1962 ©gina jackson
 
 
 
 
                 

 

Patricia Highsmith, que todo mundo que lê autores contemporâneos sabe mais ou menos quem é, falecida em 1995, é, felizmente, muito publicada e republicada no Brasil. Deve ter um bom número de leitores, e eu me incluo entre eles — sempre que encontro um livro seu que não li, tenho uma satisfação imediata e não hesito em comprar.

 

Essa doce obsessão eu encontrei numa banca popular, já como velho item de promoção, numa dessas edições com cara de livreco romântico e tolo, perfeitamente descartável, até pela capa, que pode pegar algum incauto por razões que a história contida no livro esmagará. Não faltam a ela sequer aquelas letras salientes, em ouro, para "valorizar" o produto. Quem pode imaginar que por trás desse chamariz comercial do tipo romântico-pra-moças sonhadoras se encontra uma obra-prima — que pode ser, inclusive, a maior novela escrita pela autora?

 

É um dos melhores livros existentes sobre o fenômeno chamado amor. Essa doce obsessão aborda um sujeito comum, metido a cientista, chamado David Kelsey, e nos mostra a sua vidinha numa pensão de uma das infindáveis cidadezinhas medíocres do interior dos E.U.A.

 

Ele é o típico sujeito bonzinho, de comportamento aparentemente impecável, que agrada aos idosos, convive em harmonia com os outros hóspedes. Também é um empregado modelar numa fábrica de utilidades vulgares de plástico. Tem um amigo que gosta de beber e não se dá com a mulher, o típico marido que gosta de dar as suas escapadas, mas que vive sob o jugo daquela mulher de quem gosta tanto de reclamar (conhecemos inúmeras variações dele, no Brasil; entre os homens brasileiros, uma mulher como essa é rotulada de "patroa" e, a uma certa hora da reunião do boteco, o sujeito olhará para o relógio e voltará para casa, nervoso, por causa dela, uma chata, de quem ele dependerá pelo resto da vida).

 

A história de Kelsey seria um epítome de banalidade nauseante se ele não estivesse apaixonado por uma certa Anabelle, que logo saberemos quem é. Mas perceberemos também, rapidamente, que o amor de Kelsey por ela é irremediável. Kelsey é tão apaixonado por Anabelle que, por ela, construiu um mundo à parte, criou um novo nome, uma nova identidade numa cidade não muito distante, onde tem uma casa com os móveis com que queria presentear a moça, onde se tranca para... vamos dizer, amá-la.

 

Tudo bem se ela estivesse presente na tal casa. Não está, claro. Há bom tempo se casou com outro, vive uma vida alheia à de David e, pior, não passa de uma moça comum perseguida por um admirador incansável de quem quer se livrar, mas não consegue, por amabilidade, compaixão, por uma ligeira lisonja inconfessada, despachá-lo.

 

 

O MAIS COMPLETO EQUÍVOCO

 

A perícia e a crueldade de Patricia Highsmith brilham neste livro com uma intensidade particularmente apropriada: sua maneira crua, irônica e fria de tratar os absurdos humanos encontrou nessa história o veículo mais apropriado.

 

Tudo nela é absolutamente banal, transparente e...inaceitável. Uma velha canção popular brega brasileira trazia um resumo da "ópera": "Quem eu quero não me quer/quem me quer, mandei embora". Porque David, que ama sem tréguas e sem esperanças uma mulher alheia, tem uma mulher que o ama, completamente, e também sem esperanças. A admiradora de David é uma hóspede da pensão, e caberá a ela ir descobrindo, aos poucos, quem seu amado é.

 

É sempre assim, com Highsmith: o lugar-comum é o abrigo do Inferno, os chavões comportamentais escondem o psicopatológico em estado bruto, e o outro é Outro mesmo, em estado irremediável, quer dizer: enigma hostil, fechado.

 

O masoquismo obstinado de David, quem já não o conheceu em alguém por aí? Quanto mais Anabelle dá provas de que não o quer por perto, mais ele se obstina em amá-la, idolatrá-la, produzindo cartas que vão causando na gente um incômodo desesperado, pois o que se está vendo, com uma lupa que o estilo maniacamente preciso de Highsmith fornece ao leitor atento, é a evolução de um caso de demência.

 

O mais terrível nisso tudo é que o que Highsmith faz, na verdade, é pôr o dedo numa ferida universal, trivial, quase como se estivesse, por crueldade, topando um desafio — escrever uma história de amor comum para virar de ponta-cabeça toda espécie de consolo e conforto piegas que essas coisas, em livros destinados a gente cheia de coração, mas um tanto desprovida de cérebro, costumam transpirar.

 

David se parece muito com qualquer pessoa apaixonada: ele simplesmente defende a lógica de seu amor, que não tem lógica alguma, com a mais cândida fé. Crê que vai casar-se com Anabelle, que ela é prisioneira do marido (quando ela na verdade o ama, embora ele seja feio e grosseiro). Que ela é uma mulher incomum, dotada para a música clássica (quando é uma moça simples, que um dia interessou-se por piano, esqueceu-se disso, casou-se e pronto). As razões que David elabora para seu amor vão num crescendo, aprisionando-o cada vez mais na teia do equívoco. Mas só o leitor percebe. David é um protótipo de normalidade, para todos. É precisamente nessa normalidade que a insanidade se instala, soberana e sorrateira, e a escritora a observa desenvolver-se como um entomólogo obcecado pelos movimentos de um inseto raro.

 

A base dessa doença de David, tão disseminada no comportamento humano, é simplesmente essa coisa tão comum, mas tão ignorada (deliberadamente): o fato de não sabermos quem os outros são. O fato de amarmos sempre um produto de nossa fantasia, não a pessoa real que lhe deu origem e que pode ser, inclusive, totalmente divergente dela.

 

As maiores perturbações estão no cerne da banalidade. O que Proust afirmava acerca da natureza doentia do amor — uma febre fantasiosa, sem reciprocidade, para Marcel — Highsmith assinaria embaixo, com fervor absoluto, e acrescentando, em rodapé, um sem-número de notas ainda mais elucidadoras.

 

O grande amor de Kelsey acabará gerando duas mortes, e acidentais, para maior desespero do infeliz. Mas acidentais de um modo tal que parecem criminosas, e ele passará a ser objeto de uma investigação policial. Só que nunca saberá quem é perseguido — se ele, Kelsey, ou se o homem irreal cuja identidade forjou para viver com uma Anabelle que não existe numa outra cidade, sob nome falso. É dilacerante.

 

Highsmith, brincando de maneira cruel com esse estereótipo do romantismo — o amor idealizado —, tirando um sarro dos Werthers deste mundo, está dizendo o óbvio: que a loucura perigosa está por aí, em qualquer canto, como uma tarântula à espreita dentro do cidadão normal, afável, tranqüilo, confiável. Que esse sentimento, tão banalizado, de que as pessoas se orgulham tão facilmente, de modo algum pode ser sempre levado como uma prova de uma grande sensibilidade e de uma humanidade nobre. Pode ser sim prova de um desajustamento patético à mais necessária e básica sensatez. Um ou dois minutos de bom-senso, e David estaria salvo, mas também perderia a única poesia que há em sua vida estúpida, conformista e sem sentido.

 

Quanto à garota simples que ama David sem esperanças, pensa-se um pouco naquela loirinha, de óculos, vivida por Barbara Bel Geddes, em Um corpo que cai, de Hitchcock; ela está apaixonada por Scott (James Stewart), que só tem tara é pela mulher do Além, Madeleine/Judy (Kim Novak), e é compreensível: que mulher de carne e osso pode fazer frente a uma idealização? Esses personagens são interessantes, mas David está no centro de tudo, e é preciso acompanhá-lo até o fim. Que é de grande beleza.

 

A realidade assustadora, abissal e ambígua de tal modo que todas as suas ambigüidades estão fora de controle e todas as vítimas não podem senão se enredar mais e mais em suas próprias motivações, é o mundo de Highsmith. E ele sim é assustador. Não os monstros fáceis dos livros de terror ou os "serial killers" de livros policiais, sobre os quais a leniência do leitor já lançou as teias do comodismo, da previsibilidade.

 

Para Highsmith, o que está em questão fica perigosamente perto, ou dentro, de todos nós.

 

 

 

dezembro, 2007