Resumo

Este artigo analisa os aspectos literários comuns entre o romance O braço direito, de Otto Lara Resende, com a obra ficcional do escritor russo Fiódor Dostoievski. Ainda que distantes no tempo e no espaço, a obra do autor mineiro recebe forte influência do escritor russo, com destaque para o foco no (in)consciente dos personagens, marcado pelo sentimento de culpabilidade a partir de um deslize perante as leis cristãs nem sempre bem definido, e pelo pessimismo da "danação sem fim", sem possibilidade de redenção.

 

Palavras-chaves

Literatura brasileira, literatura russa, Otto Lara Resente, Fiódor Dostoievski

 

 

Abstract

This article analyses the same literary aspects between O braço direito, Otto Lara Resende's romance, with the ficcional production from Fiódor Dostoievski. Although far away in the time and space, the Otto's production receives strong influence from de Russian author, especially the focus on the (in) consciente of the personages, blended to the guilt, that begins from a broking to the Christian's laws and to the continuous pessimism redemption.

 

Key-words

Brazilian literature, Russian literature, Otto Lara Resende, Fiódor Dostoievski

 

 

 

§

 

 

           Separados no tempo e no espaço, o zelador Laurindo Flores guarda fortes semelhanças com personagens saídos da mente do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-1881). O primeiro é zelador de um orfanato no interior de Minas Gerais, na obra candente, profunda, de Otto Lara Resende (1922-1992): O braço direito, seu único romance.

O escritor e jornalista mineiro construiu ao longo da vida uma obra ficcional que, se se esvai pela pouca quantidade (foram poucas obras), abusa de uma densidade que beira a epifania, não sem antes oferecer doses cavalares de angústia, culpa e obsessão. A religiosidade impregna cada frase do autor, misturada à solidão, à misantropia e o desespero causado por sucessivas e inescapáveis fatalidades (Silverman, 1981).

Em O braço direito, há a maior concentração de todos esses elementos na figura do enigmático Laurindo, responsável por um orfanato decadente na pequena cidade de Lagedo, interior de Minas. A narrativa é toda construída em primeira pessoa, em capítulos curtos, mimetizando o diário onde o personagem coloca suas impressões do mundo que o cerca.

Logo no início notamos a obsessão do zelador em eliminar uma culpa que é crescente, não muito bem definida e que vai corroê-lo até o pecado seminal que fecha a obra. Laurindo é fruto de um pensamento social tacanho, bajulador das elites da cidade (ligadas à Igreja Católica), conservador e mesquinho, impregnado pelo ambiente de mediocridade que o cerca. Zela uma instituição aos frangalhos, cujos órfãos são cada vez mais dominados pela rebeldia — a presença inescrutável do demônio, na visão estreita do narrador-personagem.

Laurindo é marcado por traumas de infância: a mãe submissa, o pai alcoólatra e ausente que se suicida. Simbólico é a ojeriza do personagem por espelhos e retratos. "Não gostaria de reencontrar o adolescente que fui. Sei, todavia, que ele ainda sou eu, tal e qual, porque sei que sou hoje o que venho sendo ao longo dos anos" (p. 112). Há um receio da auto-descoberta, do que ele irá encontrar em si próprio caso mergulhe fundo na sua alma.

Assim como Otto, Dostoievski também retratou, no século 19, a força da consciência e da alma dos expurgados socialmente, dos medíocres, dos desvalidos. Quase sempre, misturada a uma espécie de delírio religioso, o que Piza (2001) chama de "sofrimento culpado" dos que desafiam as leis divinas — por meio de pensamentos impuros ou mesmo da ação violenta, um crime no mais das vezes.

Não é à toa que o sentimento de culpa irá massacrar Raskolnikof (em Crime e castigo) muito mais do que o homicídio que provoca, logo no início do romance. O pecado é, na maioria das vezes, sem redenção, tanto em Otto quanto no autor russo, apesar da obsessão constante em purgar o(s) pecado(s) cometido(s). Laurindo: "Preciso de indulgências como preciso de ar" (p. 48). Ou "Carrego comigo, noite adentro, a angústia, que nasceu comigo. A minha dúvida me segue, onde quer que eu vá" (p. 88).

Nesse delírio, entra a polifonia, característica marcante em Dostoieksvi (conforme estudo clássico de Mikhail Bakhtin) e ensaiada por Otto em partes do romance. A polifonia entra nas muitas frases bíblicas em latim (ou não) que permeiam o fluxo de consciência do personagem Laurindo, uma voz que parece não ser a do zelador, nem do autor: uma origem obscura: "Neste silêncio sem sino e sem lua, o Asilo é um navio à deriva. Se te eximes de uma cruz, acharás outra, talvez mais pesada. Para onde quer que fores, levas a ti mesmo e sempre achas a ti mesmo" (p. 117).

Em Dostoievski, esse embate maniqueísta do bem contra o mal, da fé contra o ateísmo, é ainda mais profundo e revelador. Em Os irmãos Karamazóvi, essa estratégia se dá pelo poder conferido à voz demoníaca. O autor russo chega a dedicar um capítulo inteiro à voz maligna, denominada "O Grande Inquisidor": "[Os homens] Derramarão lágrimas bobas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis zombar deles, certamente. Gritarão contra ele com desespero e essa blasfêmia torna-los-á ainda mais infelizes" (p. 191).

Em O braço direito, não é dada voz ao diabo, que se revela, sob a ótica do narrador, nos atos de rebeldia dos órfãos e no domínio cada vez maior da maçonaria — poder laico — sobre Lagedo. "Agora vemos frente a frente o Bem e o Mal, a Igreja e a maçonaria. O padre Bernardino (de quem o narrador diz ser o braço direito) e o doutor Lobato" (p. 77).

O tormento do personagem, vítima da própria insignificância, é agravado pelo ambiente que o cerca: pessoas ignorantes, envoltas em mexericos, muito pouco reflexivas, quase sempre levadas pelos instintos mais primitivos. Selvagens. "Lagedo está dominada por um contubérnio entre o coronelismo e o clericalismo" (p. 71). Laurindo é a tal ponto atraído e imiscuído nessa atmosfera que confessa a inexorabilidade de seu destino. "Conheço as minhas limitações, é humilde o papel que me cabe" (p. 84). "Por que tenho medo de buscar um novo destino? O mundo todo lá fora e eu aqui em Lagedo, na pequenez da minha rotina" (p. 85). Em texto posterior, Otto comenta, com fina ironia, um de seus mais fortes personagens ficcionais: "A personagem (...) é um tipo muito engraçado, visto de fora, e pungente, na sua sanha errada de ser santo pela contramão" (1994, p. 309).

Tanto em Otto quanto em Dostoievski, a redenção nunca será permitida: o primeiro pecado gera a culpa que cresce a cada novo vitupério, em um ciclo crescente, sem retorno — a ordem primeira de todas as coisas nunca se reinstaura, e a danação é a causa maior da angústia que, não raro, leva à loucura: o assassinato em Os irmãos Karamazóvi, a mania de perseguição de Crime e castigo. Laurindo chega a apontar um revólver para a cabeça de cada um dos órfãos, em um clima opressor e terrorista que atinge o ápice no suicídio de um dos internos e na fuga do zelador (suspeito da morte). Uma das últimas frases do romance brasileiro resume a condição dos desvalidos de Otto e Dostoievski, onde a misantropia do mineiro se cruza com a religiosidade inquietante do russo: "Somos todos órfãos. Estamos todos exilados, na solidão que vem de longe e não tem remédio" (p. 212).

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

novembro/dezembro, 2006

 

 

Allan de Abreu. Jornalista formado pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), e mestrando em Teoria da Literatura pela Unesp, com o projeto "A Literatura e o Jornalismo em Otto Lara Resende", que analisa as crônicas do autor, publicadas no jornal Folha de S.Paulo.