©ascenso ferreira - acervo fundação joaquim nabuco

 

 

Maracatu1

 

Zabumbas de bombos,

Estouros de bombas,

Batuques de ingonos,

Cantigas de banzo,

Rangir de ganzás...

Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?

As luas crescentes

De espelhos luzentes,

Colares e pentes,

Queixares e dentes

De maracajás...

Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?

A balsa do rio

Cai no corrupio

Faz passo macio,

Mas toma desvio

Que nunca sonhou...

Loanda, Loanda, aonde estou?

Loanda, Loanda, aonde estou?

 

Ascenso Ferreira

 

 

 

 

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Apoiado inteiramente no manancial rico do folclore nordestino, declamando e cantando seus próprios versos, Ascenso Ferreira escolhe para temas de seus poemas assuntos populares: festejos religiosos, lendas, acontecimentos da sua região. Esse poeta pernambucano  notabilizou-se pelo ritmo excelente dos seus versos, que evitam o resvalar para a prosa e para o lugar comum. Portador de uma pequena bibliografia, o que não impediu, contudo, que o poeta alcançasse uma popularidade extraordinária, de norte a sul do país. Ascenso morreu quatro dias antes de completar 70 anos, em 1965, e sua obra se perdeu, a partir daí, no mais terrível silêncio. Por isso, continua desconhecido do público brasileiro, apesar de o compositor e cantor Alceu Valença, responsável por sua redescoberta, ter musicado e gravado vários de seus poemas: "Maracatu", "Oropa, França e Bahia", "Vou Danado pra Catende", dentre outros.

 

                                             

***

 

 

Ascenso Ferreira deixou obra escassa, porém, expressiva: Catimbó (1927, 2ª ed. 1929), Cana Caiana (1939). Em 1951, publicou uma edição de luxo de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, acompanhada de um LP com melodias para os poemas reunidos (primeiro poeta brasileiro a gravar seus poemas em disco) e com prefácio de Manuel Bandeira. Em 1963, no Rio de Janeiro, teve editado Catimbó e Outros Poemas, com prefácio autobiográfico. No final de 1995, 32 anos depois da edição comercial mais recente, os poemas de Ascenso Ferreira foram, finalmente, relançados em cuidadoso trabalho da Nordestal Editora, dirigida pelo crítico e poeta pernambucano Juhareiz Correya, em co-edição com a Fundação de Arte de Pernambuco Fundarte.

 

A nova edição dos poemas de Ascenso Ferreira reproduz ilustrações de Carybé, Cícero Dias, Joaquim Cardozo e Luís Jardim, entre outros, com textos introdutórios, que já se tornaram clássicos, assinados por Manuel Bandeira e Sérgio Milliet. Catimbó, o primeiro dos três livros, é prefaciado por "Ritmo Novo", um pequeno ensaio de Mário de Andrade. Cana Caiana tem um texto de apresentação assinado por Luís da Câmara Cascudo. Xenhénhém é apresentado por um artigo assinado por Roger Bastide.

 

Sua obra apresenta-se em duas fases: uma, da época parnasiana, sob a égide do Grêmio de Palmares, sem grande marca, e a outra, a modernista, resultante dos contatos com elementos da massa rural. Ascenso Ferreira integrou-se ao movimento modernista de 1922, através do grupo da Revista do Norte (PE), sem, contudo, influenciar-se por nenhum dos grupos. Ou seja, pelo Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, ou pelo Verde-amarelo, de Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, nem pela chamada ala futurista.

 

Joaquim Inojosa teria sido, igualmente, um dos incentivadores de Ascenso Ferreira no sentido de adotar o modernismo, mas a sua resposta não se fazia em termos de uma influência futurista. Foi à conferência do poeta paulista Guilherme de Almeida, pronunciada no Teatro Santa Isabel, em 1924, e a recitativa de seu poema "Raça", abriu os olhos de Ascenso à possibilidade de novas estéticas. Mas foi o poeta Benedito Monteiro quem exerceu maior influência na sua transformação, sem esquecer José Maria de Albuquerque Melo e Joaquim Cardozo. Desta forma, Ascenso cria um estilo novo de poesia, resultado não só de seu tipo vivencial, como da profunda integração com a literatura oral do povo nordestino.

 

Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira é uma erupção direta do Nordeste no Modernismo brasileiro. Seus poemas são verdadeiras rapsódias nordestinas, onde se espalha fielmente a alma ora brincalhona, ora pungente, no dizer do amigo, Manuel Bandeira. Seus poemas são fala e canto, cuja unidade das composições proclamam a autenticidade de que também é feita a Poesia.

 

O poeta pernambucano se chamava, na verdade, Aníbal Torres. Órfão do pai aos 6 anos —morto em trágico acidente, numa queda do cavalo, quando participava das festividades da cavalhada —, teve em sua mãe, uma professora primária abolicionista, sua primeira mestra. Aos 13, já trabalhava no comércio, na loja do padrinho, onde teve contato com viajantes e suas histórias. Muito de sua infância está em memoráveis poemas como em "Minha Escola". Levado por um tio senador, vai para o Recife, onde se torna escriturário do Tesouro do Estado, em 1919.

 

O sentimento poético desabrocha nessa época, quando inicia a compor, na pior tradição parnasiana, sonetos, baladas e madrigais, que reuniu em um pequeno livro, Eu Voltarei ao Sol da Primavera, republicado em 1985, pelo governo do Estado de  Pernambuco. Que, influenciado pelo espírito materialista do fim do século XIX, foi marcante na sua formação. Daí, ter idealizado escrever um poema, cujo tema era uma nova revolta de anjos, para destronamento de Jeová.

 

Referindo-se à sua crença religiosa, quando argüido no Testamento de uma Geração, de Edgard Cavalheiro, 1944, diz o seguinte: "Para ser sincero, devo confessar que ora acredito ora desacredito, o que não me priva de possuir um grande sentimento de admiração por toda fé sincera e desinteressada. Acredito num mundo melhor, que virá fatalmente após este sacrifício tremendo em que se debate a civilização em luta contra a tirania, pois a árvore da liberdade sempre floresceu regada por sangue e lágrima. A verdade tem sido uma norma inquebrantável que aos meus destinos tracei".

 

Em 1917, com apenas 22 anos de idade, numa atitude radical, o poeta inexplicavelmente resolve mudar o nome de registro para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira. Ascenso era o nome do avô materno e Ferreira reverencia o sobrenome da mãe. Em 1928, Ascenso trava um conhecimento pessoal com o autor de Paulicéia Desvairada e, no ano seguinte, se aproxima de vários intelectuais paulistas, como Cassiano Ricardo, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e Afonso Arinos.

 

Em 1945, Ascenso abandona a mulher, Stella, com quem se casara em 1921, para viver em companhia de uma adolescente, Maria de Lourdes Medeiros, abrindo um novo divisor de águas em sua vida. Em 1951, o poeta faz sua quarta viagem ao Sudeste, para o lançamento de seus poemas. Quatro anos depois, quando participa ativamente da campanha de Juscelino Kubitschek à presidência da República, a dupla identidade de Ascenso Ferreira já está inteiramente à mostra. Apesar da experiência modernista e de toda a consagração que mereceu, ele ainda é visto, essencialmente, como um poeta folclórico, pecha preconceituosa de que jamais se livrará.

 

Sua estréia no Rio de Janeiro merece de Medeiros e Albuquerque, do Jornal do Comércio, uma crítica feroz, em que destrói o Catimbó. Em contrapartida, o livro mereceu de João Ribeiro, Manuel Bandeira, Nestor Vitor, Peregrino Júnior, José Vieira, Álvaro Moreira, Carlos Dias Fernandes e Tristão de Athayde, louvores sem restrições. Dez anos depois, Ascenso Ferreira volta ao Rio e São Paulo, levando seu novo livro, Cana Caiana, e o ambiente foi o mesmo, acolhedor, de outrora.

 

"Catimbó" significa feitiço, coisa-feita, muamba, canjerê e também o conjunto de regras e cerimônias a que se obedece durante a feitura do encanto. Foi com este título, "Catimbó", que Ascenso Ferreira, tornou-se um dos poetas mais expressivos no movimento modernista no nordeste. Mário de Andrade, escrevendo ao Diário Nacional, de 1927, a respeito do lançamento do livro Catimbó, reconhecia que "só mesmo Ascenso Ferreira com este Catimbó trouxe pro modernismo uma originalidade real, um ritmo verdadeiramente novo". "Catimbó é um poema do norte que aderiu à estética paulista e aderiu com vigor próprio e originalidade, buscando as fontes tradicionais do nosso povo". Assim começa o pequeno artigo de João Ribeiro, publicado no Jornal do Brasil, em 11 de janeiro de 1928.

 

Catimbó e Cana Caiana são duas obras importantes de primorosa poesia, que ganhariam muito em ser gravadas pelo próprio autor, porquanto muitos de seus ritmos escapam aos ouvidos sulinos. É bem verdade que desde 1922, ele escrevia poemas de acentuada vinculação com o folclore. Ascenso canta com saudade o mundo que morre nos engenhos, substituído pela algidez da usina moderna. A lembrança da meninice junta-se ao sensualismo do branco senhor em relação às mulatas e ao senso de humor que surpreende no povo. Em tudo isso, perpassa o orgulho de nascer e viver na região nordestina, que haveria de prevalecer sobre as influências dos modernistas e remeter o poeta ao regionalismo do grupo pernambucano.

 

Com técnica erudita, alia-se à perfeita compreensão dos ritmos populares; ao humor do homem vivido e maduro, junta-se a ingenuidade e o sentimentalismo do caboclo; tudo numa conjunção espontânea de homogeneidade, bem característica desse Brasil que se funde numa harmonia de regionalismo a completar e enriquecer alguns denominadores comuns extremamente sólidos.  Rica por sua musicalidade, fortalecida pela liberdade de versificação, sem recuar a rima; rítmica como a linguagem do povo, sua obra... Ou, como diria Manuel Bandeira: "quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas".

 

 agosto, 2006

 

 

 

 

Gilfrancisco. Jornalista, pesquisador e professor universitário. Publicou Gregório de Mattos o boca de todos os santos; Crônicas e poemas recolhidos de Sosígenes Costa; Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho; Godofredo Filho & o modernismo na Bahia; Poemas de Enoch Santiago Filho, dentre outros.

 

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