©hulton archive
 
 
 
 
 
 
 
 

___________________________________

 

Observações a partir do artigo "Ler a nova poesia, quem é capaz?", de Cândido Rolim,

publicado em Cronópios, em 2007

___________________________________

 

 

O fato de haver uma produção poética "ainda sendo feita", um gesto, por assim dizer, "em tempo real", fugaz e live, ou que não se estabeleceu, não justifica o silêncio nem a esquiva crítica entre-dentes a seu respeito.

Em outras palavras, insiste-se na alegação de que devido a essa sua condição de fenômeno in progress, a poesia atual acabaria por impor um óbice à tarefa crítica, visto que, por definição, esta atividade teria a função de regular e julgar, calcada sobre certa estabilidade de valores, apenas aquele objeto cuja trajetória pudesse ser abarcada desde o ponto-zero do seu impulso, passando por suas correções de rota e chegando até o seu provável termo de repouso. Portanto, uma experiência tão fugidia, como essa que aqui se discute, talvez não permitira a prospecção judicativa de seu conjunto.

Por causa de sua base larga; sua radicalidade que atinge os antros da terra; suas ferramentas argênteas, a crítica se mostraria, supostamente, sem condições de perscrutar semelhante alvo em movimento, esse ser transitório. Vantajosa inadequação da crítica, às vezes tão fora do lugar! O mundo é leviano demais para a sua lerdeza magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir) implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e anuncia.

Portanto, a poesia contemporânea, como fenômeno inconcluso, filha e protagonista de um presente contínuo, signagem manifestada dentro do "horizonte do provável" do nosso tempo, não estaria em situação de ser mapeada "cabalmente", pois como coisa viva, algo de sua efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção. Parece estar-se exigindo, para o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico que, enquadrando o mais ínfimo exemplar dessa poesia, capturasse o mundo e o tempo conhecidos que envolvem-no. Mas, o fazer, o saber e o julgar inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras, crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se relaciona ao possível, ao impermanente das limitações e das parcialidades do sujeito. Portanto, a leitura, ou a crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser, tal como ela, uma coisa em construção, ainda não canônica e não canonizada. Seqüência de interpretações e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por assim dizer, "câmera-na-mão", ou para usar um lugar-comum, crítica mais como transpiração do que como inspiração. Leitura interessada, severa e experimental embrenhada na nervura do dissenso.

Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica totalizadora que "de fato" venha a dizer, quem sabe um dia — pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós —, aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos) ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia perante a nossa recepção. 

Às vezes fala-se a propósito da poesia contemporânea nos termos de que se trataria de uma experiência capaz de provocar um estranhamento e um incômodo em determinadas zonas da audiência similares àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea. Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à antiarte. Então, por que reivindicar para ela um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do "meu tio iauaretê", na presunção de glosá-la eruditamente e de uma vez por todas?

Desde a realidade insossa das manifestações poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade e eficiência dessa mesma poesia por meio da chantagem cult de um metadiscurso que assomaria para "pôr as coisas em ordem", problematizando uma farsa com outra.

 

 

 

 

 

setembro, 2007

 

 

 

 

 

Ronald Augusto (Rio Grande-RS, 1961). Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). Despacha no blogue Poesia-Pau.

 

Mais Ronald Augusto em Germina
>
Poemas