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        Alberto Caeiro, o heterônimo panteísta de Fernando Pessoa, disse de si mesmo: "Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura". É o que pretende a poesia, aumentar o tamanho do que vemos, ouvimos, pensamos, sentimos. Aumentar a nossa altura nesse mundo de coisas, para ver o objeto que não se afigura, ou não se afigura de todo, mas se desfigura, se desmancha em partes que a linguagem, tridimensional, com suas duas dimensões, uma para o olho, outra para os ouvidos é acrescida de mais uma terceira, que seria a significação. O objeto parcial, em suma, o objeto que escapa, o objeto ausente é o que a poesia captura.

A poesia deve extrair sua fonte da vida, com seus sonhos e acasos. O objetivo da poesia é o de nos colocar em estado poético. Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de expressão literária, mas como um estado do ser que advém da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, obviamente, do amor. A poesia é liberada do mito e da razão, mas contém em si sua união. O estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, e para além delas. O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se mutuamente e podem identificar-se um com o outro.

Nosso cotidiano vive sempre em busca do sentido. Mas o sentido é originário, não provém da exterioridade de nossos seres. Emerge da participação, da fraternização, do amor. O sentido do amor e da poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao "viver por viver", ao viver em estado poético.

A cultura é uma ramificação da independência, da liberdade moral e política. A única coisa que pode produzir frutos é um ensino verdadeiro, um ensino feito pelo e para o espírito, dirigido à pessoa como um todo, um ensino de vida. O ensino deve mirar logo acima do alcance imediato do aluno, despertando nele o desejo de esforçar-se. "Desejo, logo existo". A leitura é a menos passiva das ações.

Assim como a arte, a música e a literatura inovadoras precisam criar seu público. O único mestre verdadeiro é a morte. A busca da compreensão habita a palavra viva. A verdade é sempre expulsa de onde está, portanto precisamos procurá-la continuamente. Trata-se de conseguir aquela ausência do eu, aquela vacância do espírito sem a qual não se tem acesso à meditação e ao núcleo do ser.

 

Paixão da Linguagem - A linguagem da poesia é evocativa e não afirmativa. Leminski, por exemplo, é um tipo de poeta selvagem, que tem um pensamento assistemático, criador. Ele diz assim de seu ofício: "Daí essa coisa assim maluca de fazer poesia que é uma coisa que não dá pra ninguém. Se você pesar e medir à luz da lógica desse mundo, como dizia Jesus, é loucura. A poesia não te dá nada em troca, o olhar deve parar nas palavras. A atividade poética é uma coisa voltada para a palavra enquanto materialidade, a palavra enquanto uma coisa do mundo. O poeta teria, em relação à linguagem, uma transa apaixonada, sadomasoquista em que, num primeiro momento, ele seria vítima dela, num outro, o momento sádico, o poeta, o artista, o escritor, o criador, passaria a ser algoz, a ser carrasco da linguagem, e daí inverter o jogo" (In: Poesia: paixão da linguagem. Os sentidos da paixão: Funarte e Cia. das Letras, 1987, p. 283/306).

O social na arte é a forma, o conteúdo é por conta de cada artista. Você põe o conteúdo que quiser, mas a forma não depende de você. Todo artista é limitado já a priori por uma língua e por um estoque de formas. Existe uma certa ilusão de liberdade, de expressão, mas é preciso ver no interior de quanta escravidão se dá essa liberdade. Uma atitude "sádica" é quando o sujeito começa a devolver os golpes, o que está ligada à idéia de experimental, de invenção ou de vanguarda. Esses modos seriam subversores, nos quais o erro, por exemplo, passa a ser incluído e englobado como fator de criação. Um Fernando Pessoa, um Cabral, um Drummond, um Augusto de Campos, um Leminski são poetas que conduzem sua língua a extremos limites de expressão dela, na fronteira, no abismo do incomunicável.

A poesia é o amor entre os sons e os sentimentos. Ela já é na sua substância, intrinsecamente, ela já é amor, já é aproximação, no sentido que é o amor entre os sons e os sentidos, num sentido que a prosa não é. É por isso que a poesia não morre. Vamos nos rejubilar. Poesia não vende. Poesia é um ato de amor entre o poeta e a linguagem.

A ambigüidade é própria da poesia, é o princípio do prazer na linguagem. Cultura não é só vanguarda. Depois há um diálogo entre essas formas já aceitas e as novas formas. Isso recupera o passado, porque o futuro tem isso de maravilhoso, ele recupera o passado. É o surgimento de um Caetano Veloso que nos permite ouvir de verdade, como da primeira vez, a voz de um Lamartine Babo, Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves. Assim, o ciclo se fecha e o Ouroboros, a serpente, morde a própria cauda.

As três vozes da poesia: a primeira é a voz do poeta que fala consigo mesmo — ou com ninguém. A segunda é a voz do poeta ao dirigir-se a uma platéia, seja grande ou pequena. A terceira é a voz do poeta quando tenta criar uma personagem dramática que fala em verso, quanto está dizendo, não o que diria à sua própria pessoa, mas apenas o que pode dizer dentro dos limites de uma personagem imaginária que se dirige a uma outra personagem imaginária. Mas a entrega definitiva do poema a um público desconhecido, à revelia do que esse público possa fazer do poema, é o epílogo do processo iniciado na solidão e sem que se cogitasse do público, esse longo processo de gestação do poema, pois ele assinala a separação final entre o poema e o autor. O mundo de um grande poeta é um mundo no qual o criador está presente em toda parte, e em toda parte oculto.

 

 

 

[Publicado, originalmente, no caderno "Pensar", Estado de Minas, 24 de março de 2007.]

 

 

 

 

 

março, 2007

 

 

 

 

Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritora, ensaísta, pesquisadora e professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e Teoria da Literatura, da PUC Minas. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG com a tese "Representações de Diálogos dos Mortos na Literatura Ocidental". Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo: Livro Aberto, 2000).