma outra
maneira com relação à vida em si. Acho que os artistas, como todas as
pessoas, podem fazer o bem. Eu digo isso
porque vejo sua arte, sua obra, muito mais num espaço público, do que numa
casa, num apartamento ou mesmo num grande quintal, num grande
jardim... Espero que o
próximo prefeito também ache!
Dezembro de 2004
Enio
Squeff
é artista plástico e jornalista. Mais aqui. |