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O poeta atual — devido aos alicerces que fundamentam a poesia de hoje — está quase sempre em profunda oscilação entre o caráter dionisíaco e o caráter apolíneo de sua arte. São raros os casos de convivência pacífica entre estes dois extremos. Penso o apolíneo como sendo a propensão a uma forma "enxuta" do poema, à moda cabralina, e vejo como dionisíaca o acento maior para o conteúdo. Para um bom projeto literário é necessário que estas duas forças, as de forma e conteúdo — apolíneo e dionisíaco —, estejam lado a lado em uma peça literária; e que elas participem em igualdade de força e tensão, proporcionando assim uma estética de completude na escrita de um autor.

 

O poeta vive na corda bamba. Se ele for excessivamente "forma", corre o risco de se perder sem conteúdo. Se for o oposto, a forma pode ficar prejudicada e o poema embarcar pelos caminhos de uma poesia tíbia, em que a estrutura não possui a tensão que deveria ter. Afinal, não são mais tempos de uma escrita grandiloqüente, em que o poeta se adula de metáforas e linguagem conotativa. Então, como equilibrar a forma e o conteúdo numa poética? Como manter em patamares aceitáveis os níveis de apolíneo e dionisíaco na arte de escrever versos?

 

Estas perguntas podem ser respondidas citando o exemplo do poeta Fernando Koproski, no livro Pétalas, pálpebras e pressas (Sesquicentenário, 2004), sua quarta incursão pelo mundo poético. Onde Fernando dosa muito bem o conteúdo e forma: incorporando o ensinamento de Cabral, o de não perfumar a flor, e o conteúdo lírico de Vinicius de Morais, o de falar de amor despudoradamente.

 

Posso partir do pressuposto de que a poesia de Koproski está alicerçada em duas temáticas bem definidas: de metalinguagem e lírico-amorosa. A primeira é uma ambição alcançada desde uma advertência — nas primeiras páginas do opúsculo — de que este apanhado de poemas não é de poesia e sim sobre o assunto. A segunda já fazia parte dos primeiros projetos, em livros anteriores, do autor. Mas há espaço também para o hibridismo temático, onde o poeta alça um vôo "azul" sobre estas duas vozes que fazem parte de seu repertório.

 

Convém refletir que tanto a metalinguagem quanto o amor já foram exaustivamente usados poeticamente. Aí que está a força de Koproski: utilizar, de maneira nova, temas recorrentes na literatura, sem cair no lugar comum. Para isto o autor, como nos diz Paulo Sandrini na orelha do livro, lança mão de "doses de oxímoros, metonímias, metáforas, sinestesias, sinédoques, aliterações, assonâncias, melopéias, fanopéias, logopéias e coisa e tal". E são doses exatas. Tudo de modo diferente, a serviço da boa poesia.

 

 

AZUL

 

Para Koproski azul é a cor do poema. Trata-se de um ensaio — que consta do livro — em que o autor elabora a noção de que esta tonalidade é a mais poética para a poesia.

 

Pétalas, pálpebras e pressas está dividido em três partes. A primeira delas (a minha maneira de estar sozinho) é composta de belos poemas e poemas em prosa. Podemos citar vários exemplos de como o poeta alcança o seu intuito, como nesta peça sem título: "um dia talvez/quando tinha 17/agora,/tarde demais(...)//noites por certo/quando tinha 27/até que escrevi(...)//hoje tenho tantas tardes(...)//tarde demais pra ser rimbaud/ou pra cometer o suicídio/um pouco cedo ainda/pra pensar em ser Vinicius".

 

A segunda parte do livro (o que é o poema?) reúne alguns ensaios que versam sobre o fazer poético com muita delicadeza e personalidade, à maneira de Koproski: com muita poesia.

 

A terceira e última seção têm como abertura um belo poema também sem título:

                  

                  desde que decidi viver

                  morrer tem sido a vida inteira

                  

                  lago a lago à espera de um amor

 

                  morrer esse mar que me lê

                  em páginas e mais páginas de areia

 

Há também um ensaio entremeado com a poesia de Koproski em que se mostra o seu virtuosismo ensaístico e poético. Tudo ao mesmo tempo: num só encadeamento. Juntando ensaio, prosa poética e poesia num trabalho de habilidade ímpar.

 

Assim como os Beatles têm um álbum branco que entrou para a história da música, quem sabe este não será o livro azul de Koproski a entrar pra história da nossa nova poesia brasileira?

 

 

RL - Fernando, por que a cor da poesia é a azul?

 

FK - Citando uma passagem que trata disto em meu último livro: "Porque o azul de um poema é como um sistema propulsor de vôo para os pássaros e borboletas". Assim penso a rara substância, cara seiva composta de matéria onírica, liberta e sugestionável que segue e infringe delicadamente as leis internas responsáveis pelo funcionamento de um poema. Azul é a cor de um poema por toda a amplitude sensorial que esta cor fere nas águas do olhar, caminhar de lagos que ela sugere ou mesmo signifique quando desavisados um céu no mar ela nos pisque e amplifique.

 

 

RL - Por que escreve?

 

FK - Muitos escribas já investigaram alguns de seus porquês e dos porquês de escrever. Sinto uma proximidade, aceitável identificação com os que o fazem por razões especificamente fisiológicas, feito fosse o poema realmente uma necessidade corpórea, uma dessas urgências da epiderme em identificar e esmiuçar o que a atrita ou a afaga. Mas não penso o poema somente como uma carência a ser sanada de uma estrutura física, posto que os exercícios da mente em geral exigem muito mais atenção e acompanhamento clínico de uma poética. Assim, penso que escrever poderia muito bem ser um suor da alma, algo imprescindivelmente necessário ao bom funcionamento deste estranho e frágil mecanismo feito de ossos e carne pulsante que volta e meia não se conforma em ser apenas o que é e, merecida ou imerecidamente, sonha ir além.

 

 

RL - O que é poesia de invenção?

 

FK - Não me vejo como defensor, muito menos procurador dessa tendência da poesia brasileira atual de empreender uma verdadeira cruzada de esvaziamento de significação nas possibilidades de terna ou tensa convivência entre o sentir e o pensar, em nome de uma pretensa procura por inovação de linguagem no que se propõe poesia; não importa o quanto este esvaziamento seja cuidadosamente maquiado por anúncios competentes de belas campanhas de self-marketing literário de certos "poetas", e principalmente assegurado por estes em conluios comumente realizados nos círculos da política literária tupiniquim. Pois não imagino como testemunhas do culto ao fragmentário ou da "velocidade" de percepção, nomeadamente os que insistem em cultivar insights poéticos como se estes fossem poemas, ou mesmo os que assumem uma postura de delírio em pretensos ornamentos e "rebuscamentos" feito fosse o poema uma simples arte decorativa, nomeadamente os que procuram disfarçar sua mera condição de obsessivos-compulsivos por dicionários, alheios à verdadeira força motriz da linguagem, tenham de fato algo a ver com a poesia de invenção. Tampouco sou partidário desse Rotary Club da terceira idade da literatura, composto em sua grande maioria por velhas carpideiras da linguagem, ou seja, distintas senhoras (algumas bem jovens, por sinal) que passam a vida a se lamuriar, cônscias que estão de que não há nada mais a fazer e a inventar, condicionadas, portanto, a apenas lamentar o fim das inovações e dos limites a serem transpostos do verso e pelo verso.

 

Neste cenário tão profuso a seriedades e equívocos da razão, posto que os da paixão ou são desculpados ou ignorados ou lamentados, a única coisa que percebo é que se há um caminho a pensar e a sentir uma nova forma poética — ou como queiram, poesia de invenção —, intuo que este não seja um caminho único, de uma via apenas. Seria talvez um caminho de jardins que se bifurcam, onde os procedimentos prosaicos não se sintam tão negligenciados ou assimilados tão simploriamente pelos cultores de versos, e de igual forma os discípulos dessa ciência que a tantos torna propícia uma música de idéias, não se proclamem tão narcísicos em relação às suas virtuosas demonstrações de egoísmo e, depreciativos, esqueçam do aspecto fundamental da arquitetura poética que é a capacidade comunicativa. Talvez assim os jardins, ainda que não anseiem por completude ou supremacia de seus procedimentos internos em relação aos que destes distam, ao menos percebam através de suas distinções de áreas de sombra as alturas que anseiam e a capacidade de claridade que sonhem e possam apreender dos ensinamentos daquela luz que se faz autêntica.

 

 

RL - Como anda a cena poética do Paraná? 

 

FK - Acho que vai bem. Encontro força e vontade aliadas a juventudes sensíveis. E quando falo em juventude, me refiro a obras em expansão que independem da idade cronológica de seus autores. Confirmo este olhar ao ver os poemas que Bárbara Lia comete. Esta que embora tenha sido uma poeta educada por Borges e Lezama Lima, já foi vista cabulando muitas aulas ao lado de Rimbaud e outros seres de alta periculosidade poética. Igualmente espero bons trabalhos dela e de Luiz Felipe Leprevost para o futuro, pela distinta poética cênica que este autor vem desenvolvendo. Además, se não encontro muita poesia em alguns poetas praticantes daqui, de forma alguma há razão para pânico ou melancolia. Basta me dirigir ao meu armário de primeiros socorros poéticos e abrir qualquer livro de contos da Luci Collin, pois ali é amplamente possível ao leitor encontrar poesia — com aquele componente ativo chamado autenticidade — em altas dosagens; administrada cuidadosamente e com muita mestria, encanto e beleza entre os fios narrativos. A quem interessar possa, estas narrativas poéticas da Luci, eu prescrevo sem hesitação.

 

 

RL - Como surgiu o tradutor Koproski?

 

FK - Acho que este estranho sujeito surgiu, ou melhor, foi gerado devido a um irreprimível processo de mitose de minha experiência como leitor de poesia. Pois depois de um certo tempo lendo e tendo descobertas notáveis e necessárias em poemas de língua inglesa, percebi a impossibilidade de ficar estupefato sozinho. Após encontros de ternura ou violência com a lírica do outro, sentia a impraticidade de descobrir algo precioso e manter isto apenas para mim, feito fosse apenas um egoísmo aceitável de leitor, ou então conversar sobre isto com ocasionais leitores do texto original. Senti a necessidade de dar um passo adiante, ou seja, traduzir como forma de dividir com outros as especificidades expressivas do original. Além disso, já que não era mais possível se conformar em guardar aquele texto somente para uso próprio, por que não pensar a atividade tradutória como uma possível parceria entre autor e tradutor? A música já está pronta, isso nós sabemos, entendemos ou intuímos. É tão somente uma questão de estar atento, com o senso e os sentidos em vigília, apto a deixar o outro falar, cantar ou calar através de você as suas letras.

 

 

RL - Sua poesia se encaminha cada vez mais para uma vertente lírico-amorosa. Como encara esta afirmação? Faz parte de seu projeto literário? 

 

FK - Se permitirmos tratar como projeto literário este pequeno diário de bordo de insistências deste fernando nos azuis, poderia inferir que, em termos de poética, talvez só o que eu queira ou intencione seja inspecionar e investigar as possibilidades do que possa ser humano em nós, ainda que certas circunstâncias assim não possam ser referendadas ou admitidas. Ao escrever, penso em auscultar interiores, escavar arduamente dentro de mim mesmo, não somente a fim de me compreender exclusivamente, tal qual um mero arqueólogo em busca dos mais belos egoísmos perdidos de si mesmo, mas, ao contrário, se isto me for compatível ou concedível, com a intenção inconteste de procurar veios e águas interiores, feixes de claridade e escuridão essenciais, que a si só não se bastem. Procuro estas águas e feixes que necessitem se comunicar, através de equilíbrios sensivelmente musicais entre as formas de sentir e pensar, com os feixes e as águas de outros. Pois não posso sequer imaginar apreender como poema um texto que ignore o aspecto primordial comunicativo que se faz necessário em toda e qualquer obra de arte. Para tanto, leio o poema que me (ou nos) escreve assim, como um sistema de vasos comunicantes entre eu e você, apto a inaugurar águas interiores que se reconheçam posto que contenham semelhança ou intimidade entre si, ou quando não, quem sabe, possa propiciar outros encontros, de águas negras e águas aclaradas em interessantes e estimulantes conflitos, que nos imaginem em confluências dignas de nota. Neste sentido, de promover através de uma biografia circular das águas uma inspeção no que seja irremediavelmente humano em nós, percebo a vertente lírica sustentada nas circunstâncias do amor como esta condição que aqui me conduz — entre os azuis do que melhor nos traduz.

 

 

RL - Como surgiu a Kafka — edições baratas?

 

FK - A Kafka surgiu da necessidade de viabilizar publicações de trabalhos de prosa ou de poesia a custos bem reduzidos. Ao lado de meu caro amigo Paulo Sandrini, escritor e designer gráfico, notávamos há tempos que havia uma barreira muitas vezes intransponível à divulgação de livros de novos autores, entre os quais nós nos incluíamos. A saber, o preço final de venda dos livros. Em termos práticos, verificávamos que era muito difícil um leitor apostar num livro de um autor estreante e desconhecido. O poder aquisitivo deste leitor, como nós bem sabemos, é posto à prova de diversas formas num país como o nosso. Assim sendo, imaginamos uma publicação que pudesse de forma extremamente acessível apresentar uma amostragem de um trabalho narrativo de um escritor, ou em termos de poesia, se não uma amostragem até mesmo um livro inteiro de um poeta. Depois de estabelecido o formato, que é o de um mini-pocket, 13x9 cm, o passo seguinte era o de, através de um projeto gráfico simples mas de bom gosto, viabilizar esta modesta empreitada. Desta maneira, produzimos em fins do ano passado "O capacete da imortalidade", uma narrativa do Paulo, "Como tornar-se azul em Curitiba", misto de prosa-poética e ensaio de minha autoria, e "O sorriso de Leonardo", estréia em livro da Bárbara Lia. Posso dizer que até o momento, a experiência tem sido bem estimulante, tanto que pretendemos procurar novas parcerias com outros autores para este ano.

 

 

 

 

*

 

aprendi a escrever com a dor que me ensinaram, aprendi a

escrever com a dor que eu causei. decidi que não quero mais

aprender a sentir o que não for amor.

 

decidi que não quero mais aprender com a dor o que aprendi

ou ensinei.

 

 

*

 

felicidade não existe como uma pedra, uma página, uma

pessoa. felicidade acontece como uma sede, um sentido, um

céu. as coisas que existem procuram por porquês — não

adianta perguntar, é a sua maneira de ser. para as coisas que

acontecem basta acontecer.

 

 

*

 

um dia talvez

quando tinha 17

agora,

tarde demais

pra ser rimbaud

tarde demais

pra escrever tudo

que senti

e depois sumir.

 

noites por certo

de quando tinha 27

até que escrevi

uma ou outra,

mas para minha

maior surpresa

eu não morri

com janis

com jimi

com jim.

 

hoje tenho tantas tardes

florescem florenças

dentro de minha cabeça

e mesmo tendo pétalas

diante de pálpebras

diante de pressas

eu me sinto tão pobre.

 

tarde demais pra ser rimbaud

ou pra cometer suicídio

um pouco cedo ainda

pra pensar ser vinicius.

 

 

*

 

para os que se ocupam de fazer análises literárias

 

 

I. nos seguintes versos:

 

se fosse em virtude que se vivesse

quando um vício se distraísse

 

se quando vênus viesse

fosse em versos que me visse

não minhas vertigens

                    o que ela vestisse

 

o nome dessa figura de linguagem

não é aliteração

o nome

dessa figura de linguagem

é vida

 

ou os amores

que eu não tive.

 

 

II. nos seguintes versos:

 

porque meus ouvidos têm sede

do que você diz,

meus olhos têm essa sede

de quando você sorri.

 

porque se tuas tardes

têm sede de saber

quem vai nos amanhecer,

 

minhas manhãs têm sede

de tudo que te entardecer.

 

o nome dessa figura de linguagem

não é sinestesia

o nome

dessa figura de linguagem

é Ingrid

 

ou o amor

que ainda me vive.

 

 

*

 

em lagoas onde só o que seja a gente ainda cisme, todo não

que cabe num poema é todo sim que nos ensine a cisnes.

 

 

(de Pétalas, pálpebras e pressas)

 

*

 

 

Fernando Koproski nasceu em Curitiba em 1973. Publicou os livros de poemas: Manual de ver nuvens (1999), O livro de sonhos (1999), Tudo que não sei sobre o amor (Travessa dos Editores, 2003), incluindo CD que apresenta leitura de poemas na voz do autor e temas musicais compostos por Luciano Romanelli, Como tornar-se azul em Curitiba (Kafka, 2004) e Pétalas, pálpebras e pressas, livro de pequenas imprudências sobre poesia que o autor está lançando pela coleção Sesquicentenário do Governo do Estado (Secretaria de Estado da Cultura/Imprensa Oficial do Paraná, 2004). Como tradutor, selecionou, organizou e traduziu Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser eu mesmo amém, antologia inédita de poemas de Charles Bukowski.

 

Informações e pedidos de livros: fktradutor@pop.com.br 

 

 

 

abril, 2005
 
 

Rodrigo de Souza Leão, 1965, Rio de Janeiro. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates.