©carlo allegri
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Abro espaço aqui para apresentar uma figura que conheci um dia desses, quando me espraiava pelo ciberespaço. Trata-se de Adelaide do Julinho, uma poeta de publicação inédita, cuja palavra está carregada de uma lírica-libidinal pouco encontrável em outras poéticas de gênero feminino. O próprio epíteto por ela escolhido para dar a si mesma um nome literato, já vem carregado de um irônico bom humor com traços ficcionais, pois estabelece um intertexto com um outro epíteto: Julinho da Adelaide, criado por Chico Buarque, para assinar as letras de algumas de suas composições, buscando, mediante esse expediente, fugir à sanha diairética da censura imposta pela ditadura da quartelada de 1964. Dessa forma, Adelaide do Julinho, para dar vazão à sua poesia, cria a partir de si mesma um personagem, cujo companheiro, o Julinho da Adelaide, é um personagem criado por uma figura real, Chico Buarque, com o fito de dar vazão à sua música. Penso que a força da censura, não mais a da ditadura das armas, mas a do moralismo, talvez ainda paire sobre a escolha desse epíteto por parte de Adelaide, se considerarmos o ousado erotismo que seus poemas evidenciam. Nesse sentido, ao escrever seus poemas pelas mãos de um personagem por ela criado, lhe assegura um anonimato literário em que a poeta real some de cena, como ela mesma declara: "Poesia é arrepio e assombro. O resto é leréia. Só acredito no que vejo. Só escrevo o que invento. Inventei a poesia neobarraco. Não sei quais as influências que me fazem sofrer. De João Cabral de Melo Neto, herdei apenas a dor de cabeça. Escrevo para me divertir. Maior poetagem. Reparando bem, não sou poeta. Aliás, nem existo".

 

E quando existe em sua vida real, a poeta é assim: "Viúva. Do lar. Vive discretamente em Belo Horizonte, Minas Gerais. Musa de quatro importantes personalidades do cenário nacional (um poeta, um escritor, um músico e um político — de direita). Tem poemas traduzidos para o inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, albanês, latim, romeno, entre outros. E continua inédita. Se pudesse escolher, preferia ser a Gisele Bündchen, com um pouco mais de bunda. É uma das Escritoras Suicidas".

 

Sem mais delongas, apreciemos de espírito aberto alguns de seus poemas, com sabor de haicai. Após a leitura de cada um deles, fiz um breve exercício hermenêutico sobre as imagens simbólicas que a poética de Adelaide do Julinho evoca.

 

 

consciência
ecológica


impossível fechar as pernas

e matar a borboleta que

voa voa voa entre elas

 

[pernas abertas: posição feminina da receptividade sexual e do parto. Geração e nascimento. A borboleta no bestiário dos insetos não evoca nenhuma imagem terrificante, mas delicadeza, cor, transformação desde a crisálida. O insistente "voa voa voa" exprime o anseio pelas alturas, pelo desprender-se do corpo mediante o vôo, mas imita também a rítmica friccional do ato sexual, que conduz ao topo inefável do gozo. O encontro inaudito do infinitamente espiritual com a finitude carnal]

 

 

floral


um antúrio muito rijo pedindo

abrigo em um vaso úmido:

tempo de poda.

 

[o anseio pela reunião do conteúdo e do continente. O de dentro e o de fora. O aríete e a taça. A altura e a profundidade. A fertilidade da terra clamando pela fecundação. A umidade é a viscosidade possibilitadora do prazer e da preparação da vida e o húmus que fará a semente mutar em frondosa árvore]



aurora


de quatro

papaimamãe
chupeta

oh! que saudades que tenho

da minha infância querida

 

[pós-romantismo ingênuo. Pós-paraíso edênico. As fases freudianas se confirmando em estrofes. Casimiro estupefato. Oswald cordato. E Adelaide experimentando o diabo a quatro]



mais em bashô


o sapo salta

perereca bate palmas

aguaçal na mata

 

[já não importa o príncipe e seu beijo encantado, a fealdade verde-ocre do sapo é quem dá o mote e o bote, donde, o sabá no pântano]



hipnose


é sempre assim:

ele põe o pinto pra fora

eu fico fora de mim

 

[o falicismo hipnotizante desvia os olhos dos olhos para as partes baixas do humano]

 

em riste


para jão filho


a sua cabeça dura:

valente-inclemente-entremetente:

só pode com ela o meu hímen complacente

 

[o ímpeto e a delicadeza. A anima e o animus convertendo o macho e a fêmea no andrógino]



intransitivo


tudo faz sentido:

sua mão

dentro do meu vestido

 

[o tato ainda procura o miolo de gente para além da vestimenta, donde, o pendor humano pelo empirismo antes da abstração]

 

 

instinto selvagem


na penumbra, sem calcinha,

cruzo as pernas, que gracinha:

acendi o lanterninha

 

[a caverna inabitada sendo invadida pelo lume da tocha: a alegoria da caverna platônica às avessas]

 

 

enfim nós


final do enredo:

eu & meu dedo

 

Pra Mariza Lourenço

 

[na solidão é que trabalha a todo vapor a fábrica das fantasias]

 

 

em ré maior


meu amor toca viola:

mas bom mesmo é quando

ele viola-me.

 

[a trilha silenciosa dos instrumentos humanos: para o toque e o tocar]

 

 

pianice


ai, quem me dera ser o seu piano.

você tocando.

: eu piando.

 

[idem, ibidem]

 

 

du plus fort


Pra baixo todo santo ajuda.

Pra cima, Viagra 50 mg.

(Promoção: caixa com 04 comp/U$30)

 

[alquimia e química: solve et coagula]

 

 

antúrio

lamber sua flor

— tão bela! —

que me espanca

 

["Olhos a arder em êxtases de amor, / Boca a saber a sol, a fruto, a mel: / Sou a charneca rude a abrir em flor!". Florbela Espanca]

 

 

esperando godot


— Pela última vez, filhinha: quem é o pai?

 Não sei, mãe, tava escuro.

 

[sem comentários]

 

 

ficha cadastral

(aprovada)


pele negra

alma rubra

aquilo roxo

 

[um lance de cores definindo os sentimentos e a próxima atitude]

 

 

azáfama


assim   sim   ai   mais   ah   ah   ah   a-hã

hmmm   aí   oh   oh   uh   tudo  joão carlos

(o nome dele era luiz fernando)

 

["Ela disse-me assim, tenha pena de mim, vá embora / Vais me prejudicar, ele pode chegar, está na hora". Lupicínio Rodrigues]

 

 

carreira solo


"Voa, pombinha branca, voa":

cantando no chuveiro, o menino

não deixa a pomba em paz.

 

[a pomba desmistificada, perde sua aura, e cabe, agora, na palma da mão do moleque]

 

 

Páginas online onde encontrei Adelaide do Julinho:

Escritoras Suicidas
As Escolhas Afectivas

 

 

 

 

setembro, 2007

 

 

 

Roberto Amaral é Doutor em Educação, com a tese "A teofania em Grande Sertão: Veredas — por uma pedagogia dos símbolos"; Mestre em Educação Brasileira, com a dissertação "A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur — por uma ampliação do conceito de ideologia em educação", e graduado em Pedagogia, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás - UFG. É professor na Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS, onde atualmente é o Pró-Reitor de Pesquisa e Coordenador Operacional do Minter em Educação UnB/UNITINS. É um dos coordenadores dos Projetos de Eventos "Interlúdio Literário" e "Cinema e Literatura". É líder do Grupo de Pesquisa "Literatura, Arte e Mídia". Autor de Paul Ricoeur e as faces da ideologia, Editora da UFG.
 
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