Notas
 
 
 

1  Para uma breve comprovação de tanto, bastariam os versos iniciais das duas epopéias homéricas, nas quais quem "canta" (aeíde, Ilíada, I, v. 1) a cólera de Aquiles e "diz" (énnepe, Odisséia, I, v. 1) os feitos de Ulisses não é o aedo, mas sim a Musa (Theá, "Deusa", na Ilíada, ou Moûsa mesmo, na Odisséia), filha de Zeus e da Memória (Mnemosýne); nesse contexto, o poeta, de acordo com Marcel Detienne (1988, p.15), era um "possuído pela divindade" (éntheos), e só detinha o status de "mestre da verdade" (alétheia) porque alcançava, através da possessão, o verbo mágico-religioso, portador dos valores, das regras e dos costumes (nómoi). Por outro lado, caso queiramos transpor para a Grécia Arcaica categorias literárias que classifiquem a poesia homérica como "épica" e, portanto, não a tornem relevante para o nosso estudo direcionado ao gênero lírico — este, sabemos, tradicionalmente diferenciado do épico por se constituir numa perspectiva subjetiva —, basta fecharmos os olhos para a definição de lirismo realmente cabível para a poesia grega – poesia lírica era aquela cuja execução se dava com acompanhamento musical da lýra  e lembrarmos, p. e., de um famoso fragmento de Arquíloco — cujas composições soam líricas apenas para nós – em que o poeta se apresenta como um "conhecedor do amável dom das Musas" (Mouséon epatòn dôron epistámenos, cf. fr. 1 W), fazendo ecoar o paradigma homérico.

 

2 Também Hugo Friedrich (1978, p. 62), em seu estudo acerca da poética de Rimbaud, filia aos gregos e a Platão a condição de poeta vidente (voyant) — o eu que, desprendido de sua pessoa empírica, alcança dimensões planetárias: "Uma das origens deste pensamento [o poeta enquanto vidente] remonta aos gregos. Tal pensamento foi retomado pelo platonismo renascentista. Chegou até Rimbaud através de Montaigne que, num ensaio, combinou dois trechos de Platão acerca da loucura poética" (Friedrich: p. 62).

 

3 A origem da despersonalização na lírica moderna estaria, segundo Friedrich, na obra de Baudelaire, cujo intuito de "desrealização do real" exige que "se prescinda de todo sentimentalismo pessoal a favor de uma fantasia clarividente" (Friedrich, 1978: p. 53): a poesia, dessa forma, se justificaria "em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal" (p. 36), e se enunciaria a partir de um sujeito lírico que não se articula como mero reflexo do sujeito empírico do homem Charles Pierre Baudelaire. Seguindo os passos do autor de Les Fleurs du Mal, a poesia de Rimbaud possuiria o mérito de introduzir "o mais radical abandono da lírica baseada na vivência e na confissão" (p. 110): dando voz às "forças artísticas e espirituais carentes de mistério" (p. 61), a obra de Rimbaud conteria em si "forças análogas ao êxtase religioso", êxtase este vivido por um poeta que se impele a "uma beatitude supraterrena, como se viesse de outro mundo, extasiado" (id.). Dessa beatitude decorre a condição de "vidente", para cujas indagações Rimbaud dá respostas que, segundo Friedrich, "nada têm de gregas; são extremamente modernas" (ibid.): o sujeito dessa visão seria um eu que é outro, submisso a "camadas profundas coletivas" (l'âme universelle), a "forças" que  atuam em seu lugar, forças subterrâneas de caráter "pré-pessoal" que constituem "o órgão apropriado para a visão do desconhecido" (pp. 62-63).

 

4 Acrescentam-se à lista de Barthes os nomes de Valéry — que "não cessou de colocar em dúvida e em derrisão o Autor, (…) e reivindicou (…) a favor da condição essencialmente verbal da literatura, face à qual todo o recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição" (pp. 66-67) —, e de Proust  — que, "em lugar de colocar a sua vida no seu romance, fez da sua própria vida uma obra de que o livro foi como o modelo" —, além das contribuições do Surrealismo – movimento o qual "recomendando sempre frustrar bruscamente os sentidos esperados (…), confiando à mão o cuidado de escrever tão depressa quanto possível aquilo que a cabeça mesmo ignora (era a escritura automática), aceitando o princípio e a experiência de uma escritura coletiva, (…) contribuiu para dessacralizar a figura do Autor" (p. 67) — e da lingüística – que mostrou ser a enunciação "um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: (…) o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como 'eu' outra coisa não é senão aquele que diz 'eu': a linguagem conhece um  'sujeito', não uma 'pessoa', e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para 'sustentar' a linguagem, isto é, para exauri-la" (p. 67).

 

5 Daí Rimbaud definir o poeta como "o grande enfermo, o grande delinqüente, o grande proscrito — e o sumosábio" (Rimbaud apud Friedrich: 1978, p. 63).

 

6 "Na verdade, a vivência é muito importante pra mim" (Fróes: 2003, p. 8).

 

7 "Chamei de deus a uma porta e a uma árvore na qual entrei certa vez para me recarregar de energia" (Fróes: 1998, p. 133). 

8 Ao contrário, a forma fixa e tirânica se estabelece sobre a ilusão de um "pensamento confortante de ser um mapa sem dunas" (Fróes: 1998, p. 157).

 

9 Por vezes, o devir extático se torna tão agressivo, que coloca em risco a própria vida de quem o experimenta: "das linhas do pensamento lógico era preciso tirar algum proveito, já que a própria manutenção de minha vida dependia o jogo das revelações alternadas" (Fróes: 1998, p. 161).

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