©yasushi akimoto
 
 

 

 

 
 

        

I

 

         Outro dia, lendo um dos 70 volumes dos Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, mais especificamente o v.13, de 1895, que reúne bandos e portarias do governador e capitão-general Rodrigo César de Meneses (1721-1727), surpreendi-me com o desconhecimento do organizador da edição quanto ao significado do termo homem-bom. Em comentário à margem de determinado documento, o organizador meteu-se a fazer avaliações morais sobre o governador César, como era conhecido, acusando-o de falta de rumo ou de caráter, pois em texto anterior manifestara a sua surpresa com os costumes bárbaros dos paulistas de seu tempo — na maioria, gente rude, mestiça, que enriquecera caçando e escravizando indígenas — para, de repente, em outro documento, referir-se aos homens-bons de São Paulo.

         Obviamente, mais de 150 anos depois, o termo homem-bom já havia perdido a acepção que carregava no começo do século XVIII e era lido pelo historiador literalmente, como se o governador visse nos paulistas homens de grande bondade, sem saber que o termo aplicava-se apenas àqueles homens que eram proprietários e donos de poder e influência na sociedade.

         A que vêm estas observações? É para dizer que o passado está sempre sujeito a várias interpretações e a explicação que se dá para determinados fatos condicionada pela construção ficcional da cultura de uma determinada época, o que torna a história nada mais que interpretação, ainda que nas notas de rodapé ou de fim o historiador relacione escrupulosamente os documentos de arquivo que consultou. Estas idéias foram tomadas por empréstimo de Wenche Ommundsen, autor de Metafictions? (Melbourne University Press, 1993), para quem "o passado e o presente são ideologicamente construídos de acordo com os interesses particulares de indivíduos ou de grupos".

 

                                                        II

 

De fato, aquele compilador do final do século XIX estava eivado de preconceitos e predisposições em relação às autoridades coloniais e disposto a fazer de qualquer bandoleiro do século XVIII um exemplo da altivez paulista contra o colonizador.
Como se tivesse sido possível construir o Brasil sem o colonizador. Mas não se pode esquecer que os norte-americanos também fizeram isso com seus heróis do Far West, mitificando-os no cinema e em revistas em quadrinhos. E que um historiador paulista do século XVIII, Pedro Taques de Almeida Pais Leme (1714-1777), mitificou os irmãos Lemes, homens violentos e acusados de muitos crimes nos cafundós de Cuiabá, colocando-os como vítimas das autoridades coloniais, o que Paulo Setúbal (1893-1937) procurou corrigir em romance já do século XX.

Como se sabe, a divinização ou a mitificação do desconhecido, com a atribuição a homens do passado de características sobrenaturais, divinas ou demoníacas, é algo natural na história dos povos. Não foi à toa que muitas famílias de São Paulo chamadas de quatrocentonas tentaram encontrar brasões onde não os havia, imaginando que descendiam de fidalgos, sem saber que os primeiros paulistas eram, na imensa maioria, homens rudes, que exercitavam ofícios mecânicos. E que, muitas vezes, foram ridicularizados pelos fidalgos que vinham de Portugal para exercer o mando em nome do rei. 

À custa de escravizar indígenas, semear a terra e buscar o ouro, alguns deles chegaram a potentados. Seriam homens-bons, ou seja, ricos proprietários, mas não fidalgos. Até porque as atividades que desempenhavam eram incompatíveis com a fidalguia. Basta ver que Bartolomeu Bueno da Silva, descobridor e guarda-mor das minas de Goiás, havia sido açougueiro e um Pais Leme, carpinteiro.

 

                                               III

 

Escreve-se isto a propósito do livro Um Poço sem Fundo: Novas reflexões sobre Literatura e História, da professora Maria de Fátima Marinho, do qual, aliás, retiramos as conclusões de Wenche Ommundsen. No ensaio "O Discurso da História e da Ficção", a investigadora faz uma retrospectiva, desde Camões que em Os Lusíadas (1572) limitou-se a enumerar os feitos dos monarcas lusos e de figuras heróicas, sem a preocupação de reconstituir ambientes ou mentalidades, até os dias de hoje, passando pelo século XVIII, quando se começa a sentir "o aparecimento da história social que se debruça sobre temas como as leis, a literatura, a moral ou a música".

Já no século XIX, o século de Alexandre Herculano, recorda a pesquisadora, há a preocupação em dar uma visão verdadeira dos fenômenos históricos e do sentir das classes sociais em jogo, mas as personagens envolvidas na trama são estruturalmente românticas, tal como as de Camilo Castelo Branco. Esta anacronia, diz Maria de Fátima, manter-se-á ao longo de todo o primeiro romantismo, "mesmo se, ingenuamente, os autores escrevem que um romance pode ensinar mais do que um livro de História, como Herculano num texto da revista O Panorama", de 1/8/1840.

Diz a autora que a grande mudança na forma de inserir a História dá-se a partir de Eça de Queirós, com o romance histórico A Ilustre Casa de Ramires. A partir daí, fica clara a impossibilidade de que o passado venha a ser de fato apreendido, "dado que ele só nos chega sob forma de texto". No século XX, de maneira paradoxal, segundo Maria de Fátima, a produção de romances históricos retoma alguns modelos anteriores aos do século XIX. "No romance contemporâneo, a evocação de tempos idos pode revestir-se de diversas formas, havendo a salientar a biografia, a alteração da pessoa narrativa, a modificação de perspectiva, a alteração pura e simples dos fenômenos, a anulação do tempo e a emergência do duplo", observa. E vai mais além, especialmente com José Saramago, que em História do Cerco de Lisboa e Evangelho Segundo Jesus Cristo, altera deliberadamente fatos aceitos como verídicos.

Em linhas gerais, a primeira parte do livro, além do excepcional ensaio do qual retiramos a idéias que vimos alinhando, reúne outros textos de igual brilho em que a investigadora aborda temas de caráter geral, como a reflexão sobre o gênero do romance histórico, que inspirou a abertura desta recensão, a ilusão da verdade ou a interferência dos dois discursos. Na segunda parte, reúnem-se alguns estudos sobre autores do século XIX que obedecem aos cânones tradicionais, enquanto na terceira parte são os autores do século XX que, de certa forma, subvertem o passado, colocando a nu a sua fragilidade. Já a quarta e a quinta partes são dedicadas a dois temas fulcrais na História da Literatura Portuguesa: Inês de Castro e o mito de D.Sebastião. De um modo geral, os estudos abrangem autores portugueses, mas há quatro exceções: Vitor Hugo, Paloma Dáz-Mas e os brasileiros Erico Veríssimo e Márcio Souza.

 

                                               IV

 

Maria de Fátima Marinho é doutora com uma tese sobre o Surrealismo em Portugal. É professora catedrática e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciou em Filologia Românica e leciona Literatura Portuguesa Contemporânea desde 1976. De sua atividade como investigadora, destacam-se obras como Herberto Hélder, a Obra e o Homem (Arcádia, 1982), O Surrealismo em Portugal (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987), A Poesia Portuguesa nos Meados do Século XX: Rupturas e continuidade (Caminho, 1989), O Romance Histórico em Portugal (Campo das Letras, 1999), História da Literatura Portuguesa: as Correntes Contemporâneas, v.7 (dir.em colaboração com Óscar Lopes, Alfa, 2002), José Marmelo e Silva, Não aceitei a ortodoxia (coordenação e prefácio, Campos das Letras, 2002) e Literatura e História – Actas do Colóquio Internacional (organização, 2 vols., Faculdade de Letras do Porto, 2004).

 

 

 

 

 

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Um Poço Sem Fundo: Novas Reflexões Sobre Literatura e História, de Maria de Fátima Marinho. Porto: Campos das Letras, 2005, 453 págs. E-mail: campo.letras@mail.telepac.pt. Site: www.campo-letras.pt.

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junho, 2007