A poesia não é tanto um fenômeno de comunicação. Isto já foi dito e jamais foi digerido pelos adeptos da "compreensão geral". Nela, geralmente a rede informacional otimizada é frustrada, retardada, adiada, suspensa ou colocada em um estágio menos de incompreensão que de intriga. Por isso a pecha de "hermética" para a obra de Luís Serguilha (aqui representada pelos livros Lorosa'e — Boca de Sândalo (2001), A Singradura do Capinador (2000), O Externo Tatuado da Visão (2002) e Hangares do Vendaval (2007), como de resto para procedimentos resistentes a apropriações bi-unívocas do pensamento formal, é no mínimo imprópria.

 

A literatura em geral, e a poesia em particular, está recheada de momentos diastólicos compostos de obras profusas que proporcionam um jogo discêntrico em seus leitores. Quando a contenção satura, nada como um oásis de exuberância, discrepante do bom-proceder de operosos poetas inimigos do desmazelo, que protegem seus projetos do ruído e da corrosão crítica, como se protege um bolo das moscas.

 

De cara, é natural associar-se a escritura de Serguilha, poeta nascido em Vila Nova de Famalicão, Portugal, a uma descendência residual de Neruda, Cezarini, Lezama Lima, incluindo aí alguma filiação futurista, notável no testemunho das metamorfoses, das cópulas cibernéticas, vegetais e acuosas, principalmente se nos ativermos somente à inusitada e ininterrupta construção de imagens e metáforas, pedra de toque de seus livros.

 

Mas, pelo menos na obra do autor português, observa-se que desde que a prática vertiginosa estabelece uma topo/grafia mais ou menos definida, será um equívoco tomá-la como produto especular ou simples resultado de alguma tradição moderna relevante. De fato, em seus livros se percebe algo próximo à algaravia palustre de Neruda, o irreal voluptuoso alardeando simbioses de reinos, nichos ambíguos por onde a sintaxe lambe os escolhos rizomáticos da língua, grávidos de saliências significantes, como se enfrentasse um mundo ainda por inventariar.

 

Essa sintaxe denuncia uma racionalidade mais em derruição que em derrisão. Não há brecha para humour ou cadenciamentos líricos. Não é bem verdade que nessa poesia predomine a oralidade ou que há uma estratégia de retorno redentor aos primórdios da voz, como quer o crítico e poeta E.M. de Melo e Castro. Na escrita volúvel de Serguilha pressente-se uma zona fronteiriça entre metáfora e imagem. A construção poética como um flagelo apofântico, vocabular, pantográfico, um flagoroso tateio nominativo, inaugurador: sôfrega instauração de um mundo à parte. Tampouco há aposta; dá-se o salto jorrante da escrita que se impõe em re-composição holográfica. Na verdade, escrita que se entreabre em luxúria fanopeica.

 

Mas, se nas páginas de Lorosa'e — Boca de Sândalo, A Singradura do Capinador, p. ex., o leitor é constantemente aliciado por um feérico frêmito vocabular, também nesses mesmos textos o leitor caminhará sobre um ladrilho de fissuras, sujeito a desvios significantes de rara densidade.

 

É certo que Serguilha, valendo-se reiteradamente de âncoras hipotáticas, parece não confiar muito nas soluções e nos efeitos plástico-sintéticos sem fundo da palavra em si. Parece não admitir que certas construções verbais de maior impacto, podem tranqüilamente prescindir de toda e qualquer adjetivação ou conforto predicativo. Tanto que, inteligentemente, a certa altura o poeta parece também desconfiar que a eficácia de sua operação não resulta tão só do atrito de frases fabulosas e fabuladas (que resultam, muitas vezes, em hiper-conexões sem tensão ou contundência), mas também da simples sonora fluidez das sílabas, dado desprezado (não desprezível) de sua estética in motum. Citem-se, para ilustrar, alguns desses recortes tomados ao léu de A Singradura do Capinador: "estação de ouro-orvalho" (p. 29), "e o madeiramento das falésias desfoca as labaredas dos cavalos" (p. 53), "estas ínsulas nos vídeos das libélulas" (p. 55), "Os insetos côncavos das águas" (p.107); e "onde a fundura da folha deságua na magnífica unha dum refluxo" (p. 81) e "contra as ranhuras da eira surda" (p.84), "mandíbulas das folhas" (p. 45) ou "e um bordado de água" (p. 86), destacados de O Externo Tatuado da Visão.

 

Já na obra Lorosa'e — Boca de Sândalo, igualmente tocada por um "signo desmesurado", também são as sutis imposições da síntese (vista aqui como módulo de invenção mais digno de nota), que tornam aquela obra em um mosaico lingüístico mais consistente, a nosso ver. Nela, as suntuosas cópulas verbais, não raro aferrolhadas por elos conjuntivos e por outros expedientes copulativos da boa-prosa-bem-sucedida, capitulam diante dessas bem resolvidas sínteses imagéticas. Vez por outra a algaravia quase tântrica das metáforas cede, frustrando a narcose do leitor. Este é atirado contra um firmamento inesperado, defronta-se com um encadeamento de construções, digamos, melhor construídas. Pelo acaso? Pela vigilância do autor? Fica a dúvida maliciosa.

 

Com efeito, mesmo os textos que parecem não atrair uma detenção mais minuciosa, concedem uma quota considerável de fruição. É que o leitor, em inadvertido transe fanopeico, defronta-se com a farpa traiçoeira de deliciosos enredos verbo-visuais tipo: "Essas molas de musgos luminescentes" (p. 41) ou "eletricidade dos dorsos sibilantes" (p.11), todos de Hangares do Vendaval. Ainda, na p. 58 de O Externo Tatuado da Visão temos:

 

 

ondas vegetais evocando o frio    o freio   o veio   a borda

 

 

Veja-se, como reforço, este belo assédio metonímico a um animal. Diz, especularmente, o verso:

 

 

onde as extensões silenciosas dos tigres esperam

 

 

Vê-se que é claro, iminente, pressentível, o alargamento do âmbito selvático tensionado pela silhueta felina: verbo e coisa parecem avançar um sobre o outro.

 

Destaco também o seguinte verso, com equivalente personalidade:

 

 

um ciclo de tigres é modelado compassivamente

 

 

Aí, se distingue o emparelhamento sintático, imagético e real. De um lado a sintaxe em recuo, frissante, tenso de um ciclo de tigres e de outro a distensão felina da coisa em si/gno, correspondida pelo alongamento sígnico modelado compassivamente. Note a andadura cinemática do léxico, os "mm" como dorsos se-moventes. O verso com/firma/figura os percalços da "ferocidade hipnotizadora". Verbo e bicho em espreita.

 

Permito-me, também como ilustração, tomar este outro:

 

 

os orvalhos da clepsidra estacam os vitrais circulares

 

 

Excentricidade semântica à parte, é sensível a crepitação gráfica, quando a luminosidade estilhaçada e estilhaçante de vitrais (triturados?) e de sua imagem poética é iconicamente reproduzida pelo (e no) estrépito dos vocábulos. Ousamos afirmar que, neste verso, as vogais atuam como um amálgama veludoso que ameniza o estridente atrito das consoantes.

 

Por último, reproduzo a seguinte inversão surpreendente de significantes e, por extensão, de reinos, propriedades e elementos, operada pela linguagem copiosa de Luis Serguilha: uma pedra a infiltrar-se nas ondas. Cópula tão instantânea quando acintosa, inconciliável, fruto de sua contorção sintagmática.

 

Infere-se, com esses escassos exemplos, que o complexo exercício de fruição de um texto não se tributa somente a um exótico catálogo de metáforas, mas a um sem-número de sugestões desencadeadas desde a materialidade da linguagem e dos signos, quando estes anunciam uma "comunicação" diferenciada, quando o "encontro musical da palavra" fala mais alto (e diz bem mais) que os vagos "presságios narrativos". Afinal, a certa altura, após o longo e ininterrupto "estratagema fabular" — novamente utilizo uma "palavra-síntese" (Jorge Luis Antônio aponta) cara ao poeta, nota-se que os versos começam a figurar como opalescentes "despojos da performance".

 

 

Estratagema da Fabulação

 

É possível afirmar que a escrita algorítmica de Serguilha, em que o leitor é conduzido por "indícios fecundos" que facilitam o devaneio, constitua um exercício de impossível re-visão, eis que disfarça ou assemelha dispensar qualquer gesto laborioso de premeditação ou escrutínio. O poeta, ocupado que está com infinitas incursões metamórficas no "dorso lúdico da natureza", não parece disposto a retroagir sobre seu holográfico percurso inventivo ou não leva em conta a advertência de Max Bense de que, mesmo nos processos de criação estética atuam leis que envolvem "trial and error". Apesar disso, verdade seja dita, o poeta em nenhum momento parece preocupado com a elegância do achado e não cai no pecado messiânico de alguma prescrição hipócrita.

 

Outro risco comum a escritas pendulares do tipo (tomo como exemplo afim a prosa de Carlos Emílio Correia Lima), em que a redundância e a rareza, até por princípio estocástico, se acumpliciam a todo instante, e que esse mesmo "concerto fulgurante" torna-se uma isca para o culto narcótico da reverência, a ponto de abdicarmos cedo da agudeza e da indiferença, enquanto nosso olho, em leitura panorâmica, passeia sobre um repertório que, por força daquela mesma incontinência verbal, passa a adquirir ares de univocidade.

 

Ocorre também que a virtuose do verbo aerobicamente conjugado, em gestação (e diluição) constante, torna a escrita sem relevo. Anseia-se por uma atitude mais fricativa da linguagem, pasto para o olho crítico. Uma piscosa evasão ocorre por entre os dedos do leitor que, inadvertido, aceita de bom grado a guimba numinosa do poeta já como uma peripécia do costume. Isca para que ele, aparentemente repleto de imagens novas e conciliado com o constructo verbal luxuriante, não sinta mais necessidade de revolver as leiras do texto, com vistas quem sabe a postar-se criticamente sobre o que lhe riscou a percepção. Cabe, portanto, a citada advertência de Bense.     

 

Isso tudo serve, sobretudo, para deduzir que o risco da operação poética/estética é dividido também com o leitor/inventor que, juntamente com o autor, compartilha as impossibilidades de um texto.

 

Portanto, Serguilha peca — o que é factível em escrita tão larga — talvez pela excessiva fidelidade a um procedimento de inversão ou pelo não abandono do terreno onde pousou sua exuberante maestria. O prodígio da escrita, captado pelo poeta-crítico Ronald Augusto como ousadia no embate com a zelosa programação estética contemporânea, para o bem ou para o mal, desvirtua, por exemplo, a possível referência ao povo Maubere que, apesar de figurar como eixo do projeto-livro Lorosa'e — Boca de Sândalo e de fixar-se na cimeira de alguns textos, não constitui propriamente um corpo estético, uma capilaridade tensionada, mesmo levando-se em conta a pouca ou nenhuma inclinação da poesia, ardilosa dama sem pretexto, para referir, descrever, nomear ou enunciar.

 

Com efeito, tomando como base o poema da p. 147, nota-se que a evocação — Timor, de certa forma alheia à personalidade protéica dos demais textos, emerge como uma apostrofação postiça, um decalque gráfico-semântico, infelizmente, notável. Fica a desconfiança de que há um círculo de giz mundano onde o discurso da poesia não ousa por a mão. Desvio estratégico? Eis um problema.

 

Mesmo considerando que todo poeta homenageia, evoca, ironiza e tripudia a seu modo e estilo, na verdade esses caputs poemáticos presentes em Lorosa'e, tal como "out doors", pairam acima da problemática do texto e do contexto, que parecem não lhes dizer respeito. Com isso adquirem uma sôfrega alusão quase indiferenciada; visual e sintaticamente isolados, são resgatáveis tão somente por sua solitária imagem acústica. Temo que tal fato sujeite o texto a uma injusta acusação de artificialidade retórica ou, pior, ao equívoco de que "qualquer nome ou palavra cabem ali", na ideologia de que escritas desse naipe costumam socorrer aos  mais abusivos jogos de alegoria. A rigor, seria uma baita injustiça com a poética de que nos ocupamos aqui. Enfim, preferimos ficar com a idéia de que alguns signos e significantes, desfigurados, simplesmente sacrificaram-se sob intrépido pisoteio do estilo.

 

Em L. S. opera-se também uma curiosa ubiqüidade que faz suspeitar-se que há um estro duplo operando na sua infinita página. Um ego sestroso, desdenhoso da pertinência, brincante, se encarrega de agredir intencionalmente o código gramatical. Outro, não menos operoso, devotado à exuberância, sabedor de que algum distúrbio estético deve-se operar no suceder algorítmico das imagens. Essa proeza coloca a obra do poeta português entre inteiriça e faltante, dando-lhe uma radicalidade impressionante, também em virtude do seu "trans-semantismo" (tão bem captado por E.M. de Melo e Castro). Por isso, pensar onde começa essa escrita pantográfica ou o porquê de sua ancoragem em um único suporte já é em si uma equação formidável. E adivinhar onde e quando é disparado o cronômetro dessa poli/grafia é outro desafio estimulante.

 

Sim, esse aparente desarranjo demonstra que não há uma intenção projetística, um livro para ou sobre, tampouco é um exercício de acúmulo, sua desconexão escorrega sempre para fora e além do verso, da página, do livro. Ali, no máximo se pleiteia uma perspectiva poiética onde só vale o vasto. Apesar disso, diante desse curso febril da escrita, a interferência mínima, discreta da "imagem com vocação concreta" de alguns versos, constituir-se-á em uma surpreendente contra-poética, conforme já referido. Nos deparamos também com um inusitados vestígios de pertinência ("manobras geométricas das rendilheiras", "as sirenes abismadas das apanhadoras dos afetos"...) os quais momentaneamente se reconciliam com a plausibilidade, ainda testando seus limites.

 

Por fim, a obra de Serguilha, na contramão de Barthes, desfolha a desconfiança, até certo ponto conciliadora de que o mundo físico inferível, submetido ao espelho hiperbólico da linguagem, parece finito, pelo menos até onde e enquanto sujeito à resposta sempre retardatária dos sentidos. Enquanto que a linguagem, soalho poroso das coisas, resulta infinita, principalmente a quem comparece a seus declínios e ressurreições.

 

dezembro, 2007

 

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Cândido Rolim é poeta e crítico, com publicações na web, em jornais e revistas do país. Publicou os livros Exemplos alados (1997), Pedra habitada (2002) e Fragma (2007), entre outros. Vive em Fortaleza.
 
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