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Resume

Este artigo procura relembrar as contribuições teóricas de Czeslaw Milosz para a análise do papel dos intelectuais, funcionando como um ponto central para analisar fatos recentes ocorridos na Rússia, mas servindo, também, de base para abordar as relações entre o intelectual e o poder em qualquer outro contexto. Tendo sido escrito logo da saída de Milosz da Polônia, enquanto trabalhava na França como diplomata, "Captive Mind" é um réquiem de adeus aos seus sonhos dentro do Partido Comunista e uma análise do papel que ele e também seus amigos próximos haviam cumprido no processo histórico em questão. A atualidade do livro impressiona e questiona temas ainda mal resolvidos acerca do intelectual e a política.

 

 

Recentes fatos ocorridos na Rússia de Putin trazem à tona algumas questões ainda pendentes relacionadas aos regimes totalitários e também aos lobos disfarçados em pele de ovelha autodenominando-se democracias, tal como o papel dos intelectuais e suas relações com o poder vigente. Muito já se disse a respeito, mas há uma obra chave, comumente esquecida, que traçou o papel do intelectual detrás da cortina de ferro e que ainda pode ser-nos esclarecedora e jogar nova luz sobre o ocorrido há pouco. O livro "The Captive Mind", de Czeslaw Milosz, mais do que ensinar-nos os processos políticos ocorridos, relata o estado ético decorrente da política nos países do leste europeu nos anos 50, enfatizando, especialmente, o papel dos intelectuais na aceitação e disseminação, já não do marxismo, mas de uma deturpação burocratizada do mesmo, conivente com o terror estalinista.

Milosz, prêmio Nobel de literatura em 1980, foi um homem do século XX no sentido mais profundo e amplo do termo. Nascido em 1911, em território lituano, de pais poloneses, ele viu sua cidade natal passar de mãos germânicas às russas, assim como também viu sua Polônia adotiva passar de alemães a russos, logo de novo, mas em piores contextos, aos nazistas e em seguida à então União Soviética. Essas transições, como é sabido, não foram das mais dóceis e Milosz, assim como vários outros intelectuais de sua época, também alternavam entre um ou outro ponto de vista. Afinal, o que era melhor para o destino de um país? A isso não se pode dar uma resposta taxativa hoje, como também não se podia fazê-lo naquele momento. A política tende a ser um remédio cujos efeitos colaterais só logramos vislumbrar a longo prazo, muitas vezes, quando já temos outra doença. Assim, Milosz, depois de pertencer por vários anos ao partido comunista, decidiu abandoná-lo, vendo as práticas pouco igualitárias dos seus correligionários que haviam abraçado o regime de Stalin. Ele escreve "The Captive Mind" na França, onde trabalhava como diplomata para a República Popular da Polônia e alça sua voz como um exilado involuntário, dado o amor por sua pátria e sua língua, o polonês, na qual continua escrevendo, e intencional, já que sua escolha implicou uma decisão política e também moral.

A intemporalidade da obra é marcante, tendo como base não somente fatos históricos, mas essencialmente, o ser humano perante o outro, ante o poder e o medo. É possível permanecermos os mesmos perante o medo? Até que ponto o poder pode seduzir-nos e tornar-nos diametralmente opostos ao que antes pregávamos? Enfim, o ponto central dos ensaios apresentados ali é a ambigüidade, ou até mesmo a incoerência ética, daqueles que se encontram, em algum momento das suas vidas, diante de escolhas cujas conseqüências vão além do seu próprio umbigo.  

Ao longo do livro, Milosz desenha o intelectual com traços finos, quase impressionistas, cuja forma característica pode se desintegrar a qualquer momento em função das mais diversas variáveis. Principalmente, ele não se distancia daquilo que ele mesmo critica e tampouco recorre a binóculos. Sua proximidade ao seu objeto de análise, por sua vez, nos acerca ao pensamento crítico sobre a nossa própria condição. Por um lado, ele se distancia da idéia de Marx sobre o papel do sindicato como aquele que deve cumprir um papel central na condução do proletariado em direção à revolução, se distancia, também, da idéia de intelectual orgânico gramsciana, na qual o intelectual é um representante da classe obreira que vai outorgar-lhes uma consciência de classe. Ao contrário, ele vê nisso simplesmente uma instância a mais na qual o poder se entrelaça com as necessidades imperativas nos níveis mais micro, como por exemplo, a tendência de certa forma inerente ao homem para intercambiar bens que lhe são necessários. Assim, se o governo do Centro da economia socialista não consegue prover insumos básicos para os cidadãos, estes irão procurá-los num mercado paralelo, que se cria para satisfazer essas demandas. Por outro lado, ele não se identifica com uma postura mais weberiana de um intelectual atado ao âmbito acadêmico e idealmente não envolvido com a política, mas considera que o intelectual, impreterivelmente, envolve-se nas questões políticas também porque elas não são alheias ao seu próprio trabalho. Os processos políticos não são, assim, desvinculados de outros éticos ou estéticos.

Fundamentalmente, o intelectual (alegoricamente descrito em quatro perfis diferentes: Alfa, Beta, Gama e Delta) assume dois papéis que variam em função do seu trabalho específico, mas, no geral, tende a ser um representante de "verdades superiores" ou mais abstratas, para além das pequenezas do nosso dia-a-dia; às vezes, incorporando as tendências filosófico-culturais e sintetizando-as em idéias próprias; outras, levando-as à satisfação de demandas pragmáticas, onde contribuições teóricas procuram solucionar problemas práticos. No primeiro caso, o intelectual não se relaciona diretamente com a práxis, no segundo, sim, mas de forma mediada. Poder-se-ia pensar que apenas o segundo caso gera implicâncias políticas, mas Milosz mostra o erro dessa perspectiva.

Na verdade, sua descrição não se ata a apenas um desses dois pólos; ora, para Milosz, o intelectual está profundamente imbuído de ferramentas teóricas que não só ajudam a pensar a realidade, oferecendo-lhe soluções práticas, mas ele realiza esses movimentos nas mãos do jogo político do momento. É notório, por exemplo, como, no caso dos países que abraçaram o pensamento dialético materialista, textos filosóficos intrincados e obtusos começaram a ditar as regras cotidianas até mesmo dos mais simples camponeses, que sempre pensaram que a filosofia não passasse de uma divagação sem implicâncias diretas com a realidade. Assim, o marxismo e seus dialéticos saltaram da torre de marfim da teoria às pedras da cotidianidade. As conseqüências de tamanha transposição residem na separação esquizóide entre a prática cotidiana e a Utopia, enquanto objetivo último em direção a qual uma sociedade traça, na teoria e na práxis, seu caminho ao futuro, constantemente alterando-o e reelaborando-o, mas sempre em função dessa meta final que nunca é efetivamente alcançada, dados os empecilhos impostos pela exeqüibilidade real. Essa excisão termina por prezar a prática pela prática em si, dissociada de um fim último, onde a burocratização dos mínimos procedimentos cotidianos e do trabalho se sobrepõe à criatividade e à espontaneidade.

Daí surge a contradição entre a forma pela qual um indivíduo age na sua vida cotidiana e o ato encenado para os outros. E o que é ainda pior: a sarcástica e orgulhosa vantagem obtida do reconhecimento dessa contradição, sobre a qual Milosz discorre sob a denominação de "ketman", palavra de origem árabe que descreve o fato de que aquele que foi "favorecido por Deus" com a verdade não deve se expor àqueles que a desconhecem; para isso, o silêncio deixa de ser suficiente e, nas palavras de Gobineau, citadas por Milosz, "deve-se não só negar sua verdadeira opinião, mas também recorrer a quaisquer subterfúgios para enganar o adversário".

Czeslaw Milosz esclarece o papel do intelectual do seu tempo recorrendo a essa ambigüidade constantemente presente: por um lado, ele é conhecedor do que positivamente ocorre na realidade social, porém, por outro lado, finge não conhecê-la para obter, assim, benefícios para sua própria sobrevivência. Isso porque o conhecimento que caracteriza o intelectual não o imuniza contra a vontade de poder. É necessário ler: se os livros estão proibidos, lê-se às escondidas; também é necessário comer, ataca-se os livros proibidos para garantir o pão. O intelectual se prostitui para sobreviver e, mais ainda, para desfrutar dos prazeres da carne.

Mas esse é um jogo de cabras-cegas e o medo está por toda parte. Milosz fala sobre o medo de pensar por si próprio e chegar, assim, a conclusões necessitadas de defesa perante aparatos coercitivos. Ora, em última instância, medo a por em risco a própria vida. Ele aborda também o medo à liberdade, que implica aceitar o ponto de vista alheio como possivelmente correto. Sair do pensamento dialético-materialista significaria abrir-se a um mundo de possibilidades teóricas e práticas sobre as quais o controle se dificulta. E, entre os intelectuais, a vontade de saber muitas vezes vem de mãos dadas à vontade de poder. Mais especificamente, Milosz fala do "medo nu", presente nas sociedades do regime soviético, em contraposição ao medo generalizado e subjacente das sociedades de economia liberal capitalista, nas quais há medo de perder o emprego, de ver-se rebaixado na escala social, etc.  O "medo nu", característico das organizações sociais totalitárias, como o estalinismo, onde a vida mesma está na corda bamba, pode parecer-nos longínquo, mas as experiências atuais na China, no Oriente Médio, em Cuba e inclusive na Rússia de Putin, podem pôr em dúvida essa distância.

Esse medo, no intelectual que opta pela prática do "ketman", é transformado numa arma, ora usada para o ataque, ora para a defesa, mas que, em qualquer um dos casos, permite-lhe manter-se imaculado atrás dela. O intelectual consegue, desta forma, continuar com seu labor, publicando, por vezes, trabalhos que vilipendiam o capitalismo e exaltam o socialismo de modo que possam manter-se "ativos" dentro do sistema. Num outro lado estão os que não aceitam viver entre as ameaças do terror e a necessidade de criatividade livre e se rebelam contra o sistema, como Milosz mesmo o fez, mas as conseqüências não são menos árduas: exílio, distância da terra e da língua natal, a vida num mundo com pautas estranhas àquelas que foram internalizadas desde o começo da vida.

Uma solução contra o medo é a pílula Murti-Bing, apresentada no romance Insasiability, de Stanislaw Witkiewicz, de 1932. Murti-Bing era o nome de um filósofo mongol que conseguiu concentrar numa pílula uma filosofia de vida que tornava feliz e tranqüilo a quem a tomasse, transformando-o completamente. Ele já não se preocuparia mais com os problemas, principalmente com difíceis questões ontológicas, tornando-se impassível. Como contou o filósofo, numa vitória iminente do exército do leste sobre o oeste, o capitão perdedor se rendeu ao inimigo, reconhecendo as vantagens da pílula; foi decapitado e o murtibiguinismo foi difundido em todo o ocidente, que se rendeu à nova sociedade. Então, em vez de escreverem obras poéticas de estruturas dissonantemente abstratas, escreviam-se odes sobre a realidade. Entretanto, como as pessoas não conseguiam livrar-se da sua personalidade original, elas se tornavam esquizofrênicas.

Milosz explica o porquê das pessoas se renderem à pílula Murti-Bing, principalmente referindo-se à necessidade de ocupar um vazio metafísico deixado pela igreja, já que a religião não deixou de existir enquanto força histórica. Isso também se compreende pela necessidade de recorrer a sistemas mais amplos de idéias que expliquem, em última instância, a existência do real. Sem dúvida, o marxismo realiza essa façanha, e com todos os ritos próprios de uma organização religiosa (reuniões de partido, nomeação de "papas", lista dos execráveis, dos livros proibidos, etc.). Nesse sentido, Milosz diz que a rendição ao Murti-Bing também tem a ver com a falta de consciência de estar vivendo num processo histórico, no qual são os atores que constroem a sociedade. Assim, vêem-se elementos do processo como imprescindíveis à realidade e à realização da meta final, que seria, para o caso proposto por Milosz, o comunismo, sem ver que este é um processo histórico, uma construção com determinadas características que poderiam, sem dúvida, ser diferentes.

O murtibiguinismo é uma parábola da idolatria de idéias desvinculadas da realidade. É o principio que assegura aquele amor pela humanidade, mas não pelo ser humano, é a própria torre de marfim do intelectual. Milosz vê nele uma comparação com a miséria da filosofia explicada por Marx, na qual se parte da terra para chegar ao céu  e não ao contrário, como deveria ser. 

O intelectual está preso numa contradição em que a necessidade do seu trabalho (e a consciência dessa necessidade) o ata a um pensamento teórico que garante sua própria sobrevivência. Não é de estranhar, portanto, a distorção que a sociologia sofreu nos países comunistas, onde os grandes progressos metodológicos e teóricos do campo foram massacrados pelo ensaio propagandístico. De fato, não é de estranhar que a sociologia enfrenta sérias dificuldades de sobrevivência nos países ou regiões onde impera o totalitarismo. O sociólogo, enquanto intelectual cuja tarefa principal é a de pensar a sociedade na qual vive e também a situação mundial, enfrenta mais visivelmente o dilema apresentado para todos os intelectuais igualmente. A vigilância metodológica pode ser exercida até o ponto de outorgar às ciências sociais o estatuto de ciência, mas não consegue tirar o próprio cientista da sua posição de sujeito/objeto.

Em última instância, o problema central que aflige os intelectuais no totalitarismo é a dificuldade de tomar distância do seu objeto de análise, por mais estrita que seja sua aplicação da metodologia ou da lógica. Isso porque esse objeto, a sociedade e suas diversas áreas, como vemos aqui e como considerou Milosz, se impõem em vários aspectos da vida pessoal dos indivíduos. A sociedade deixa de ser uma instância na qual formamos parte, com maior ou menor participação — definitivamente política. Passa, se se nos permite tal metáfora, de esposa companheira a amante (inadequadamente) demandante.

Mark Lilla, considerando-se um seguidor dos questionamentos realizados por Milosz, ainda sem o brilho e a percepção poeticamente aguçada do lituano, no seu livro The Reckless Mind afirma que se devem reconhecer as asperezas das vidas dos intelectuais que viviam detrás da Cortina de Ferro, onde a opção pela conivência com o totalitarismo era não só uma saída para a sobrevivência, mas também um corrimão de fácil acesso, ao qual se podia rapidamente agarrar antes da queda. Julgar suas escolhas desde o ponto de vista ocidental é, no mínimo, banalizar jogos intrincados dos quais pouco conhecemos as regras. Agora bem, e aí ele faz um questionamento algo perturbador: o que dizer dos intelectuais ocidentais que, sem terem suas vidas em risco, também se encurvaram ao totalitarismo? Lilla se refere, em seu livro, não só aos regimes totalitários comunistas e fascistas, mas também aos movimentos de libertação nacional que se transformariam logo em tiranias.     

Se bem desde Platão se questiona o papel do intelectual (mesmo não usando este termo exato) e sua relação com a política, o questionamento geralmente se refere ao seu papel perante os governados, e não perante as idéias que ele adota e suas conseqüências. O fim que ele dá ao seu conhecimento termina sendo julgado de acordo com o resultado de uma escolha ou de um posicionamento individual diante de fatos específicos e não se questiona, por outro lado, a legitimidade da teoria adotada ou o fato de que tal teoria seja uma construção à qual se recorre por uma opção e não de forma iniludível.

Vale mencionar a semelhança que existe, portanto, entre "captive" enquanto cativado ou encantado, como à idéia de preso "confinado" atado ou escravizado, equivalência presente tanto no inglês como no português. O encantamento por uma única idéia, levando, aqui, ao aprisionamento da mente. Por isso é interessante notar que no livro de Czelaw Milosz, o intelectual é apresentado como aquele cuja mente se auto-escraviza por estar enamorado de uma idéia única, ou como ele coloca: "escravidão através da consciência". Ou seja, o intelectual supostamente possui as ferramentas para identificar as armadilhas da teoria ou da práxis e ele se escraviza não diante de uma opção que lhe é imposta, mas do conhecimento que ele mesmo se impõe. Ele sabe que há alternativas, mas prefere achar-se correto, pois sua função legitimada de intelectual lhe faz crer que, enquanto tal, possui o conhecimento certo da realidade. Ele termina, assim, enfeitiçado pela sua própria consciência, ou para melhor conceituar, pelo seu orgulho. E não há nada mais sagaz que o orgulho ferido de um intelectual. Ora, nessa análise específica do estado ético do socialismo na metade do século XX, qualquer semelhança com fatos reais e atuais não é mera coincidência.

 

 

 

 

março, 2007

 
 
 
 
Lucimeire Vergilio Leite (São Paulo, 1974). Tradutora; tesista e assistente de pesquisa do IDICSO (Instituto de Investigación en Ciencias Sociales) da Universidad del Salvador, Buenos Aires, Argentina; aluna de mestrado na PUC-SP em Sociologia da Arte.