©regina lustosa
 
 
 
 
 
 

É bastante acertada a analogia sugerida por Ivan Junqueira1 entre a poética de Leonardo Fróes e a imagem do carvalho heideggeriano, "daquela árvore que permanece idêntica a si mesma no transcurso invisível de sua mutabilidade2": de fato, a obra do poeta de Petrópolis se renova "na repetição, no aprofundamento de seus temas e problemas"3. Em seu mais recente livro, Chinês com sono, publicado no final de 2005, encontram-se as principais questões recorrentes ao longo de sua poesia — desde a crítica ao ambiente urbano (p. e., "Compromissos na cidade", p. 91), até a devoção à poesia e à sabedoria chinesas (cf. "Sobre um tema de Confúcio", p. 51, e as "derivações" de Lu-Yu, Ma Chih-Yuan, Wang-Wei e Li P'o, pp. 59-65), passando pela exaltação das experiências simples do dia-a-dia (p. e., "Branqueamentos", p. 69, e "Retrato de ermitão no deserto", p. 101) e pelo exercício de transposição verbal de pictóricas cenas do cotidiano (p. e., "Leitora", p. 25, e "A Última Romântica", p. 67) e paisagens da serra (p. e., "Olhar de vaca", p. 15), com exímia atenção à passagem do tempo (p. e., "Chinês com sono", p. 39) e às variações do clima (p. e., "Dançando na chuva", p. 49). Aliás, talvez seja possível compreender a insistência característica da obra de Fróes, a partir de tal atenção direcionada ao que é mutável: a mais elementar das questões que permeiam sua poética é a consciência de que tudo o que existe está em contínua transformação — consciência cuja conseqüência imediata é a negação de qualquer acabamento, qualquer formatação, qualquer definição que, ingenuamente tirânica, disponha-se a dar por encerrados processos fadados a uma infinidade de desdobramentos. Como as coisas da vida, as da poesia são inesgotáveis.

 

Por isso, é aguda, em muitos poemas de Fróes, a relativização da razão, e também do sentido consagrado por ela, a visão; ambas ofereceriam meios formadores de um paradigma limitado para a relação do homem com o mundo. As formas que diferenciam e limitam a percepção das coisas seriam ilusões4. Daí o encantamento pela fluidez e pela potência de ambigüidade da água ("Ao ler no mundo flutuante", p. 81; "O rosto da água", p. 95), a confusão entre imagem real e reflexo ("Piso no céu, / pisando em poças", versos de "Sombra e cão", p. 89), e também o título do livro e de um dos poemas que o compõem, "Chinês com sono" (p. 39): a figura de um homem cujos olhos estão quase fechados não apenas graças aos traços fisionômicos de sua etnia, mas também por estar ele com sono. A este homem em vias de cessar seu estado de vigília, é comparado "um pintor hipotético" — um poeta dedicado à tarefa de pintar com palavras:

 

nessa hora crepuscular avançada

que injeta um misto

de langor sensual e misticismo e cansaço,

captados porém por um pintor hipotético, antigo, que,

apertando bem os olhos, como um chinês com sono,

 

vê que a noite chegando sobre os morros

são apenas rajadas, pinceladas de luz.

 

Enfraquecendo a visão que guia e é guiada pela razão, o poeta / pintor hipotético pode ver que a noite "são apenas rajadas, pinceladas de luz" — ver que as coisas não se solam em formatos limitados e opostos, mas que se continuam umas nas outras. Por outro lado, o advérbio "apenas" parece revelar que, na base de tal concidentia oppositorum, há um processo de redução. Outro texto, "Jogos de luz" (p. 97), que pode ser lido como uma espécie de poema cosmogônico, deixa claro que tudo que existe se reduz à luz:

 

 

Partículas elementares de fogo

num jogo de assimetrias

em contínua circulação no vazio

criam a matéria de tudo

 

— de todas as sensações, todos os pensamentos,

concreções e vapores, quando executam sua dança,

que a rigor é um derramar de centelhas,

com as curvas primordiais. Se não se tocam,

 

não se sabe jamais como elas chegam,

com o puro ritmo, a constituir tantas coisas.

Apenas se constata que as formas

resultam das combinações que a luz faz;

 

que a casa é feita de fagulhas, como o vidro,

a árvore, as pessoas que eu vejo, os caminhões

e até mesmo seu barulho; que vida e arte e

o que mais me rodeia são explosões dessa massa

 

de signos, de sentimentos em disparada, de cisma

e gozo, dessa realidade anterior que se estende

por todos os redutos, com sua música

feita de atritos circunstanciais de passagem.

 

 

Nada existe a não ser a luz que, "num jogo de assimetrias", em combinações aleatórias, circunstanciais, cria tudo o que existe — inclusive os pensamentos. Não vemos as coisas, mas a luz que emana delas: no universo imanente da poética de Leonardo Fróes, não parece haver, portanto, qualquer possibilidade de transcendência, a não ser aquela que, como na filosofia zen, leva ao vazio em que circulam as "partículas elementares de fogo". Em "Transição" (p. 83), tal idéia é explícita:

 

 

(…) À mente vaga

cabe atravessar uma selva

de símbolos em dissolução contínua

antes de se tornar — sem amarras —

vaga, vazia e espontânea.

 

 

Trata-se de um vazio concebido a partir da constatação de que tudo o que existe pode ser qualquer coisa — tudo o que vemos são "símbolos em dissolução contínua" surgidos com as casuais combinações de luz. Em outras palavras, nada e tudo se equivalem. Tais idéias também ocorrem na poesia de Fróes através de pares mais concretos, como silêncio e som ("o silêncio aglutina as criaturas / e os menores ruídos", versos de "Olhar de vaca", p. 15) ou a ausência e a "aparência de figuras", como no poema "Branqueamentos" (p. 69):

 

 

Pintava pois com decisão,

branco no branco, e depois

seus olhos se tornavam mais limpos

na contemplação do trabalho.

Havia uma aparência de figuras

na brancura com texturas e pátinas

que só a concentração do pintor, malgrado

tanta tinta tão igual, percebia.

 

 

O que racionalmente dispomos em oposição é o mesmo. Por isso, tudo é possível, "tudo é tudo"5 em "Mão desfolhada" (p. 117),

 

 

A mão que pousa sobre a mesa,

parando de trabalhar um momento,

ora lembra uma grande folha caída,

ora, ao se mover, uma aranha.

 

                  

De maneira semelhante, tanto o "maluco" quanto o sujeito lírico do poema "Pedra doida" (p. 37) vão além da visão de uma pedra como pedra, vendo-a como "orientação ao passante", "ente espectral", "corpanzil agachado" ou "galinhona gorducha":

 

 

Abraçado no pescoço da pedra

que se aninha numa curva da estrada,

e alisando a aspereza do granito

como uma superfície emplumada,

o maluco dizia que essa pedra

— bem assentada com seu pescoço pontudo,

que parecia uma orientação ao passante,

enquanto o pedregulho em si parecia

um ente espectral ou um corpanzil agachado —

era para ele uma galinhona gorducha

que o aquecia do frio da loucura

sob um sol escaldante.

 

 

A percepção do devir extático pode alcançar tamanha radicalidade que, por vezes,  torna-se impossível fixar com nomes o que é vislumbrado (cf., p. e., "A Inalcançável", p. 99).

 

Contra as mazelas e as fronteiras nomeadas do mundo individualizado, a poesia de Leonardo Fróes se deixa atravessar pelo continuum que é a própria vida, propondo que o homem, como é dito em "Sobre um tema de Confúcio" (p. 51),

 

 

(…) se oriente

para ouvir a canção (…)

além de sua própria pessoa.

 

 

Nem mesmo o ser humano estaria seguro numa forma exclusiva. É deixada em evidência, com isso, a completa insignificância do homem enquanto indivíduo. Entretanto, insignificância, aqui, é sinônimo de liberdade — uma "insignificância perfeita"6. O poema "Despovoação da pessoa" (p. 33) é explícito quanto a isso:

 

 

Tudo o que havia contribuído

para forjar, no tempo, uma pessoa,

tentando dar coerência

à sua instabilidade crônica,

 

tudo que, medido e marcado,

era um acréscimo de regulação

para o funcionamento ordinário

— nome, renome, cadastro etc. —

 

foi de repente estilhaçado

e, como cacos de vento

no caminho incerto e novo,

nada do que fazia persiste

 

na sensação de liberdade

que esta pessoa de perfil nulo conquista,

ou melhor, conhece, atravessada

por lufadas de pó.

 

 

A noção de subjetividade encarcerada num "eu" é posta em xeque. Conforme assinalou Alberto Pucheu numa resenha para o volume Vertigens — Obra Reunida (1968-1998), Fróes é o poeta que, "lançado em busca de si mesmo, encontra somente a perdição e o constante devir", condição que impossibilitaria "a dicotomia entre mundo exterior e mundo interior" e, com isso, acabaria dissolvendo "a subjetividade no comunitário ou, mais freqüentemente, na natureza"7.

 

De fato, na poética de Leonardo Fróes, é, sobretudo através da comunhão com o mundo natural, com sua incessante continuidade, que são proporcionados, tomando as palavras de José Thomaz Brum, "a liberdade e a ausência de eu", o "corpo a corpo com a realidade metafísica do homem: parcialidade e perplexidade"8. O que funcionaria, ainda segundo Brum, como um "remédio contemplativo e sublime": há, na poesia de Fróes, de "um forte desejo — que podemos chamar de 'humanista' — de que tal universo possa auxiliar um homem faminto de harmonia ou diálogo"9. No poema "Amor no mato" (p. 41), p. e., afirma-se que o prazer sexual

 

 

(…) só se tornava

mais forte e se completava

 

quando, em vez de guardado

como um valor qualquer mofado,

 

era dado no escuro pelo pênis,

em comunhão com o gozo das espécies.

 

 

Em "Desencorpando" (p. 21), fala-se da entrega a uma "consciência regeneradora do todo":

 

 

Sentado atento como um totem,

um índio ou um animal que espreita

a dança de movimentos da mata,

pela própria concentração diluído

em tranqüilo despetalar dos instintos,

não perguntando coisa alguma e se dando

à consciência regeneradora do todo.

Não abrigando sequer um sentimento

no iodo de decomposição que o circunda.

Testemunhando o nascimento das folhas

numa voracidade exaltada.

 

 

É com "voracidade exaltada" que a natureza se perpetua. De acordo com a poética de Fróes, o mundo natural, além de não ser amoenus — sua força pode invadir e desfigurar construções humanas, como nos poemas "A um ex-hotel" (p. 43) e "Para o muro de um solar" (p. 85) —, não é sequer mero locus: ele é autônomo. No poema "Dançando na chuva" (p. 49), é narrada a ação de uma tempestade, e em "Terra Brava"10 (p. 23), a ação de um furacão; em ambos, o elemento humano aparece de maneira secundária e passiva, sofrendo as ações da natureza ou simplesmente contemplando-as. Os fenômenos naturais, assim autônomos, incorporam atributos situados além da compreensão racional, reorganizando e relativizando a vida dos insignificantes homens, como no poema "Catando coisas" (p. 47):

 

 

quando um golpe de vento do destino

mistura as folhas marcadas

e perdidos momentos se rejuntam

na pilha de documentos ao léu,

uma neutralidade nova o impulsiona

a olhar de fora e de longe o seu passado

(como um dessemelhante que, assim,

merece sua isenção e respeito)

 

 

Atingindo tal neutralidade, o poeta se torna testemunha da "nudez de coisas que se entregam / à embriaguez da própria criação"11: o ingresso no devir da natureza se dá sem questionamentos12. A ela é dirigido um respeito em que, de acordo com José Thomaz Brum, "há certo misticismo (…) e deslumbramento"13 — e não raras vezes, temor. Talvez por isso Carlos Lima, em seu prefácio para Chinês com sono, se refira à potência curativo-libertadora do universo natural como um "phármakon pelo espanto"14.

 

A articulação, aparentemente, contraditória entre dominação e liberdade é colocada de maneira explícita no poema "Proximidade" (p. 53):

 

 

É madrugada e os braços da neblina,

com seus longos fiapos, me contornam.

Sinto os toques de carícia quando

a neblina se solidifica em meus ombros.

Ela é o real que me estreita em seus domínios

e o real que liberta.

 

 

Experimentar desse real que domina e liberta significa, mais uma vez retomando as palavras de Alberto Pucheu, se aventurar "em uma ambiência de 'desrespeito aos limites'", em uma experiência de "despersonalização extática", a partir da qual se contesta a noção de alteridade e se fundem os reinos animal, vegetal, mineral e até das máquinas15. Trata-se do homem participando do "tudo é tudo". É o que é narrado, p. e., no poema "O Observador Observado" (p. 29):

 

 

Quando eu me largo, porque achei

no animal que observo atentamente

um objeto mais interessante de estudo

do que eu e minhas mazelas ou

imoderadas alegrias;

 

e largando de lado, no processo,

todo e qualquer vestígio de quem sou,

lembranças, compromissos ou datas

ou dores que ainda ficam doendo;

 

quando, hirto, parado, concentrado,

para não assustá-lo, com o animal me confundo,

já sem saber a qual dos dois

pertence a consciência de mim —

 

— qualquer coisa maior se estabelece

nesta ausência de distinção entre nós:

a glória, a beleza, o alívio,

coesão impessoal da matéria, a eternidade.

 

 

Por vezes, a libertação das amarras do eu empírico e a (con)fusão aliviosa com o outro permitem a percepção de corpos híbridos, como a "criança de areia", do poema "Uma escultura movediça" (p. 55), ou os dedos que se tornam plantas em "Ressurreição" (p. 35):

 

 

Mas da ponta dos meus dedos

(talvez enfim mais abertos?)

nascem — milagre — plantas

 

intumescidas de seiva.

Nem sempre se distingue entre os dedos,

tão cheios de nós e rugas,

 

e os tocos que, estando secos,

mas tendo enraizado em segredo,

se cobrem de viço e folhas.

 

 

Como a vida, a poesia é uma aventura imprevisível. Ao leitor de Leonardo Fróes são reservados alguns riscos. Em sua obra, pode-se encontrar — aos poucos, porque normalmente vem envolta numa atmosfera de serenidade bucólica quase oriental —, uma "forte energia", como aquela que, no poema de abertura de Chinês com sono, "Língua de boi" (p. 13), atrai o poeta para uma "trilha em terra estranha", cercando-o de "carcaças de boi", em que "trepadeiras silvestres se entrelaçam", num "nicho entre florido e macabro" — vida e morte abraçadas. Existiria um limite para a percepção do atravessamento mútuo de todas as coisas: o perigo da aniquilação total. É preciso descobrir como se entregar ao devir. Não é à-toa que o poeta é advertido — e indiretamente nos adverte:

 

 

Voz de boi morto, com certeza,

e que na mesma língua breve adverte

que, se eu for em frente,

não terei retorno.

 

 

Para viver o cotidiano — como já aludido, outra das paixões de Fróes —, faz-se necessário saber retornar, aprender a descer do cume da montanha16, para, então, refletir: é possível incorporar à vida comum a surpreendente liberdade prometida pela poesia.

        

 

 
 
março, 2006
 
 

 

 
 
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Leonardo Fróes. Chinês com Sono e Clones do Inglês. Rio de Janeiro: Rocco, 2005

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Mauro Cezar de Souza Junior, aluno do curso de mestrado em Teoria Literária do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Sua dissertação, a ser defendida até o final de 2006, terá como objeto de estudo a poesia de Leonado Fróes (pelo que se sabe, trata-se do primeiro trabalho acadêmico de grande fôlego sobre o poeta). Publicou SOUZA JUNIOR, Mauro Cezar de. Poesia e possessão extática na obra de Leonardo Fróes. In: Revista Garrafa no. 6, Rio de Janeiro, maio-agosto de 2005. Disponível em www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa6/14.html. (Em breve, outro artigo seu, a ser publicado na próxima edição da Garrafa. Nele, o autor procura traçar paralelos entre a poesia de Leonardo Fróes e de Gary Snyder.) Mais em www.zervan.weblogger.com.br
 
 
Mais Mauro Cesar de Souza Junior em Germina
 
 
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