soneto percussivo 021


atabaque, pandeiro, clave e timba
velho hermeto improvisa no som de água
onda sonora feita com a régua
batucando panela, cospe guimba

vai salivando dentro da cacimba
o suor escorrendo tal a frágua
da seca, onde hermeto anda a légua
mais longa, sola que no chão carimba

o impacto do seu pé no solo seco
tem a sonoridade diferente
de uma régua batendo no caneco

afina no improviso experiente
faz uma sinfonia em qualquer treco
pra cada som hermeto um tom pressente




soneto alucinado 051


Cartesius se entorpece e esquece o penso-
existo sob a sombra de uma árvore.
o monster Óccam, antes que devore
o seu discurso, engole o franco senso.

barroco, psicodélico, pretenso
romance-experimento — o autor se exaure
em pesquisar linguagem que incorpore
do padre a frase inversa, o texto denso.

encosta-se o filósofo em bananas.
observa o parque em lentes e desata
a conversar com flor e taturanas.

latim em toda página do Cata.
fumaça a alucinar razões humanas.
a lógica perdida pela mata.








soneto augusto 093
 

passeio com poetas falecidos
que moram onde o sol já não existe.
no túnel onde morrem há um triste
cantar — as musas choram sustenidos.

na sala principal: poemas lidos
por velhas surdas, nuas. levo alpiste
pra alimentar os corvos. dedo em riste,
os pássaros agitam-se, induzidos.

augusto é meu roteiro pelas tumbas
do fim do imundo circo dessa vida.
pilares cedem, deixo as catacumbas

ruírem, cruzo a ponte de saída.
a procissão não pára, das zabumbas
explode o rufo à bicha suicida.

(diálogo com "tour", do concretista augusto de campos e
com "o outro", do português mário de sá carneiro)

 



soneto apocalíptico 103


num tempo em que o país é controlado
por guardas, os chamados "civiltares",
um misto de civis com militares,
viver é suportar fardo pesado.

o caos oficial aqui instaurado
destrói o social. não há lugares
pra todos, espremidos nos andares
dos prédios futuristas, lado a lado.

amargas condições da extinta vida.
depósitos de lixo à luz do dia.
floresta da amazônia destruída.

deserto em volta aperta, o sol judia.
apocalipse em sua forma mórbida.
o status quo mantido pela mídia.








soneto sujo 109

(temática histórica)

se as armas dos barões assassinarem
os brancos com salário e idéias novas,
os pretos vão parar de abrir as covas
pra todas as senzalas derrubarem.

se leis de imigração reis revogarem,
varrendo os nossos portos com escovas
ao esconderem ouro sob alcovas
e, ao pelourinho, escravos condenarem,

revoltas surgirão de mil quilombos.
um brasileiro morto é, no bangüê,
levado por mulatos e mazombos

à praia da colônia. a cova é o mangue.
— suspensa pelos bicos de dois pombos:
um trapo da bandeira, sujo em sangue.

(o primeiro verso dialoga com Camões)

 

 



soneto surreal 112

(eu-lírico feminino)

nos sonhos, sempre pinto quadros belos.
se a lua está presente, é uma aquarela.
na rua alguém me vê pela janela
e eu sinto um arrepio pelos meus pêlos.

no sonho eu vou a mundos paralelos.
em cada um me vejo numa tela,
deitada, olhando além de alguma estrela,
o vento a bagunçar os meus cabelos.

desenho uma art noveau, assim que acordo.
talvez alguns retoques surreais
reforcem o nonsense. o lápis mordo

e uso os dedos — sombras laterais
nas nuvens — pois que esfrego o dedo gordo.
no abismo fundo: flores abissais.







soneto inalcançável 145


na areia, à beira-mar, a musa deita
seu corpo — uma oração ao meu poema,
à praia, ao céu, ao mar: meu grande tema.
por ela acendo o sol, fundo uma seita.

dos versos para ela a missa é feita.
"oremos à senhora", sem problema!
o apóstolo, no mar, o barco rema
e os peixes que ele traz a musa aceita.

fartura nessa tarde. quente areia
da qual a musa rege o meu soneto,
enquanto — melanina — se bronzeia.

o sol me faz assado num espeto.
poeta é marginal em sua aldeia
e a musa: inalcançável feito o teto.








soneto íntimo 167
 
(safo-heróico)

clarice, em "água viva", expõe o íntimo
do eu-lírico: mulher atrás do instante
— detrás da mente, o fluxo segue avante
no pensamento, rumo ao "já" de um átimo.

em vôo oblíquo, o pássaro alça o cimo
da nuvem. sol da aurora. luz brilhante.
palavras são escritas qual vazante
de um rio, após a chuva — intenso ânimo.

mergulho incauto em gruta escura. do "útero
do mundo", um parto — um susto — pare um fóssil.
cipó de víscera, ártico ar severo,

substrato sobre um miasma em terra infértil.
inferno escrito às pressas, com sincero
sentido: um traço da alma, seu perfil.







soneto emperrado 178
 
(sáfico)

se mefistófeles surgisse agora
e sussurrasse maldizeres mórbidos
em meus — ingênuos? geniais? — ouvidos,
mostrar-lhe-ia, certamente, a espora

no calcanhar, que me impulsiona afora,
pois não me agrego a personagens tidos,
tal qual seu fausto, como não remidos
de seus pecados literários. a âncora

que manteria o seu mefisto em terra
seria um lapso reincidente em minha
religião, que uma heresia encerra:

enorme fé num milagreiro eu tinha,
mas se extinguiu — e minha espora emperra.
formiga a perna e estou com dor na espinha.





soneto arquitetado 262


lirismo com lirismo é que se paga.
ganhei uma homenagem, qual se eu fosse
um ser que, visto por alguém tão doce,
é invólucro, casuLo, cuja saga

da vida — nasce e morre e a terra o traga —
levou-a a arquitetar verso que endosse
a construção do vôo. que a pena coce
igual algodão — nuvem que, alta, vaga.

distância [e anonimato] não separa
— assim como co'a larva o faz o invólucro —
a inspiração da ode que o inspirara.

tal imaginação constrói, com lucro,
literatura lírica; tão cara
a mim, que, homenageado, um deca lacro.

















Lucas Carrasco nasceu no natal de 1979, na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo. É sonetista e cursa Letras na PUC-Campinas. Consta no Sonetário Brasileiro, organizado por Glauco Mattoso, e na edição 33 de A Arte da Palavra. Tem publicações sobre Paulo Leminski e Waly Salomão na revista argentina/carioca Grumo. Escreve o blog Casulo Inverso.