©graciela sacco
 
 
 
 
 
 
 
 

 


 

Outro dia, em sua página Poesia-Pau, o poeta e crítico Ronald Augusto alertava para a relevância de se abordar um texto de forma indisciplinada, indicando que quando tal leitura desentranha do texto uma pluralidade de sentidos, traz à tona diferentes modos de agenciar os elementos materiais da linguagem, e que o leitor afinal de contas produz a partir de seu desejo de linguagem, uma versão que mais se presta a uma di-versão de que a qualquer outra coisa.

 

Na ocasião, em que pese haver discordado de que o leitor "re-inventa, quer em termos sintáticos, quer em termos semânticos as vacilações e o esforço implicados no ato da realização do poema", uma vez que isto pressuporia uma quase concordância cursiva dos atos (escrever e ler), fiquei com a fértil "transdiciplina/indisciplina" de se claudicar sobre o périplo criativo (hesitante, errático, caótico) do autor, fato que sujeita a leitura ao transbordamento e à desmesura imagética o que, em último caso, além de um ganho considerável é, porque não dizê-lo, a própria sobrevivência de um texto.

                  

Curioso como alguns exemplos de "poesia antiga", desprendendo-se de um casulo escolástico ou de um broche acadêmico desafia o tempo. Coisa comum, até. Mas não me refiro a poesia de imortais ou poesia cunhada em bronze, lapidar, para ser repetida à exaustão pelos priores. Detenho-me em organismos mais perecíveis, humanos, ainda sujeitos a súbitos e surpreendentes retornos.

 

Voltando à observação inicial, de fato certos textos que dormitam na tradição meio que pedem uma aproximação inventiva, discordante que seja, para que enredados nos fios de outra verve atualizante lance seu desafio sobre outros infinitos tempos. Ousaria dizer que este seria o modo de um texto falar desde suas cinzas.

 

O fato de a linguagem ser algo objetivo enquanto ferramenta mais durável que o sujeito operador de signos e de alguma forma gozar de uma permanência que sobrevive inclusive às injunções estético-criativas, leituras invasoras de seu arranjo original, demonstra sobretudo a conveniência de o escritor não pretender esgotar sua empresa verbal em um único lance magistral e definitivo ou pelo menos suspeitar dos limites e das possibilidades de ambos — autor e texto.

 

Ao ler algumas passagens da poesia de Luís Gama, poeta baiano do século XIX, desconfia-se de que o poema seja também artefato verbal que o acaso revigora e atualiza. Como ponto de partida à uma leitura dispersiva citem-se, à guisa de ilustração e assédio, alguns versos singelos, um plano de contenção, pausa dos motes trucidantes desse abolicionista:

 

 

Se o muito que sinto

Não posso dizer,

Do pouco que sei

Não quero escrever

 

 

E para quebrar a monotonia do recreio, merece destaque o seguinte arranjo punk, cáustico cenário entupigaitado de elementos urbaníssimos:

 

 

E, logo que da terra se apartou

Sobre as nossas cabeças espalhou:

Um chuveiro de anúncios, em gazetas,

Retumbantes artigos, grossas pêtas;

A caparrosa, a galha, a t'rebentina,

Essência de tabaco, de quinina;

Pontinhas de charutos já fumados,

Ratos mortos, em vinho conservados;

Pomposos elogios, em jornais,

Sementes p'ra o fabrico de animais;

Um tratado das coisas reunidas,

E mais outras coisitas esquecidas!

 

 

O risco de falar de poetas mortos está em que por imperícia do método, falha nos dados ou por demasiado respeito ao acervo de reverência acumulado (sem falar no perigo de profanação da fortuna crítica), aliado ao risco de dizer coisas que não estejam à altura do homenageado, o texto antigo torne-se algo intocável, indigno de assédios menos reverentes e transgressores e até de uma simples leitura mais curiosa. Mas há casos de poetas mal-exumados e de textos malvigiados pelo desprezo. Talvez seja o caso de Luís Gama, sem que aqui se pretenda qualquer tentativa de resgate mas simples aventura do logos.

 

Há nas poesias satíricas desse autor muitos casos de coincidência de linguagens, ironias, despojamentos, diale/temas urbanos vistos e ouvidos por aí. Eis um fragmento:

 

 

Se audaz rapinante,

Fidalgo ou Barão,

Por ser figurão,

Triunfa da lei;

É que há magistrados

Que empolgam presentes,

Fazendo inocentes

Os manos da grei

 

 

Se tal coincidência é culpa dos fatos ou se deve às facetas político-sociais que se repetem no tempo e no espaço, não cabe discutir aqui, provisório e precário front de linguagem. No que diz respeito ao poeta satírico baiano, como diria aqueloutro amante do poético, ele também manejava metáforas e "empregava bem as assoantes", principalmente quando de forma terna cantava sua musa negra de amor eletrizada: madeixas crespas e cor de azeviche (Entre a nuvem das pestanas / Tinha dois astros brilhantes). Algo discrepante do arsenal de rimas agressivas encontrável principalmente em sua fábrica verbal de "gorros para a gente de grande tom".

 

Como soe acontecer com os bons anti-poetas — vide hoje o escritor mineiro Sebastião Nunes — Luis Gama, despido da já reinante "sediça modéstia enfumaçada" de maçantes oradores "ardentes por chupar seu — apoiado", também deu um tempo à poesia:

 

 

Faço versos, não sou vate,

Digo muito disparate

.................................

 

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta

 

 

 E para não deixar dúvida, reitera o seu silêncio ético:

 

 

Nada, nada, meu Senhor,

Não caio nessa esparrela;

Não quero que o mundo diga —

Que o Luís é tagarela

 

 

Uma pausa. Sendo o poema também uma equação de ecos, curioso perceber como, não sei por que vias, o aceno lingüístico-crítico de Luis Gama ao formular o arranjo sinfônico de — Coaxados de sapos / Em tom pizicato — parece ter percutido em Manuel Bandeira no começo do século passado, ao se valer quase da mesma métrica inconformista para com os cânones poéticos de então.

 

Porém é em um trecho de Sortimento de Gorras que ouso fazer um deliberado escambo. Nessa passagem sintaxe, signos e situações "próprios de uma época" saltam de suas contingências ideológicas para adquirir, ainda que por mera arbitrariedade do leitor atual, uma estranha ressonância.

 

Ainda em respirante "estado de dicionário", os lexemas ajudam a traçar uma teia de verberações e combinações (re-configurações) que, aplicadas a outros contextos sociais diversos, constroem idêntico cenário sujeito à mesma clava crítica do poeta, às vezes até com mais vigor de corrosão. A palavra mac-lama do trecho seguinte, por exemplo, exsurge hoje com um descomunal vigor crítico. Não precisa o leitor ir muito longe nem sequer perquirir a etimologia ou a pertença do vocábulo mac-lama; vá ao shopping mais próximo! Fácil perceber, portanto, que o signo "adaptado ao mundo de hoje" de fast foods tem mais força impactante e registro irônico. Melhor: obra do acaso ou não, o poema ainda se presta a uma subversão. Ainda nessa trilha, permito-me substituir o termo "chuchadores", que aparece duas vezes, por xuxadores. O que impede? O fragmento então ficaria assim:

 

 

Se temos Deputados, Senadores,

Bons Ministros, e outros xuxadores;

Que se aferram às têtas da Nação

Com mais sanha que o Tigre, ou que o Leão;

Se já temos calçados, mac-lama,

Novidades que esfalfa a voz da Fama,

Blasonando as gazetas — que há progresso,

Quando tudo caminha p'ro regresso:

Não te espantes, ó leitor; da pepineira,

Pois que tudo no Brasil é xuxadeira!

 

  

Pois é. Vivemos em um mundo de atualizações/revogações perenes, fato que paradoxalmente nos dá a certeza de em breve nos depararmos também com o já visto. A dificuldade maior de escrever, diria o filósofo, consiste em reler-se, isto é, para tornar-se estranho ao próprio texto. Disso o leitor, outro alheio a si, se encarrega com mais eficácia. A leitura e a interpretação como "produção de sentido" sem que pretenda se infiltrar retardatariamente na "intenção original" dos versos, permite a troca da simples operação paleográfica de ver o texto como ele foi por uma leitura livre, transgressora, autêntica "operação tradutória", para vê-lo também como poderia ser.

 

Daí ser possível afirmar que nenhum texto aponta para um momento preciso. E se por acaso é tão visível assim sua direção, o alvo específico (a própria linguagem?) movendo-se por si só e a contrapelo das sincronias, contraria solenemente as intenções iniciais. Como já dito, tudo leva a crer que o texto espera uma leitura (ou leituras) desregrada, não para trilhar o mesmo périplo inventivo do autor — empresa inútil; mas para gozar e fruir sua rosácea de possibilidades.

 

 

 

 

julho, 2006
 
 
 
 
Cândido Rolim (Várzea Alegre-CE, 1965). Poeta, tem publicados os livros Rios de Mim (Secretaria de Cultura, Fortaleza/CE, 1982); Arauto (Edições Dubolso, Sabará/MG, 1988), Exemplos Alados (Letra e Música, Fortaleza/CE, 1997), Pedra Habitada (AGE, Porto Alegre, 2002), resenhas e textos na internet.
 
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