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A propósito da recente atitude governamental e das necessárias reflexão e debate em torno da

elevada carga tributária imposta à sociedade brasileira, vale a pena — como sempre — ler

(e/ou reler) Machado de Assis.

 

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A crônica a seguir faz parte da série "Balas de Estalo", uma coluna diária publicada entre os anos de 1883 e 1886 na "Gazeta de Notícias" — então um dos jornais mais populares da época, com uma tiragem de 24 mil exemplares: vendido nas ruas a preço popular, contava com a participação de grande número de literatos, continha textos mais alegres e amenos e, por isso, conseguia atrair a atenção de um público maior.

A coluna atingia uma parte considerável da população, recorrendo a sátiras para debater as questões políticas e sociais; temas como a monarquia, a escravidão e a religião eram predominantes nas crônicas, cada uma assinada por um literato, sempre sob pseudônimo: Machado de Assis — quem mais escrevia — era o Lélio (a identificação precisa e consensual das crônicas de sua autoria efetiva devem-se a José Galante de Souza e a Raymundo Magalhães Júnior), Capistrano de Abreu era Mercutio, Ferreira Araújo (dono do jornal) era Lulu Sênior.

Vale enfatizar que se vivenciava à época um momento de efervescência política, um período extremamente importante na história brasileira do século XIX, em que os movimentos abolicionista e republicano ganhavam corpo e intensificavam suas ações. No tocante especificamente a Machado de Assis, o escritor já se encontrava em plena sedimentação do crucial processo de inflexão a que dera início no final da década de 1870, já publicara o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e a coletânea Papéis Avulsos (1882) — dois marcos grandiosos desse processo "revolucionário" — e inseria nas crônicas de "Balas de estalo" muito dos elementos da sátira menipéia e do "shandismo" que "abasteceram" a inflexão temática, estilística e de linguagem levada a cabo, e permearam substancialmente o romance de 1881. Esta série, a rigor, reveste-se de fundamental importância ainda não devidamente estudada (mas objeto de projeto de pesquisa que desenvolverei este ano) — na evolução literária machadiana: "Balas de estalo" ostenta em si uma importante conotação de transitoriedade nesse trajeto (similar e equivalente ao que se deu na esfera ficcional com Brás Cubas), colocando-se entre a  volubilidade e digressividade  das primeiras  séries de crônicas ("Histórias de 15 dias" e "Notas Semanais" — correspondentes em estilos, formas e temas aos primeiros romances  e aos contos iniciais) e a maior "consistência" e contundência das posteriores "Bons Dias!" e "A Semana" — estas, "semelhantes", respectivamente, aos romances Quincas Borba e Dom Casmurro). Possível é, sob diversos aspectos, a construção de uma equação especulativa/interpretativa sobre a correspondência do estilo e enfoque postos na crônica, com estilos, formas e temas usados por ele na ficção e no conjunto de sua obra — especulação/interpretação bem machadiana, diga-se.

 

 

 

 

16 de maio de 1885, Balas de Estalo

 

Ontem, ao voltar uma esquina, dei com os impostos inconstitucionais de Pernambuco1. Conheceram-me logo; eu é que, ou por falta de vista, ou porque realmente eles estejam mais gordos, não os conheci imediatamente. Conheci-os pela voz, vox clamantis in deserto2. Disseram-me que tinham chegado no último paquete. O mais velho acrescentou até que, já agora, hão de repetir com regularidade estas viagens à Corte.

— A gente, por mais inconstitucional que seja, concluiu ele, não há de morrer de aborrecimento na cela das probabilidades. Uma chegadinha à Corte, de quando em quando, não faz mal a ninguém, exceto...

— Exceto...?

— Isso agora é querer perscrutar os nossos pensamentos íntimos. Exceto o diabo que o carregue, está satisfeito? Não há coisa nenhuma que não possa fazer mal a alguém, seja quem for. Falei de um modo geral e abstrato. Você costuma dizer tudo o que pensa?

— Tudo, tudo, não; nem eu, nem o meu vizinho boticário, e mais é um falador das dúzias.

— Pois então!

— Em todo caso, demoram-se?

— Temos essa intenção. O pior é o calor, mas felizmente começa a chover, e se a chuva pega, junho aí vem com o inverno, e ficamos perfeitamente. Está admirado? É para ver que já conhecemos o Rio de Janeiro. Contamos estar aqui uns três meses, não pode ser que vamos a quatro ou cinco. Já fomos à Câmara dos Deputados.

— Assistiram à recepção do Saraiva3, naturalmente?

— Não, fomos depois, no dia 13, uma sessão dos diabos. Ainda assim, o pior para nós não foi propriamente a sessão, mas o demônio do José Mariano4, que, apenas nos viu na tribuna dos diplomatas, logo nos denunciou à Câmara e ao Governo. Não pode calcular o medo com que ficamos. Eu, felizmente, estava ao pé de duas senhoras que falavam de chapéus, voltei-me para elas, como quem dizia alguma coisa, e dissimulei sem afetação; mas os meus pobres irmãos é que não sabiam onde pôr a cara. Hoje de manhã, queriam voltar para Pernambuco; mas eu disse-lhes que era tolice.

— São todos inconstitucionais?

— Todos.

— Vamos aqui para a calçada. E agora, que tencionam fazer?

— Agora temos de ir ao imperador, mas confesso-lhe, meu amigo receamos perder o tempo. Você conhece a velha máxima que diz que a história não se repete?

— Creio que sim.

— Ora bem, é o nosso caso. Receamos que o imperador, não dar conosco, fique aborrecido de ver as mesmas caras, e, por outro lado, como a história não se repete... Você, se fosse imperador, o que é que faria?

— Eu, se fosse imperador? Isso agora é mais complicado. Eu, se fosse imperador, a primeira coisa que faria era ser o primeiro cético do meu tempo. Quanto ao caso de que se trata, faria uma coisa singular, mas útil: suprimiria os adjetivos.

— Os adjetivos?

— Vocês não calculam como os adjetivos corrompem tudo, ou quase tudo; e quando não corrompem, aborrecem a gente, pela repetição que fazemos da mais ínfima galanteria. Adjetivo que nos agrada está na boca do mundo.

— Mas que temos nós outros com isso?

— Tudo. Vocês como simples impostos são excelentes, gorduchos e corados, cheios de vida e futuro. O que os corrompe e faz definhar é o epíteto de inconstitucionais. Eu, abolindo por um decreto todos os adjetivos do Estado, resolvia de golpe essa velha questão, e cumpria esta máxima, que é tudo o que tenho colhido da história e da política, e que aí dou por dois vinténs a todos os que governam este mundo: Os adjetivos passam, e os substantivos ficam.

 

 

Nota do autor: Esta e muitas outras crônicas de Machado de Assis integram a recém-publicada coletânea Machado de Assis: O Olhar Oblíquo do Acionista, que organizei junto com o economista Gustavo Franco (Rio de Janeiro: Rio Bravo/Editora Reler, 2007) e também fará parte da seleta Machado de Assis e a Política, que preparo para lançamento em maio/2008 (Rio de Janeiro: Odisséia Editorial/Lexikon Editora Digital). O título da crônica foi criado especificamente para as coletâneas, não  existe no escrito original de Machado de Assis.

 

 

 

Notas

 

 

 

dezembro, 2007

 
 
 
 

Mauro Rosso. Pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor, autor de São Paulo 450 anos: a cidade literária; Cinco minutos e a viuvinha, de José de Alencar (edição comentada); Os "contos argelinos": Lima Barreto, a política, o patrimonialismo, a literatura militante; Machado de Assis e as finanças: o olhar oblíquo do acionista; Queda que as mulheres têm para os tolos: Machado de Assis, o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária. Escreve o blogue Caixa de Pandora.