Acaba
de ser relançada no mercado brasileiro uma biografia, não um livro, mas
um tour de force, que fez a cabeça de uma geração inteira dos comunistas
rebeldes que nunca aceitaram a truculência stalinista e sonhavam com uma
tirania operária esclarecida, sob o comando de um dândi ao mesmo tempo
sofisticado e implacável. É o conjunto de três calhamaços contando a
saga do revolucionário russo Lev Davidovitch Bronstein, vulgo Trotsky
(pseudônimo tomado de seu carcereiro), escrita por Isaac Deutscher e
publicada no Brasil pela Civilização Brasileira, num gesto de
independência digno de nota para sua época, pois seu tema era mais que
um proscrito tido como traidor, cujo nome era um anátema para quaisquer
revolucionários alinhados com o Comintern.
Orador
apagado dos registros fotográficos da Revolução de 1917 e polemista
eliminado à distância pela frieza calculista do camarada que virou
desafeto, o profeta de Deutscher (armado no primeiro volume, desarmado
no segundo e, finalmente, banido no terceiro) passou a significar depois
desse livro o sonho de uma miragem que poderia ter sido, mas terminou
não sendo: a utopia da generosidade solidária que se tornou brutalidade
estúpida sob o tacão das botas do georgiano. De certa forma, embora não
fosse belo nem charmoso como o argentino, e por isso sua efígie não
tenha sido usada em camisetas e bótons, o judeu russo de origem na
classe média alta, que se aliou aos mencheviques antes de se meter na
aventura do putsch
bolchevique que derrubou o social-democrata Kerensky, antecipou em meio
século o mito de Che
Guevara.
Frio,
bruto, temerário
- Como o instaurador do "foquismo" nos anos 60, que ajudou o advogado
cubano Fidel Castro a derrubar o sargentão Fulgencio Batista, o inimigo
público número um do "socialismo num só país" e defensor da "revolução
permanente" considerava a comiseração um vício pequeno-burguês. Na
guerra civil contra os saudosistas do czarismo apoiados pelas potências
ocidentais, foi um comissário-chefe implacável no comando do Exército
Vermelho, construindo uma lenda de disciplina numa poça rubra de sangue.
Assim como o Che nunca
hesitou em ordenar pessoalmente a execução de qualquer guerrilheiro que
tentasse escapar das rígidas diretrizes que ele
traçava.
O
intelectual habituado ao manejo das palavras, sendo autor de textos que
distam milhões de anos-luz das canhestras tentativas de redação de seu
inimigo georgiano (caso de seu tratado Literatura e revolução, por
exemplo) foi também, como Guevara, um gestor e um político inábil e
incapaz. Assim como este, não teve competência nem paciência para gerir
o Estado assaltado pela "vanguarda do proletariado", deixando o controle
da militância do Partido Comunista e da máquina estatal herdada dos
czares ser controlada pelo inimigo que, contrariando todas as suas
expectativas, logo o sufocaria politicamente e o estrangularia, chegando
a eliminá-lo fisicamente.
Expurgo
avant-la-lettre
- É interessante que a trilogia favorável de Deutscher seja ora
relançada no mercado editorial brasileiro juntamente com dois livros que
não trazem uma imagem tão hagiográfica do companheiro de Lenin nos idos
de 1917. Em seu livro Um cadáver
ao Sol, a ex-militante da luta armada brasileira Iza Salles
ressuscitou um episódio nada lisonjeiro para Trotsky. O livro narra a
forma como um dos representantes do então recém-fundado Partido
Comunista do Brasil, o ex-anarquista niteroiense Antônio Bernardo
Canellas, foi eliminado sem direito de defesa de seus quadros por haver
ousado discordar publicamente de um discurso do então ainda figurão do
PCUS Leon Trotsky no 4º Congresso da Internacional Comunista em 1922, em
Moscou. O brasileiro foi, então, um pioneiro dos expurgos, tática de que
Stalin abusaria sem dó contra os aliados daquele seu antigo camarada que
virou inimigo.
Outra
visão interessante (e também, é claro, oposta à divulgada por Deutscher)
é a do estadista britânico Winston Churchill no perfil Leon Trotsky, aliás Bronstein,
que consta de seu livro Grandes
homens do meu tempo, também recém-lançado. Comentando um artigo que
o revolucionário russo escreveu para o John o’London Weekly, este seu
contemporâneo traçou um perfil, não apenas dele, mas também da doutrina
marxista de se aproveitar das liberdades democráticas para, depois,
imolá-las, a que ele Trotsky sempre se submeteu. Segundo Churchill, este
"possuía, inatos, todos os atributos exigidos pela arte da destruição
cívica: o comando organizador de um Carnot, a fria e distante
inteligência de um Maquiavel, a oratória de massa de um Cleon, a
ferocidade de Jack, o estripador, e a dureza de Titus Oates. Nenhum
resquício de compaixão, nenhum sentido de solidariedade humana, nenhum
temor espiritual enfraqueceu sua elevada e infatigável capacidade de
ação. Qual um câncer, cresceu, nutriu-se, torturou, matou para
satisfazer sua natureza".
Seduz
pensar que Salles e Churchill não chegam propriamente a negar Deutscher.
Apenas o complementam, compondo uma figura menos santa, mas mais
verossímil.