©ingo jezierski
 
 
 
 
 
 

         Para comemorar os seus 40 anos de poesia, Gabriel Nascente lançou Inventário Poético, pela Editora Alternativa, de Goiânia, em bem cuidada edição que reúne o melhor de sua produção, de acordo com seleção feita por Aidenor Aires e Vera Maria Tietzmann Silva, que também é responsável pela organização e pelo texto introdutório.

Ao mesmo tempo, lançou com o apoio cultural da Central dos Concursos, de Goiânia, Um poeta em ação, que contém sua biografia e fortuna crítica, com o qual chega a sua 40ª obra publicada, o que resulta na média impressionante de um livro editado por ano de atividade literária. Não se sabe de outro poeta que tenha alcançado tamanho volume de trabalho.

         É verdade que quantidade não significa qualidade, mas esta é uma observação injusta quando se trata do fazer poético de Gabriel Nascente, marcado principalmente por uma preocupação existencial extravasada por um lirismo não muito comum na literatura brasileira.

Nascido em Goiânia em 1950, Nascente estreou, ainda estudante, aos 16 anos, com o livro de poemas Os gatos (1966). Funcionário público e autodidata, atua no jornalismo e na literatura e, com freqüência, sua voz tem arrancado elogios de poetas, romancistas e críticos consagrados como Ivan Junqueira, Ferreira Gullar, Olga Savary, Affonso Romano de Sant'Anna, Moacyr Scliar, Luciana Stegagno Picchio, Fábio Lucas, Nelly Novaes Coelho, Ivo Barroso, Ronaldo Cagiano, Álvaro Alves de Faria, Alaor Barbosa, Fernando Py, Alexei Bueno e Fausto Wolff, entre outros. Também grandes nomes, já falecidos, como Carlos Drummond de Andrade, Menotti del Picchia, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis e Otto Lara Resende, pronunciaram-se com entusiasmo em relação aos seus versos, como se pode constatar em Um poeta em ação.

         A obra de Nascente é predominantemente poética. Além dos 22 livros que serviram de fonte de consulta para Vera Maria Tietzmann Silva organizar o seu Inventário Poético, o poeta publicou outras obras em verso, crônicas em jornais e ainda incursionou pela ficção, publicando a novela Um dia antes de mim (1986) e o romance A cova dos leões (1998).

Organizou também antologias poéticas de autores ligados a Goiás e ele mesmo mereceu espaço em diversas antologias como a edição especial da revista Encontros com a Civilização Brasileira (1982), o volume Sincretismo — poesia da geração 60 (1995), organizado por Pedro Lyra, e A poesia goiana do século XX (1997), de Assis Brasil.

Como o poeta russo Maiakovski, a quem confessadamente quis imitar, Nascente sempre teve a mania de ir aos bares à noite não só para declamar os seus versos como para vendê-los, pois muitas das edições de seus 40 livros foram pagas à gráfica com seus próprios recursos, o que exigiu esforços redobrados para recuperar o capital investido.

O poeta, porém, não se limitou às experiências em sua terra: passou uma longa temporada em São Paulo, onde trabalhou na Editora Martins como redator de textos de orelhas de livros de autores famosos, deu aulas em cursinhos de pré-vestibular e trabalhou na redação da Folha de S.Paulo, na alameda Barão de Limeira. Quando deixava a redação, aproveitava para vender exemplares de seus livros nas noites paulistanas.

         No estudo introdutório que escreveu para Inventário Poético, Vera Maria Tietzmann Silva diz, com percuciência, que Gabriel Nascente, "intuitivo, cria seus poemas movido pela emoção, que permeia toda a sua produção literária, estendendo-se para além dos textos genuinamente líricos". E observa que, na visão lírica do autor, "as fronteiras entre a voz que fala e a realidade circundante são tênues, quase inexistentes".

De fato, em muitos dos poemas de Nascente, a natureza assume reações humanas. Vale-se o autor de uma figura de linguagem, a prosopopéia ou personificação, que só grandes mestres da literatura sabem como utilizar em seu maior grau de transcendência, atribuindo qualidades humanas a personagens não-humanos, ao transferir para árvores seus próprios traços psicológicos, como se vê nos versos de "A palmeira de Morrinhos", que faz parte do livro Os passageiros (1979):

 

         (...) A palmeira de Morrinhos

         tem silêncio de que dormiu

         com as águas.

         O rosto sempre virado

         para os lábios da brisa. (...)

 

Ou ainda nos versos de  "As bananeiras",  poema que faz parte  de Ventania (1995):

 

         (...) As bananeiras estão fartas e amarelas de fadiga.

         Mas quando nas madrugadas as ventanias

         são impiedosas a ponto de maltratá-las,

         elas ficam a chorar de inveja dos telhados,

         porque abaixo dos telhados há corações,

         relógios e cobertores.

         E por baixo das bananeiras, não. (...).

 

Outra característica da poesia de Gabriel Nascente é a sua ligação à terra goiana, o que já lhe valeu epítetos como "o maior poeta de Goiás" ou ainda o de "Castro Alves da poesia goiana", que lhe foi atribuído por Cora Coralina. É o que se pode ver no poema "O Bié da 75" (auto-retrato), que abre A valsa dos ratos (1992):

 

         Eu, Gabriel Nascente, vim da serragem

         e José também me chamo.

         Nasci pouco antes da primeira estrela.

         Sou filho do crepúsculo. Sou de 50.

         Sou de janeiro. Sou das ruas de chão

         do Bairro Popular, cúpula dos gorjeios

         da minha infância.

         Sou dos brejos do Botafogo.

         Sou de Goiânia. (...).

 

Nesse mesmo poema longo de cinco cantos, recorda os seus tempos de São Paulo:

 

         (...) Li Rimbaud e Castro Alves. Bebi Martini doce.

         Fumei cigarros Califórnia, cigarrilhas de executivo. (...)

         Fui morar no 25º andar de um espigão de cimento,

         defronte à torre da Igreja da Consolação, de São Paulo.

         Vendi poema na Praça da República.

         Bebi café com os operários do Ipiranga,

         longe da chuva das risadas da província. (...).

 

Como bem assinala Vera Maria Tietzmann Silva, outro ponto marcante da poesia de Gabriel Nascente é o seu permanente diálogo com poetas, brasileiros e estrangeiros, de várias épocas, em que não deixa de registrar as influências literárias e filosóficas que sofreu, como observa, por sua vez, Aidenor Aires na apresentação que fez para Inventário Poético. Não só a cultura clássica é reverenciada, com a citação de Homero e Virgílio, mas também ícones da poesia íbero-americana do século XX como Pablo Neruda, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade ou ainda nomes lendários como Charles Baudelaire, Dylan Thomas e Arthur Rimbaud. Sem esquecer de Brecht e Albert Camus, nomes que lembrou em "Um dois um", poema de A lira da vida (1997):

 

         Brecht e Camus,

         que drama se trama

         na efígie deste nomes?

         Filhos do palco,

         depadores do apetite

         do mundo, do jogo do mundo?

         De lunáticas-lunetas

         se salvaram do sonho

         de uma só pergunta?

         Reivindicaram justiça

         embriagados de urgência?

         Anfitriões

         da alma e do pão:

         um, chaminé

         de névoas, o outro

           libertino utópico. (....)

 

         Reverenciado e com talento reconhecido por tantos grandes poetas e homens de letras do Brasil e do exterior, como se pode comprovar em "Um poeta de ação", Gabriel Nascente é, hoje, um poeta amadurecido, que conhece o valor emotivo das palavras e que, portanto, merece a edição que Vera Maria Tietzmann Silva e Aidenor Aires prepararam para comemorar os 40 anos de sua poesia. São poucos os que merecem tanto.
 
 

 

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Inventário poético, de Gabriel Nascente. Goiânia-GO, Editora Alternativa, 500 págs., 2005. E-mail: editora@livrariaalternativa.com.br

Um poeta em ação, biografia e fortuna crítica de Gabriel Nascente. Goiânia-GO, Casa dos Concursos, 75 págs., 2005.

 

 

 agosto, 2005

adelto@unisanta.br