É corriqueiro falar de arte através de
metáfora. Dizer, por exemplo, que a obra do fulano é um cacho semiótico
de ampla significação e estímulo a todos os sentidos, que a experiência
multimídia de sicrano é ao mesmo tempo pasto para o olho e desafio
hiperbóreo para a hipófise adormecida. Uma forma sutil de decretar a
deficiência ou inutilidade dos sentidos ou de subministrar ao sujeito
uma fome que ele não tem e, mais grave, confiscar-lhe o dom de duvidar.
Dia desses um crítico-poeta congratulou-me por minha "poesia
cônica" e por conta disso me prometeu uma resenha num jornal. Ficamos
nisso: pendurados pela esdrúxula metáfora e sem resenha alguma.
Esse fato é narrado a propósito de um artigo de Vera Casa Nova,
doutora em Semiótica (SLMG nº
1282 – O que se passa aí? Notas de pesquisa sobre poéticas visuais).
O artigo, que faz uma apresentação das "invenções, fricções e
experimentalismos" que movem a "máquina do poema visual", suscitou-me
algumas indagações a respeito dos estímulos sensoriais criados pela arte
performática. Primeiro, há de fato modalidades de poesia (poesia visual,
vídeo-poesia, chip-poemas, infopoemas, etc.)?
Pelo sim pelo não, o ensaio é por demais otimista em relação ao
assunto quando afirma, p. ex., que "Espaços rituais e virtuais se
interligam, se integram multimidiaticamente e o lugar do poético
aprofunda-se pelo imaginário". Segundo, haveria de fato essa expansão
alvissareira do poético ou — por que não? — ao invés disso,
uma inibição das faculdades de chegar ao "lugar do poético"? E se é
inegável a excelência do novo meio, por que tal poética não se aliviou
ainda do compromisso serôdio de "captar o poético", pretensão já tão sem
sentido? Fato é que a
resenha é pródiga em sentenças do tipo: "os fluxos do contemporâneo
povoam a coisa lítero-visual". "Fusão do olho, da mão, da página, da
tela". "Se antes a letraset
resolvia, hoje os programas de computador fazem a festa da linguagem".
"A retórica da leitura que nos obrigava a ler em seqüência horizontal,
agora nos obriga a fazer outra leitura: a da óptica vertical". Ora, se o
olho já não somente vê, que sentido teria conceder-lhe também ouvir?
Aquele prodigioso jorro semiótico não resultaria já num embotamento da
percepção? E quem garante que tal polissemia otimizada é realmente
alcançada? Quem ou o que atesta a benfazeja
façanha?
Terceiro, por que privilegiar tanto as interfaces, as simbioses,
as junções híbridas, quando a poesia em sua forma mais banal não parece
ser "assimilada"? Por que tais peripécias resultariam necessariamente em
"ganho" para os sentidos? E em que medida? Pode parecer ceticismo, mas
parece que nada disso é levado em conta por abordagens da espécie.
Contrário disso, as performances experimentalistas são apresentadas
geralmente por um discurso darwinista, recheado de slogans que — é
possível afirmar — poetas e artistas inventores da velha guarda, se
vivo fossem, na certa poriam em questão. Coincidência ou não,
recentemente o crítico Alcir Pécora referiu que a produção atual, mesmo
a supostamente avant-garde, à
maneira concretista, é pensada como "tributo" e não como
invenção.
Ninguém desconfiaria, para ficar no plano fisiológico mesmo, que
tal veemência não constitui um idealismo mais naturalista que racional
ou semiótico. Apesar do tom descrente, claro está que não estamos aqui
para negar as conquistas semióticas, o incremento da produção de obras
cinéticas e multifacetadas, necessárias diante da verborragia tribunícia
crassante, nem para negar a necessidade de se olhar com olho novo,
quando, aí sim, se propõe um novo sujeito, ledor vivo e questionador, um
receptor crítico da própria tradição e não um consumidor mórbido da
cultura, incapaz de distinguir a arte criativa de um ruído estimulante e
palatável. Apenas se questiona se o primado sinestésico da arte
contemporânea (verbo-voco-visual) não já vem sendo usado pela crítica
literária como clichê que de tão recorrente parece ter ultrapassado o
objeto de escrutínio por conta de uma super-afetação, descambando para o
deslumbre e a sagração ou, na áspera visão de um poeta atual, para uma
fraude mesmo. Verdade seja dita, não é esse o caso do artigo da Sra.
Vera Casa Nova. No entanto, mesmo sem negar as conquistas das "variações
escriturais" e a excelência dos artistas elencados naquele artigo,
recusamo-nos a admitir tão categoricamente que todas as obras que a
resenhista faz referência (cinéticas, visuais, tácteis) realizem com
tanta precisão e proficiência a decantada festa dos sentidos, sem que se
permita nenhuma dúvida, ruído, equívoco, discordância ou pelo menos o
benefício da incompreensão. Afinal, a excelência dessa arte e poesia não
reclamaria nenhuma crítica ou uma visão menos ufanista? Estariam esses
modelos e experiências já submetidos a um consenso, quase dogmas de
invenção, após o que nenhum pensamento seria mais desejável ou
necessário? Pelo menos é a impressão que se tem.
Com efeito, da forma como expõe a crítica, a proposta para que se
abra uma possibilidade visual, auditiva ou táctil de um texto ou de uma
obra, não passa de uma operação mecanicista, eis que ignora, por
exemplo, que tal empresa utiliza-se também de elementos proscritos pela
vanguarda. A propósito, veja-se o testemunho de Edwin Torres, constante
do ensaio: "Eu ensino em meus workshops a necessidade dos sentidos, a
habilidade para despertá-los". Ora, se é a própria prospecção holística
dos sentidos que está em homenagem, como saber afinal que sentido ou
instância deste e da consciência está sendo estimulada? Além disso, não
seria essa "provocação" desde já um atestado de abandono da consciência
crítica e da adesão lúcida do sujeito a um projeto artístico? Uma
impostura? Por conta disso, amostragens do tipo parecem reduzir
experiências plásticas de considerável significado particular a uma
espécie de brique de arte estimulante.
O que se está a duvidar, talvez até em virtude do tom taxativo e
entusiasta das colocações do artigo, é do absurdo de se pretender que o
puro e simples advento de novos suportes, acoplados a novas
performances, signifique um apuro nas percepções sensitivas do sujeito
ou uma promessa de ganhos vitais, visuais e auditivos maximizados. É
claro que exigir-se prova disso resultaria em idêntico equívoco. Não se
trata disso.
A certa altura, a autora indica que as obras referidas são
"livros em que a leitura não é somente visual, mas também táctil". E,
ato contínuo, explica: é "no sentido em que o contato nos envolve, nos
tira do lugar". A não ser por força de expressão e metáfora se afirme
que tais obras cinéticas teriam de fato este efeito. Afinal, para ficar
somente nos efeitos, como distinguir afirmativamente o que foi acrescido
ao homem pelas obras polivalentes que os antigos e tradicionais suportes
não souberam, não ousaram, ou foram incapazes de mostrar ou antever? De
qualquer forma, saímos garantidos de que por conta de virtuoses e
virtualidades da arte contemporânea, que provocam a "indivisão dos
sentidos", "a visualidade sem limite se enriquece". Tudo muito bem,
desde que o sujeito não desconfie de que a "indivisão dos sentidos"
poderia muito bem, num cálculo mais chão, significar nenhum sentido.
Repita-se, que importa o enriquecimento da visualidade quando "o olhar
pode sentir, escutar, tocar"? Se uma proveitosa desierarquização dos
sentidos está em voga, o que deverá estar ocorrendo com a mente? Visto
assim o artigo parece dizer que não mais se precise da acuidade de um
leitor in concreto, um fabro imaginante de claudicante
e humano fruir, passível de equívocos, perecível e dado a
duvidar.
Houve um tempo em que o poder de a arte sugerir estava centrado
em suportes de modesta e limitada configuração (a folha em branco,
p.ex.). Apesar disso, o aguçar dos sentidos e a interface com as
faculdades mentais e sensoriais do sujeito, me parece, não foram assim
tão sacrificadas, a ver pela recorrência já centenária do paideuma, quando a própria
autora diz: "Signos de interfaces, design de interfaces campos de
interações redimensionando a poética e a retórica, mutantes a pelo menos
um século e meio".
Sim, o próprio fato de toda uma geração da cultura se sustentar
sobre uma tradição centenária de leituras e interpretações "limitadas"
de alguns poucos sentidos (o olho, as mãos, a mente) já recomenda
ponderar-se a eficácia múltipla das virtudes de uma expressão nova a que
se outorga a infalibilidade e a capacidade de abarcar todos os sentidos.
Não cremos ser esta a linha adotada pela articulista. Mas a visão do
artigo parece fazer coro com um projeto politicamente correto de
melhoria do homem através da percepção múltipla, dado a tragar os fluxos
das amostras sem perquirir sequer sobre o que a arte está lhe
oportunizando. Sem dúvida, até que se prove o contrário, um equivalente
estético da falácia ergonômico-burguesa da inteligência emocional;
aquele chiste de captar a arte pela mente e pelo coração e cantar com
todos os músculos.
Repita-se, mesmo correndo o risco de ceticismo e de estar
afrontando já um dogma, é até saudável que se retome e repense o
"espetáculo de formas originais" e se ponha na berlinda e sob o crivo de
sua própria consciência crítica a poesia e a arte contemporânea, que
passaram por um intenso debate na segunda metade do século passado. De
qualquer forma, convém duvidar-se de alguns consensos movidos pela
retórica e pela pirotecnia dos adágios mercadejantes sob o pretexto de
se buscar um ideal de pan-semiose.
Pelo tempo que a vanguarda experimentalista vem atuando, é
oportuno utilizar-se também dos instrumentos críticos dela mesma, sem
hipocrisia ou temor reverencial e não somente se vangloriar de
conquistas midiáticas e incrementos high tech, atitude própria de um
futurismo tardio e preconceituoso que, ao fim e ao cabo, nega à arte
contemporânea qualquer possibilidade de revogação ou ruptura, fechando
as portas, inclusive, às solitárias experiências e relativizando tudo ou
ignorando toda e qualquer contra-corrente
inventiva.
Com efeito, a fractalidade, a dispersão, interações, o fragmento,
disjunções, deslocamentos, e a decantada peripécia poética que "da
visualidade extrairia o háptico", já é quase uma palavra de ordem
recomendada por uma crítica deslumbrada com o surgimento de novos
suportes e elementos da mídia em geral. É visível esse vício sinestésico
da pós-modernidade que detecta na literatura corrente elementos como
"visualidade musical", "a letra sentida como não-letra" e a "visualidade
da palavra/verso". Ora, todo movimento artístico foi merecedor de uma
pausa para balanço, e coisas já tidas como prova e exemplo de excelência
estética têm-se ressentido de um novo olhar crítico, querendo ou não,
sob pena de se cair num consenso elitista e encomiástico. Convém saber
concretamente o que está por trás desse fácil arranjo metafórico que no
fundo veicula um discurso excessivamente prestativo e poeticamente
correto, que edulcora o impacto das autênticas conquistas da arte
contemporânea, de que são exemplos marcantes algumas obras e autores
citados por Vera Casa Nova.
A simples pertença a uma arte/poesia que em tese supra toda e
qualquer demanda dos sentidos não a livra da defasagem da língua, de
suas vicissitudes, artifícios e revogações. Daí parecer gratuito e no
mínimo duvidoso o empilhamento numa só instante dicções tão diversas e
distantes no tempo como Apolinaire e Pedro Xisto, a não ser por
didatismo ou simples amostragem.
Portanto: o que se renova? Criaram-se de fato efeitos inovadores?
Se a resposta a esta questão é positiva, mais razão se tem para certo
comedimento em face da superprodução sinestésica de estímulos e de tanta
conquista inquestionável e cumulativa. Desconfiamos dessa visão que
concebe o homem contemporâneo um privilegiado, fim de toda informação
cibernética, alvo de todos os valores concentrados num só fluxo
hiperbólico de referências e por uma pletora rica em provocações
verbo-voco-visuais. Ora, se há bem pouco tempo – quiçá quando a poesia e
a arte eram dirigidas a um reduzido número de sentidos, tarefa que, pelo
visto, ainda não terminou de desenvolver — havia a queixa de que o
homem comum era insensível e indiferente (para não dizer ingrato) a seus
apelos transcendentais, que dirá agora que se valem de todas as
ferramentas disponíveis e sem foco em nenhum ponto?
Resumindo, a problematização dos novos meios é necessária até em
homenagem ao projeto humano das novas obras que, ao que parece,
inspira-se numa das facetas da "comum poesia" que é criar "uma sintaxe
para várias leituras" (Ronald Augusto), algo que o poeta Edimilson de
Almeida Pereira resume tão bem num casulo de constelação: "Si
alguien/provoca um verbo, es lo que basta/para desgarrar los
sentidos".