Luis
Dolhnikoff (São
Paulo, 1961). Autor, entre outros, de Pânico, poemas,
apresentação de Paulo Leminski (São Paulo: Expressão, 1987),
Microcosmo, poemas (Olavobrás, 1991), da trilogia poética
Consubstanciações I, inédita, e de Sobre
Sísifo, poemas, a sair pela Ateliê Editorial. Desenvolveu, em paralelo
com a poeta Josely Vianna Baptista, um trabalho conjunto com o artista plástico
Francisco Faria, que resultou numa exposição no Museu Oscar Niemeyer de
Curitiba (abril 2005) e no Instituto Tomie Otahke de São
Paulo (setembro, 2005). Sob auspícios de uma Bolsa Vitae de Artes,
dedica-se à redação do ensaio e à organização da antologia do volume
ReVisão de Pedro Xisto. Mais informações no PopBox e no Jornal de Poesia.
Mais Luis Dolhnikoff em
Germina
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vejo tudo embaçado
por
isso estico um braço
para pôr os óculos
logo que acordo
postos
assim entre os olhos
— óculos —
e o mundo
não os afastam
mas, parece, o oposto
porém
posto que não são os olhos
mas o cérebro que em verdade vê
míope deve ser o cérebro
de toda gente
— se o mundo é sempre opaco —
que os velhos óculos
dos filósofos
e as novas lentes
dos físicos
não logram pôr em foco
(como enfim nunca o iluminou
a vela trêmula no alto de um altar)
portanto,
míopes são os outros:
os que vêem nítidos
seus contornos foscos
porém
como tais crentes
são sempre a maioria
crêem ver a miopia
nos poucos que enxergam bem
impondo-lhes
assim
os filtros falsos dos óculos
enquanto
faltam
os verdadeiros
feitos para o grande
e quase cego
olho sombrio do cérebro
(quanto
a mim
liberto da máscara diária
da nitidez
ao menos posso
postos de lado os óculos
e apagada a luz
ter um vislumbre de lucidez)
míopes
só têm foco
ou quando o objeto
está muito perto
ou quando
distante
lentes levem a luz
refletida
até sua afastada retina
óculos
lentes de contato
ou cirurgia:
o que se via
de forma pouco nítida
as bordas esfumadas
(como o tato
de quem veste luvas de lã)
volta ao leito
da linha precisa
(como a sentiria
quem retirasse as luvas
da pele)
que contém e contorna
cada forma
a
flor
que era apenas cor
entre outras cores
feita de cores
em forma de flor
desabrocha
entre cores e formas
de não-flores
não-flor
cada objeto
se apresenta pleno
de si mesmo
em
pleno isolamento
dos planos fixamente
mecânicos
(dois corpos não ocupam...
[a não ser na cópula])
que o são
(e sua estase)
o
vento
(êxtase transparente)
nem o lince
vê
mas
o vento
frêmito indiferente
moléculas de ar
em movimento
só move as superfícies
que são outro objeto
sobre o leito
do objeto-em-si
um
lençol sobre a cama
os pêlos
sobre a pele
ou
objetos que são
pura superfície
cortinas
folhas
folhas
pétalas
ou
o que é
feito de infinitesimais
superfícies sobrepostas:
o mar
os cabelos soltos
de uma mulher
o
que se move
quando se move
o que quer que seja
é a cor
e a linha
feita de luz e a borda
de uma cor finda
que
oscila:
objeto em sucessivas
posições nítidas
mas se não
há foco
ou
movimento
a
linha ainda se move:
porém
para fora
do
que era
porém
para dentro
do
que está sendo
desfeito
lanugem
de contornos
espessos
infinitos
fios
transversais
transpassando
ex-superfícies
o
borrão do mundo
enfim
visível
a eugenia
quando por fim praticada
a partir de cada
gene
analisado intra-útero
logo após a fecundação
permitindo então
a correção de qualquer defeito
de futura fabricação
extinguirá a miopia
tudo será nítido
a beleza humana
no seu ápice
(narizes grandes
serão previstos
então alterados
bem como coxas finas
seios moles
ombros estreitos nos homens
e pequenos pintos)
ainda que não
a inteligência:
a beleza é bela
a despeito de si mesma
ao contrário da inteligência
que tem de ser ativa:
e a genética não pode
prever a história de uma vida
ou prover a história
de um sentido
(principalmente um nítido)
assim se os óculos
não serão mais necessários
o passado seguirá desfocado
pelos séculos dos séculos
portanto o tempo
— de que tudo
é feito —
a despeito de qualquer futuro
os cheiros dos peidos
— de que todos no mundo
estão mais ou menos cheios —
são fatos químicos
já
os sons dos peidos
— a que todos no mundo
estão mais ou menos sujeitos —
são fatos físicos
produzidos
pela passagem do gás
vibrando na pele
das pregas anais
o
que é em tudo semelhante
— pregas vibrantes de pele
um longo cilindro com gás —
ao mecanismo das cordas vocais
fala-se,
assim
por duas bocas distintas
como se vê por dois olhos
ou filtra-se por um par de rins
como
aliás se respira
— seja o ar mais puro
ou o gás mais sulfúrico —
por duas narinas
a
diferença
(além da distância
tão inusitada)
está na distinta eficiência
pois
mesmo que um olho
veja menos que o outro
(excluído o não-olho
que é o olho morto)
e
ainda que um rim
filtre menos
enfim todos fazem
mais ou menos o mesmo
sua
dessemelhança
portanto
(ou por tão pouco)
é quantitativa, apenas
apenas
no caso imprevisto
desse atípico par de bocas
os órgãos são tão distantes
quanto seu trabalho é distinto
pois
uma de fato fala
expressa-se em frases claras
enquanto a outra
produz sons sem sentido
e
que não são sentidos
de hábito
— com a única exceção
dos piores maus hálitos —
por nenhum sentido
esses sons insípidos
— puros ruídos —
para além dos dois ouvidos
só
é de fato compreensível
a fala que traduz o mundo:
não a que o pretende
meramente
assim
tão mais precisa
quanto necessário ouvir será
aquela que provém
do mais profundo das vísceras
e
que é sempre
naturalmente
não somente sonora
mas, mais que estética
sinestésica:
um dizer poético, sensível
visceralmente unido
àquilo que é dito:
cheio
de sons
pleno de cheiros
vazio de sentidos
exatamente qual o mundo
(o
que diferencia
a prosa de certo ideal de poesia
é que a primeira refere
enquanto a outra recria:
les
sanglots longs
des violons
de l’automne
e o ritmo em que a folha caía)
funde-se,
assim, verbivoconasal
a fala comum à arte
e mais ainda
a arte à própria vida
verdade
que diz sempre o mesmo:
porque a verdade
é imutável
como a realidade essencial
verdade que assim jaz
imersa
nessa invariável tradução sintética
de uma realidade etérea
informe, fétida
o
tempo
não existe
tudo
que existe
é o que não é
o tempo
que não existe
o
tempo é a ausência
de tudo
meu
travesseiro
sob minha cabeça
era
tudo de que é feito
antes
de ser feito
flores
de algodão ao vento
fezes
dos ratos do campo
manto
de húmus
úmido do âmago de mil minhocas
minha
cabeça
era
tudo de que é feita
antes
de ser feita
frutos
comidos por minha mãe
fomes
dos ratos dos pomares
ares
idéias
digeridos por meu pai
nada
de tempo
no travesseiro
ou em minha cabeça
(a memória
onde dormem idéias
palavras
e saudades
não é feita de tempo
mas de idéias
palavras
e saudades)
o
lixo
não é feito de tempo
mas de travesseiros velhos
o
travesseiro velho
lançado no lixo
queimado e desfeito
no vento
torna-se
o que não era
hera
flores
fezes
húmus
vento
nada
de tempo
tudo
que existe
é feito do que foi
e vai
desfazendo-se
no que não é
tudo
em que se refaz
o
desfazer-se
não é o tempo
a desfazer-se
tudo se faz
fez-se
flores de fezes
fezes de frutos
frutos de flores
mortas
húmus
fruto dos vermes
o
tubo de pasta de dentes
sobre a pia
esvazia-se
um pouco mais
a cada dia
se esvai
e vai
para o lixo
o museu
ou o cemitério
tudo
o que já foi
o
lixo
se desfaz em húmus
frutos
fezes
não
em tempo
o
museu
se desfaz aos poucos
em poeira
e húmus
não
em tempo
nem
em tempo
mas em punhados
de ex-tudo
é pouco a pouco
restaurado
o
cemitério
se desfaz em húmus
o húmus
em frutos
os frutos
em humanos
humanos
em fezes
e húmus
flores
existe
o que está sendo des
feito
o que está sendo re
isto
aquilo
tudo
ela dorme
dormindo
vive
vivendo morre
ela morre
é
o que não era
antes de sê-la
será
o que não for
depois de ser
vazio
tempo
EVELINE
Muitos dos poucos leitores que hoje o conhecem crêem se tratar de um escritor de histórias policiais. Na verdade, é um grande escritor de histórias, se se pode falar assim. Histórias humanas, como todo grande escritor, sem que isto signifique coisa alguma de sentimental, mas o contrário: pois humanas no que têm de mais duro, ou seja, de mais escuro e frágil. Num pequeno romance de Georges Simenon, há uma personagem, menina tão tímida quanto doentia, cuja morte provoca investigações que afinal revelam ter sido uma ninfomaníaca. Porém não uma ninfomaníaca comum, se é que isto existe.
Sofria de um mal cardíaco tão crônico quanto debilitante, cujo prognóstico indicava que dificilmente chegaria aos trinta anos. O que ninguém sabia é que, desde os doze, ela conhece seu mal e seu prognóstico, entreouvidos atrás de uma porta.
O prognóstico estava, afinal, correto. Mesmo que errada estivesse a causa mortis: pois se morreu de fato aos vinte e oito anos, não o foi por seu coração fraco, mas pela fraqueza de espírito de um amante. De um amante, não de um namorado, que jamais teria. Conforme relata sua única amiga, após dois anos de dúvidas e reflexões solitárias, aos quatorze a menina frágil começara a escolher os homens com os quais queria ter relações sexuais, fossem solteiros, casados, adultos ou de meia-idade, que aguardava, depois da escola, à porta do trabalho ou do hotel, depois de os ter seguido pela rua no dia anterior. Devido ao coração fraco, não devia ter emoções fortes. Mas como, devido ao coração fraco, não tinha muito tempo de vida, decidiu viver, digamos, fortemente. A lista de seus amantes era maior que a de homens adultos da cidadezinha, pois incluía os viajantes. "Fazia pensar em alguém que, caído à água numa forte correnteza, se agarra em vão a destroços apodrecidos".
Somos todos Eveline Le Guérec, cujos corações fracos pararão em poucos anos. Não importa em quantos: pois quando afinal pararem, e todos pararão, terão sido poucos os anos. A diferença é que ela sabia do prognóstico. Nós fingimos não saber — e que os troncos a que nos agarramos têm raízes fortes. Tão fortes quanto nossos corações saudáveis.