*Explicação das
Árvores e de Outros Animais,
pág. 17; devido à limitação do espaço, referir-nos-emos doravante às obras
citadas através das seguintes siglas: UCM (Uma Cidade com Muralha), OX (Oxálida), CC (A Casa dos Ceifeiros), EAOA (Explicação das Árvores e de Outros
Animais), HSLMS (Homens que São
Como Lugares Mal Situados) e
DL (Dos Líquidos). As
edições utilizadas serão apresentadas na bibliografia final.
"Passageiro num degrau invisível sobre
a terra/nesse lugar das árvores com frutos e das árvores/no meio dos
incêndios" (EAOA, 15), Daniel Faria (1971/1999) concedeu-nos o
testemunho único de uma obra que incessantemente nos procura e conforta na
nossa reconhecida condição de seres expectantes e frágeis, amanhecendo
quotidianamente "Sem materiais
suficientes para a luz total" (EAOA, 19), irremediavelmente ausentes
em iniciativas de auto-conhecimento: "Homens muito voltados para um modo de
ver Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro/de si mesmo/Homens
tão impreparados tão desprevenidos/para se receber" (HSLMS,
13).
Dádiva generosa, ceifa fecunda de quem trabalhou
rigorosamente "a partir da
existência da luz/E de certos minerais/Mesmo se não mereço a matéria
luminosa Da terra sagrada donde o homem vem" (DL, 77), os seus versos
materializam-se diante dos nossos olhos como indício indelével de um
complexo itinerário poético, subtilmente adivinhado desde os seus livros
iniciais, publicados durante os primeiros anos da década de 90,
nomeadamente "Oxálida" (1992) e "A Casa dos Ceifeiros" (1993), e
cristalizado em definitivo na sua última obra, "Dos Líquidos" (1999/2000),
editada postumamente mas cuja organização, no essencial, lhe é devida. É
esta publicação justamente entendida como o corolário deste percurso, em
grande medida pela comunhão que com o leitor se propõe celebrar,
consagrada em definitivo nos oito poemas que constituem "Do Ciclo das Intempéries", na
verdade o sinal mais luminoso do desejo de "Que a mão escreva em si mesma esse
dever de fruto que cresce Esse sumo que a escrita bebe para saciar quem
lê" (DL, 27). Não nos iludamos, todavia, quanto ao primado
efectivamente concedido ao tema que obsessivamente tomará como núcleo
central de todo o desassossego, determinado em tomar para muitos poemas,
sobretudo em "Dos Líquidos", o que, conforme as palavras de Octavio Paz, é
definido como "Una careta que
oculta el vacío (…) el lugar de encuentro entre la poesia y el hombre"
(Paz, 1998): o "instrumento
difícil" da sua subjectividade, o trabalho obsidiante daquele que se
autodefine como "o húmus, o barro
nas margens/O homem que nunca compreendeu" (DL, 77). Itinerário
naturalmente desigual, aperfeiçoado de acordo com a progressão da
descoberta e, em simultâneo, com a pertinácia de quem entende construir
"O respirar de uma geração
perpétua/O certo trabalho de podador na árvore/O ciclone plantado e
benigno" (DL, 102), ainda assim percorrido, na sua essencialidade,
pela mesma força seminal que desde cedo atribuiu à palavra, um dos
arquétipos mais produtivos da sua poética — "Começa no verbo o que escrevo. A palavra/Que
deixo na pequena pedra branca/Do fermento. O pão que cresce ignorado
(…)//Começa nele a primeira fonte. Assim a pedra cresce/Com seu sangue
derramado. Lâmina que deixa/A sede em ambos os lábios. Começa/Assim
leveda/A meda de água. E o que escrevo é a fonte/Transformada" (DL,
77). Orientada em vários momentos, como observou António Guerreiro (2001)
para uma fenomenologia do acto poético, como se depreenderá dos versos
citados, a reflexão sobre a palavra (e a relação simbiótica que com o
poeta mantém) associa-se em si mesma a uma capacidade metafórica e
transmutadora, aparentemente
ilimitadas, geradoras desse "espanto" reclamado para a sua poesia por
António Guerreiro (2001) e Eduardo Prado Coelho (2003), ou, nas palavras
de Sophia de Mello Breyner Andresen, desses "versos que põem o
mistério a ressoar em redor
de nós, poemas que nos inquietam um pouco ou, como diria Sócrates, 'que
não nos deixam dormir'1
e afinal baseada na cuidadosa selecção dos signos
que constituirão a tessitura única da sua poesia. Verbo e interioridade,
combinação sublimada nessa "palavra
pessoa/Uma palavra pregada ao silêncio de dizer-se como nunca fora
ouvida/E nela dizer-se posso existir" (HSLMS, 76) da leitura
Heiddegeriana, fazem afinal parte desse mesmo trajecto, cujo testemunho
tentaremos perscrutar, seguindo de perto a sucessão das suas obras
publicadas.
"Primeiro a
voz" (CC, 23). Deste testemunho inicial fazem parte três obras, todas
datadas dos primeiros anos da década de 90 — "Uma Cidade com Muralha"
(1990), "Oxálida" (1992) e "A Casa dos Ceifeiros" (1993) —, formando o
primeiro de dois conjuntos delineados por José Ricardo Nunes (2002),
conjunto este constituído, na sua opinião, por "obras de menor fôlego e de menor
dimensão" (Nunes, 2002); preferimos entendê-las, no entanto, como as
primícias de uma voz que principiava a consolidar-se o bastante para
merecer o reconhecimento de um público um pouco mais
alargado2.
De entre os trabalhos apontados, não nos deteremos mais
do que por breves instantes em "Uma Cidade com Muralha", obra nascida no
contexto específico de um concurso literário, embora bastante interessante
pela minúcia organizativa com que nos foi deslumbrando posteriormente,
confirmada, por exemplo, nas opções paratextuais, tanto no que concerne
aos títulos, que oscilam cronologicamente entre o presente e o passado,
sobretudo este último submetido a diversas variações combinatórias, assim
como à selecção de excertos de autores que sobre o Porto escreveram
(Fernão Lopes, Arnaldo Gama, Eça, José Gomes Ferreira…), opções essas que,
entretecidas com os poemas, oferecem ao leitor uma promissora experiência,
resultante também em grande medida da tensão dramática gradativamente
organizada em redor do célebre episódio do Desastre da Ponte das Barcas, e
em cuja organização encontraremos já participantes temas ulteriormente
retomados, como no "Poema XI": "E então//Esquecidas/ Bandeiras/Que
caíam devagar//As mulheres//Era Outono/E desprendiam os cabelos//E
prendiam o olhar//No olhar de Deus" (UCM,
72).
"Oxálida" (1992), publicada sob um dos seus pseudónimos
(Cérjio Lage), uso este que, no entanto, por questões relacionadas com a
rapidez do processo de publicação não representou, na verdade, a vontade
do autor, marcará definitivamente o alvorecer de uma nova voz em busca de
uma poética singular. Este percurso não exclui, contudo, a presença
tutelar e quase arquetípica de outras vozes, devidamente interpretadas, de
que Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen e Cecília
Meireles serão, porventura, alguns dos mais fecundos exemplos. Trata-se,
assim, de um lirismo entendido enquanto continuidade, absorvido na
substância da palavra breve, iluminada, burilada em torno de claras
preocupações eufónicas e rítmicas, de que o poema "Aurora"
constitui um paradigma: "Uma
lágrima de luz inacabada/Bate contra o cais/ Sucumbe e jaz//Uma gaivota
alada inacabada/voa pelos olhos/Se desfaz" (OX, 10). A simbologia
aquática (a chuva, o rio, o mar) apresenta-se dominante, reinventada na
perspectiva da morte, leitmotiv
recorrente na sua poética, como se verifica em "Asas Denominadas" —
"Um quarto/ vazio//Sem/Nada/ Busco
Uma pomba/Inacabada//Triste/Assassinada/Junto ao rio" (OX, 9).
Destaque-se neste contexto, de entre os elementos citados, a presença do
mar e dos signos a ele ligados (a gaivota, as ondas, o cais),
característicos desta fase e de fraca ocorrência em livros posteriores. A
singularidade da sua voz é assumida no recurso directo aos temas
clássicos, de entre os quais os mitos de Ulisses e de Penélope, este
último objecto de sucessivas revisitações, como a que se assiste em
"Ítaca" — "O que dói/É não
poder apagar a tua ausência /E repetir dia após dia os mesmos gestos//O
que dói é o teu nome que ficou como mendigo/ descoberto em cada esquina
dos seus versos//o que dói/É tudo e mais aquilo que desteço/Ao tecer para
ti novos regressos" (OX, 13); não se trata, evidentemente, da única
referência a esta fonte: destaquemos a presença de exemplos lexemáticos
semanticamente conotados com este tema, constantes em títulos como "Naíade" (OX, 15) ou "Recado a Náuvio" (OX, 29), e de
outras formas, exemplos singulares da preocupação cedo depositada na
rigorosa selecção vocabular, como "Sono Díglifo" (OX, 26), ou mesmo
"Oxálida". Clássica poderemos
ainda considerar a inclusão, no final da obra, do seu primeiro metatexto,
"Arte Poética", onde a sugestão
sensual de uma comunhão metafórica entre a palavra e o silêncio,
simbolicamente desvendados na última estrofe, constituem uma das mais
poderosas imagens de "Oxálida", ainda que muito historicamente marcadas —
"A palavra despe-se/o silêncio
despe-se/Nus//Os sexos ardem//Os seios da palavra/Os músculos do
silêncio//O silêncio/E a palavra//O poeta e o poema" (OX,
30).
"A Casa dos Ceifeiros" (1993) surge neste itinerário
como a demanda de um compromisso entre a continuidade de certas linhas
temáticas da obra anterior e uma nova abordagem ou releitura de outras, em
ambos os casos submetidas a uma focalização mais perceptível do eu
poético, cujo resultado tenderá a materializar-se numa poesia de evidentes
contornos reflexivos, onde se destacam vários poemas, de entre os quais
seleccionaremos "Lugar", pela
importância de que se reveste se o confrontarmos com os desenvolvimentos
temáticos porsequentes: "Habito a
casa/Que me desabita//Passa ao longe a casa aonde mora/O meu olhar/E a
esperança//E doem-me as janelas abertas Das casas sem moradores E os
peitoris dentro dos corpos/ Este templo é do deus em que não creio"
(CC, 17). O corpo, a "coluna/Que
sustenta a pedra angular/Do dia//O corpo surgindo Do breve cinzel da
alegria" (CC, 48), apesar de assumido numa dimensão simbólica conotada
positivamente, sustenta directa ou indirectamente poemas em que a dor ("Separei os braços/E exilei o peito//
Doeu-me tanto/Que não sei chorá-lo" — CC, 13) e, sobretudo, a
violência de certas imagens, assomam inadvertidamente — "Das manhãs abri/Os pulsos do sol//E
agora escondo/Meus cutelos na sombra" (CC, 41) — ou em "Combate" — "Pelos golpes desferidos sei/O tamanho
profundo das espadas" (CC, 45) —, imagens cuja produtividade veremos
amplificada em vários poemas das obras seguintes. Um em particular — "O Menino" — apresenta-se
incontornável dentro de uma forma particular de pathos, irrepetível na forma assaz
violenta como a maternidade e a figura da mulher são perspectivadas: "O menino apunhalou sua mãe/Com uma
pedra no peito/A assassinou//Agora é julgado/Por trazer presos à
cintura/Os cabelos da sua mãe" (CC, 46). Apesar de múltiplas
referências ao arquétipo feminino nas suas obras, grande parte indicia a
mesma conformidade ao tema da ausência (onde cada mulher assume a voz de
Penélope) e do sofrimento ("Antes
da noite//Brunirás os montes//Bordarás a chuva/Tecerás o tempo//Com as
tuas lágrimas/Lavarás o vento" (CC, 15).
"Volteando sob a
luz" (CC, 19), a escrita do fogo tende agora a suceder "Por entre bilhas de água/levedando o
barro e o linho" (CC, 40), anunciando já "o fogo aceso que não arde" (CC,
42), as "Mãos incendiadas" (CC,
40) que levantaram as colheitas seguintes.
"Depois a
luz" (CC, 23). Cinco anos decorreram até à publicação dos dois livros
que concederam a Daniel Faria o reconhecimento público definitivo de um
"grito novo" (DL, 27) no panorama poético português: "Explicação
das Árvores e de Outros Animais" e "Homens que São Como Lugares Mal
Situados", publicados pela Fundação Manuel Leão (Porto). Na sequência do
incêndio final descrito no poema-epílogo de "A Casa dos Ceifeiros",
"Explicação das Árvores e de Outros Animais" começa por emergir-nos no
renascimento implicado pelo fogo, "destruidor da imperfeição,
necessariamente purificador, e abrindo a uma infância nova" (Vouga,
1998): "Depois das queimadas/As Chuvas/Fazem as plantas vir à
tona/Labaredas vegetais e vulcânicas /Verdes como o fogo/Rapidamente
descem das crateras concisas/E seiva/E derramam o perfume como lava"
(EAOA, 7). É neste princípio ígneo, dinâmico na lição de Heraclito, nesse
fogo que é "provisão e possessão/O degrau da vida — ao meio —/A bússola
que arde" (EAOA, 8) que recai agora a sua escolha elementar ("Estou
um pouco no interior do que arde/Apagando-me devagar e tendo sede" —
EAOA, 15; "Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta /Que
fez o povo atravessar enxuto o interior da água" — EAOA, 16), tão
importante como a água (o líquido) que, como vimos, ocupa desde os livros
anteriores grande destaque na sua poética. Mas o deslumbramento
(alumbramento?) total advém, na verdade, da admirável energia que empregou
na abertura desses "trilhos no fogo", na codificação de uma
linguagem que se foi revelando um idiolecto complexo e permanente através
da escolha e reinterpretação recorrente de um número exíguo de signos (a
árvore, a casa, a pedra), os quais, em "Explicação das Árvores e de Outros
Animais", surgirão motivados pela vontade de um exercício crítico de
compreensão — "Houvesse um sinal a conduzir-nos/E unicamente ao
movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores/A incomparável
paciência de procurar o alto/A verde bondade de permanecer/E orientar os
pássaros" (EAOA, 19). De entre a tríade sígnica nomeada, a casa ocupa
um dos esteios significativos de referência, derramando-se um pouco por
toda a obra numa constante relação imagética que procurará a reflexão
sobre o indivíduo — "Mesmo no interior do quarto/És o lado de fora da
casa/Os inúmeros degraus da casa. A mais antiga/ Criança/Subindo-os um a
um" (EAOA, 34), não deixando, contudo, de trilhar um caminho
sucessivamente direccionado para a autognose, em versos onde a casa se
confunde em definitivo com a sua própria subjectividade, como um espelho
fragmentado de si mesmo — "Não fui a casa que a si mesma se abrigou/Nem
a morada que nunca se acolheu/Mas o tempo a pedir que me deixasse"
(EAOA, 35); "Tenho um pequeno sonho de uma janela para abrir:/E que
paisagem não seria estar feliz!" (EAOA, 33) — assumindo conotações
dramáticas em "Dos Líquidos", onde "A casa abre fendas dos pés à
cabeça/E ergo-a como quem necessita de estancar o sangue" (DL, 120).
Neste sentido, ao mostrar-se em conformidade com a desconstrução do
sujeito, torna-se difícil situar a representação da casa na "ordem do
mais concreto, da presença plena, a primeira referência, aquela que quase
não carece de invocação porque está sempre lá e à qual, no fim da jornada,
podemos sempre regressar" (Moura, 2003). Casa que é, deste modo,
"morada de si mesma/árvore povoada" (EAOA, 32). Árvore que é
exemplo pela "incomparável paciência de procurar o alto/A verde bondade
de permanecer/E orientar os pássaros" (EAOA, 19). Juntaremos ainda a
pedra, "removida e/Redonda/Paisagem aberta. Lado aberto" (EAOA,
23), na verdade uma pedra humana, paradoxalmente "fechada pelo lado de
dentro" (EAOA, 25), mas sobretudo uma pedra de fogo, crística, tal
como a árvore um símbolo axial do mundo, matéria sagrada de um coração em
chamas, "um coração angular e redondo/Como a pedra que te abre/Do
interior do chão/Um coração solar/De granito/De carne /Curado da noite da
nascença (...) Peço um coração/Nuclear" (EAOA,
62).
E perante a cegueira benigna provocada por estas
labaredas, ocorre-nos questionar: que explicações, afinal? Como não deixar
de convocar o termo explicatio
etimologicamente relacionado com a 'acção de desdobrar, de desenrolar'?
Como não deixar de entender a presença do homem, "irmão dos ritmos invisíveis sobre a
terra/Familiar dos anjos que pousam sobre a vida" (EAOA, 49), ou do eu
poético ("Na sombra gero os olhos
cheios de água/Apago a casa cheia de janelas" — EAOA, 57), como núcleo
temático desse desdobrar progressivo em "Do Inexplicável" e,
verdadeiramente, em toda a obra? Com estas "explicações", não nos
depararemos então com "um valor
iniciático, revelador, quase profético" (Martelo, 1999)? Ou, de outro
modo, não será este, na verdade, "um livro de explicações nenhumas,
antes a floração fecunda das pequenas sementes de fogo, rebentando
concisamente tenras, na terra arada do terreno bom" (Vouga,
1998)?
Estas "sementes de fogo" acabarão por germinar
no fogo espiritual que nos conduz a "Homens Que São Como Lugares Mal
Situados", título que, conforme uma nota incluída na ficha técnica deste
livro, reproduz parte de uma frase da "Ropica Pnefma" (1532), da autoria
de João de Barros, cuja significação é, precisamente, "Mercadoria
Espiritual"; espiritualidade que veremos antecedida, num primeiro
instante, pelo exame prévio do homem na sua mais obstinada fragilidade —
"Examinemos um homem no
chão/Testemos a transformação do homem por terra/A sua natureza tão
diferente da lava/A sua maneira mineral/De adormecer" (HSLMS, 7) —,
numa linha meditativa que nos remete para os "seres olhados" de Ruy Belo,
que acolheu Deus como "espectador
desse homem/Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe/nos olhos o tempo
suave das árvores"3 e a que
o poema inicial de "Homens…" não parece alheio, se recordarmos a admiração
testemunhada por Daniel Faria pelo autor de "Homem de Palavra[s]", a par
de outros, como é o caso de Herberto Hélder, cuja presença é
reconhecidamente consensual; a este olhar sobre o homem, sem bússola nem
estrela que o acompanhe e oriente, sucedem-se, ainda no núcleo inicial de
poemas, uma série de variações paradigmáticas do título, em clara
enunciação e desenvolvimento temático da debilidade evocada desde os
primeiros versos: "Homens que são
danos irreparáveis/Homens que são sobreviventes vivos/Homens que são como
sítios desviados /Do lugar" (HSLMS, 12) ou "Homens que são como projectos de
casas/Em suas varandas inclinadas para o mundo/Homens nas varandas
voltadas para a velhice/Muito danificadas pelas intempéries (…) Homens tão
impreparados tão desprevenidos/Para se receber" (HSLMS,
13).
Por outro lado, a figura feminina, seguindo uma
progressão que, como vimos, tem o seu ponto de partida nos primeiros
livros, irá adquirir em particular nesta obra uma posição fundamental pela
diversidade de referências e, sobretudo, pelo contraste evidente e
generalizado no tratamento deste arquétipo, polarizado agora em torno de
múltiplas focalizações. No início, a exaltação da feminilidade parece
corresponder a uma releitura de antigos mitos associados à Terra-Mater, sendo constantemente
evocada a grandeza telúrica e frutífera da mulher numa visão cosmológica
de dimensão celebrativa: "As
mulheres aspiram para dentro/E geram continuamente. Transformam-se em
pomares/Elas arrumam a casa/Elas põem a mesa/Ao redor do coração"
(HSLMS, 10); fertilidade transbordante, amplamente declarada daquela que é
"como um navio mercante/Que chega
carregado de grão" (HSLMS, 48), maternidade fulgurante que nem por
isso exclui o profundo sofrimento, representado também no ciclo "Se fores pelo centro de ti mesmo"
pela interpretação de algumas figuras femininas vetero-testamentárias
(evidenciando-se, neste contexto, a utilização cada vez mais límpida e
recorrente do hipertexto bíblico, intensificado em "Dos Líquidos"),
colocando em evidência a viuvez em "Sarepta" (HSLMS, 43), o luto de
Raquel ("Ela come o chão como
planta que respira/E no fio do seu pranto desfaz os seus sentidos/Gerou o
que não vive o menos do que o nada/É mãe do que não vive e não quer ser
consolada" (HSLMS, 50), a aflição de Agar, "Sentada no odre vazio/Com os olhos
cheios de lágrimas//À distância de um tiro de arco/Para não ver o filho
morrer" (HSLMS, 40) ou, em nítido contraste, a esterilidade de Sara,
"o nome do deserto/É o ramo da
videira estéril/ É o nome à espera de ter filhos" (HSLMS, 39). O ciclo
"Para encontrar o golpe no
sono" coloca-nos, todavia, no centro da complexidade do tratamento da
figura feminina; assumindo um fraseio próximo das visões proféticas ou do
Livro da Revelação, o sujeito poético, ao longo dos seus treze poemas,
confere-lhe um tratamento simbólico poderoso, ultrapassando claramente o
contexto onírico sugerido e deixando entrever a sua posição de intensa
fragilidade, como nos versos "Ela
sorveu-me o sangue, curou-me a boca/Espetou-me o anzol na língua e
puxou-me/ As palavras" (HSLMS, 31) ou em "A mulher guardou-me no útero/E eu vi
quanta morte existe ao redor de quem nasce/Perguntei à mulher: porque
estás de luto?/Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias dos
holocaustos/Exactamente como nas manhãs depois dos terramotos/ Cadáveres e
cadáveres de peixes e de pássaros" (HSLMS, 34). Recordemos que a
questão das visões interiores do sujeito poético foi objecto, já no ciclo
anterior, de uma profunda introspecção ("Tornei os olhos muito impuros por
milhares de imagens/Pedras internas golpeando-me" — HSLMS, 24), numa
linha meditativa indispensável ao percurso capaz de acolher a demanda da
experiência mística. Consciente da sua inefabilidade ao nível da linguagem
racional, o eu poético promoverá a busca do verbo exacto, na certeza de
que, como observou José Augusto Seabra, "A linguagem do místico tende sempre
para a linguagem poética, que transgride o código da língua,
atravessando-a, a caminho de outra língua" (Seabra, 1994),
entendendo-se, assim, essa "subversão do seu campo semântico, em que o
poeta estabelece um jogo de constante reenvio das imagens poéticas que
utiliza, abrindo novos rumos" ( Cantinho, 2002); linguagem que, em
Daniel Faria, valoriza a essência da palavra nova, nascida do "solo negro deixado pelo fogo" já
que "tudo isto interessa para
retomarmos a pedra onde está escrita a palavra nova/A pedra onde corre o
sangue" (HSLMS, 59); uma palavra que se confunde com o verbo divino,
mas que não abdica, tal como o Verbo, da sua natureza mais humana e
material, como nos versos "Eu vim
para dentro e sentei-me como se fosse uma palavra/Cansada. Alguma coisa
trazida na palavra para dentro do poema — e havia uma força cega/No
poema:/Era um verbo de sangue para o silêncio arder" (HSLMS, 64). Na
certeza da sua corporicidade, a palavra tornar-se-á o inesgotável refúgio
onde, contrariando a perspectiva enunciada no título do livro, o eu
poético se considera bem situado, dado que "Só posso viver cabendo
nela/Habito-a/Como Jonas o grande peixe" (HSLMS, 76), evidência
definitivamente concretizada em "Dos Líquidos".
"Por fim as
mãos" (CC, 23). A morte, "planta filial e nómada/Feixe de lenha que
Isaac carrega na pergunta/Viagem que inaugura/A árvore nova" (DL, 66)
surpreendeu o poeta no momento em que terminava a revisão de "Dos
Liquídos" (publicada pela Fundação Manuel Leão em 2000), obra que lhe
concedeu o definitivo e merecido reconhecimento como "um dos grandes
nomes da poesia portuguesa do século XX" (Coelho, 2003). Remetendo os
seus problemas de edição para a leitura do posfácio de Vera Vouga,
debrucemos por momentos a nossa atenção na organização interna desta obra,
constituída por sete ciclos cujos títulos, sucedâneos paradigmáticos do
título global da obra e, tal como este último, analogicamente estruturados
à maneira de pequenos tratados clássicos, partilham de igual modo entre si
o mesmo sema líquido ("Das nascentes", "Do sangue", "Das
inúmeras águas"), de acordo com a memória genesíaca da criação, com
persistência recordada desde os poemas iniciais de "Explicação..."; a este
processo criativo associa-se agora a epifania da palavra, cuja revelação
luminosa advém da abertura do gesto humano — "Eles abrem a palavra/A
pequena giesta — essa luz//Abrem uma pinha na infância//Quando
despertam/quando abrem as mãos à pulsação/Dos livros, eles abrem/No favo o
sinal//A pequena nascente do mel" (DL, 13) — e do gesto calculado e
preciso do poeta enquanto intérprete privilegiado desse início: "Todo o
trabalho desampara/As primeiras luzes. E elas podem-se colher, podem
irradiar/A palavra/Como no princípio. Quando era de Deus ela cegava/Quando
era o espelho e ninguém se espelhava nela. Ou via" (DL, 29). A saudade
desse tempo primeiro da origem do verbo sagrado impele-o no caminho da sua
redescoberta ("Deixa-me conhecer a caligrafia da palavra/Onde farei a
casa. Afasta-me/O cabelo dos olhos com o dedo indicador" — DL, 60), ao
mesmo tempo que não deixa de rememorar a efectividade do silêncio de Deus,
procurando a "fome de calar-me. O silêncio. Único/Recado que repito
para que não se esqueça. Pedra/Que trago para sentar-me no banquete"
(DL, 91), embora as suas dificuldades sejam evidentes, sobretudo para
aquele que deseja que a mão "escreva como quem arruma a luz no quarto
antes de sair/Com a caligrafia demorada de uma planta em crescimento/Que
ela escreva no caule de cada rebento//O grito novo" (DL, 27). O seu
trabalho, efectivamente, é o da "escada no deserto para fixar/A
luz" (DL, 26), uma vez que "Há um comboio iluminado no meu cérebro
cheio de túneis e noite/Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes
como pirilampos transformados/Borboletas rápidas — há esta imagem
respirando" (DL, 82); notemos, neste contexto, a relação intrínseca e
aparentemente paradoxal entre a noite e a luz, e a eleição do primeiro
elemento como lugar privilegiado de encontro e reflexão, o momento por
excelência da comunhão mística, recordado gradativamente na interpretação
da "Noite Escura" de São João da Cruz, objecto de oito poemas no ciclo
"Das nascentes" — "O princípio da noite é pôr o pé no chão/É
pegar/No pão com bolor e comer/O bolor — sequioso" (DL, 28); "A
noite activa a noite — é um motor imenso/De lume. O arbusto a princípio é
a própria inclinação/Da cabeça/Queimada nos cabelos, consumida em
pensamentos" (DL, 30); "Entendo agora a mudez do pobre/E posso
tocar-lhe como quem toca a alma às escuras/Mesmo sem a tremenda noite com
que lhe toca a mão divina" (DL, 35); momento assimilado e desenvolvido
também em outros poemas, como no ciclo "Do inesgotável", onde a
ideia da noite se identifica claramente com o encontro com Deus
("Sol/Que quando és nocturno ando/Com a noite em minhas mãos para ter
luz" — DL, 52), a quem, na ansiedade da espera, vai dirigindo louvores
sucessivos: "Amo-te nesta ideia nocturna de luz nas mãos/E quero cair
em desuso/Fundir-me completamente./ Esperar o clarão da tua vinda, a
estrela, o teu anjo / Os focos celestes que a candeia humana não
iguala" (DL, 53).
A noite, a morte — "Existe sempre alguém que passa e
bate na noite/A zumbidora lâmpada azul para não adormecer/Na
morte//Soubesse eu estilhaçar a noite. Soubesse eu morrer/Iluminando"
(DL, 114) —, certeza inevitável e, apesar disso, paradoxalmente perseguida
("O que procurei: a claridade da morte" — DL, 117), em
conformidade, de certo modo, com o percurso já trilhado, ainda que de
forma um pouco diversa, por Paul Celan, "no sentido de uma descida mais
funda às raízes da existência e da linguagem, de um percurso suicida do
corpo e do verbo" (Barrento, 1996); daí que entendamos a progressiva
fragmentação do eu poético, na sequência da alegoria da casa e na sua
correspondência com o corpo ("Na minha casa sou um utensílio que se vai
quebrar" (DL, 108) e desenvolvida na poderosa imagem anteriormente
focalizada da casa "que abre fendas dos pés à cabeça" (DL, 120) ou
em "Quando a tua casa se torna numa cabana/E dentro dela só há a
claridade/Do teu corpo continuamente a ruir" (DL,
45).
Esta progressão, no entanto, tenderá em "Do ciclo
das intempéries" à reconciliação com a própria essência da palavra,
não fosse o poema, ainda que "a mais frágil das moradas", "o
lugar da unidade humana reencontrada" (Lourenço, 1987), feita agora à
luz da partilha íntima com o leitor de uma magnólia simbólica, "que
estende contra a minha escrita a tua sombra/E eu toco na sombra da
magnólia como se pegasse na tua mão" (DL, 139); na realidade,
encontraremos duas magnólias: a pronunciada, "do poema de Luiza Neto
Jorge/Que nunca veio/A minha casa" (DL, 140) e "a magnólia de
verdade a todo o redor — maior/E mais bonita do que a palavra" (DL,
140), a "que cresce como videira testamentária — mãe/Bíblica no eixo da
casa" (DL, 141). Mais do que envolver o leitor na descoberta desse
tesouro que é "a magnólia segredada entre nós dois/(...) o canto que
circula entre os lábios, a seiva/entre o nosso cérebro e o seu próprio
coração" (DL, 144), para o qual é exortado a procurar o seu aroma
"esmagando uma a uma as pequenas sílabas — foi esmagando-se,
acredita/Que aprendi o que sei hoje: há uma diferença/ Entre a magnólia
que nos cresce por fora/E aquela que regamos com o sangue" (DL, 141),
o poeta, no gesto manso da comunhão, promete mesmo conceder-lhe "o
poder para a arrancares deste poema/Ou até de toda a minha terra
interior/e de a transplantares noutros lugares — nos versos seguintes./Se
a guardares como um tesouro verás como brilha/Como acende a pulsação dos
pássaros" (DL, 143).
Terra interior abençoada pela promessa de partilha —
"Dou-te, como desde sempre, o poder/ De escreveres na pele da minha
mão/As promessas que te fiz" (DL, 146) —, a poesia de Daniel Faria,
"pedra que se abre no calor fechado das mãos" (DL, 105) continuará
a saber acolher "no caule de cada rebento/O grito novo" (DL, 27),
não estivesse ele "um pouco no interior do que arde/Apagando-me devagar
e tendo sede/Porque ando acima da fome a saciar quem vive", ansiando
dizer "tudo/O que podia ser dito/Sobre a luz" (EAOA, 15 e
55).
"E então posso
morrer
Se não for noite" (CC,
33)
Francisco Saraiva Fino é
licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos
Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1999, é
actualmente professor de Língua e Literatura Portuguesa. Nestes domínios
tem centrado os seus interesses principais sobretudo no caso específico da
poesia. Desde a sua constituição (Junho de 2001) é membro das Comissões de
Espólio e de Edição da obra de Daniel Faria, responsáveis pelo estudo e
divulgação da obra deste poeta. Tem artigos e ensaios publicados em
revistas de literatura portuguesas.
Publicações
Para una Teoría de la Literatura
Hispanoamericana,
de Roberto Fernández Retamar, in "Humanística e
Teologia", Faculdade de Teologia da Universidade
Católica Portuguesa (Porto), ano 18 - Janeiro/Abril de 1997, pág.
200.
Na Fábrica do Mito - Algumas notas sobre a estoria de D.
Afonso I, in Revista
da Faculdade de Letras, "Línguas e Literaturas", Porto, XVI, 1999, pp.
231-245.
Como se Acordasse a Mão que Semeia – Das Obras Poéticas de Daniel
Faria, in
Apeadeiro – revista de atitudes literária, dir. de Valter Hugo Mãe
e de Jorge Reis-Sá, nºs 4/5, Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão,
2004.
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